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A pauta racial tomou conta do debate público nos Estados Unidos depois da morte de George Floyd, em uma ação injustificável da polícia da cidade de Mineápolis. O caso se transformou em pretexto para movimentos políticos radicais e oportunistas, mas também ressuscitou uma preocupação legítima com o histórico recente de discriminação racial nos Estados Unidos. O país foi varrido por protestos pacíficos - e atos violentos.
Como ocorre com cada vez mais frequência na era das redes sociais, a agitação repercutiu de imediato no Brasil. Times de futebol fizeram protestos contra o racismo. O slogan “Black Lives Matter” foi simplesmente traduzido para “Vidas Negras Importam” e passou a ser repetido à exaustão. Mas, embora a preocupação com o racismo seja bem-vinda, é preciso cuidado ao reproduzir automaticamente a terminologia do debate racial dos Estados Unidos. A formação racial americana é diferente da brasileira, assim como são diferentes as formas como cada país lidou com a questão racial ao longo de sua história.
A principal diferença da classificação racial nos dois países é metodológica: com pouca miscigenação, os Estados Unidos dividem, de forma geral, sua população em “brancos”, “pretos”, “latinos” e “asiáticos”. Embora também use a nomenclatura “branco” e “preto”, o Brasil tem uma categoria intermediária que abarca pessoas de diferentes origens étnicas: o “pardo”. E é aí que reside boa parte do problema. A existência dos pardos não permite a simplificação da questão racial a um embate entre opressores e oprimidos, nos termos marxistas usados com frequência por militantes da causa negra. Grande parte dos brasileiros é herdeira tanto de um lado quanto de outro.
"País de maioria negra"
Talvez nenhum lugar seja tão emblemático da complexidade da composição racial brasileira - e a imprecisão das estatísticas nesse campo - quanto o Amazonas. O estado da Região Norte é, ao mesmo tempo, o segundo com maior população negra e o segundo com menor população afrodescendente do Brasil. Como isso é possível? A explicação passa pela metodologia empregada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O órgão simplesmente soma “pretos” e “pardos” e os coloca em uma categoria única: os “negros”. Acontece que, nesse caso, “negro” não necessariamente se refere a alguém de ascendência africana.
Segundo o IBGE, o Amazonas tem 69% de pardos e apenas 4% de pretos. Entre os demógrafos, é consenso que a presença de africanos no Amazonas foi reduzida, com pouco uso da mão de obra escrava, e que o elemento étnico predominante é o indígena.
A maior parte dos “negros” do Amazonas, portanto, não são afrodescendentes: são pardos com origem nos povos indígenas. O cenário, aliás, é comum na região Norte, onde a presença das tribos nativas perdurou de forma mais consistente. Não por acaso, o Pará é o estado com maior percentual de pardos no país. O fenômenos se repete, em menor escala, país afora: brasileiros com antepassados indígenas são classificados como “negros” mesmo que não tenham ancestralidade africana.
Isso significa que a frase "O Brasil é um país de maioria negra", repetida por militantes de esquerda para sustentar a tese de que a maior parte dos brasileiros é sobretudo de origem africana, não é claramente sustentada pelos dados.
Oficialmente, o Brasil tem 42,7% de brancos, 46,8% de pardos, 9,4% de pretos, com um total de 1,4% dividido entre amarelos (com origem asiática) e indígenas. Na prática, quase metade do país se encaixa na categoria imprecisa dos pardos. E, se a simples autodeclaração não é suficiente para permitir uma classificação mais exata, um ramo da ciência pode auxiliar a resolver esse quebra-cabeças: a genética.
Cearenses "vikings"
Relativamente recentes, os chamados testes de ancestralidade genômica utilizam o DNA para mapear a origem étnica de um indivíduo. E as conclusões podem ser surpreendentes.
O estudo mais recente desse tipo, lançado em 4 de agosto, analisou a composição genética de 160 moradores do Ceará e concluiu que o elemento europeu era, de longe, o mais frequente. O estudo, publicado pelo instituto Myra Eliane e conduzido pelo professor Eran Elhaik, da Universidade de Lund, na Suécia, também encontrou nos cearenses um percentual não desprezível (em torno de 10%) de material genético do norte da Europa, mais especificamente da região onde viviam os vikings. A explicação está na miscigenação desses povos com habitantes de Portugal séculos atrás. Muitos cearenses, de certa forma, são mais “vikings” do que negros ou indígenas.
De qualquer forma, a mensagem geral do estudo é a da miscigenação onipresente: “Em média, os brasileiros têm mais grupos genéticos do que qualquer outra população no mundo, o que atesta quão diversos e heterogêneos eles são”, disse o professor Eran Elhalk durante o lançamento da pesquisa. Essa tem sido, aliás, a conclusão de todos os estudos sobre a composição étnica dos brasileiros.
Um levantamento mais abrangente foi feito em 2015 por pesquisadores Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O estudo, um dos mais completos do tipo no Brasil, utilizou amostras de aproximadamente 6.500 moradores das cidades de Pelotas (RS), Bambuí (MG) e Salvador (BA). As três são representativas dos padrões raciais das diferentes regiões do país. Conclusão; em Bambuí e Pelotas, a ancestralidade europeia era superior a 75%, com aproximadamente 15% de origem africana e cerca de 8% de origem indígena.
Mesmo em Salvador, conhecida como a capital mais negra do Brasil, o resultado demonstrou um certo equilíbrio: a ancestralidade africana ficou em 50%, ante 43% da europeia e cerca de 7% da indígena. Na prática, o estudo demonstrou que, no cômputo geral, os pardos brasileiros talvez sejam mais brancos do que negros.
Fenótipo x genótipo
Parte dos contra-argumentos ao uso da genética para discutir o racismo dá conta de que o preconceito não se baseia primariamente na estrutura genética de um indivíduo (genótipo), mas na aparência dele (fenótipo). É verdade. Os indícios de que a etnia predominante no país é a europeia não significam que os horrores do passado devam ser apagados, ou que essa prevalência dê aos brancos algum tipo de direito especial. Uma coisa, entretanto, esses indícios devem provocar: dúvidas sobre as estatísticas utilizadas por alguns militantes da causa negra. Se o debate sobre o racismo no Brasil se baseia em dados imprecisos, quanto de segurança pode-se ter ao se debater o assunto?
A professora Tabita Hünemeier, da Universidade de São Paulo, aponta outro aspecto que merece ser considerado e que contribui para a imprecisão dos dados, embora no sentido contrário: “Como existe muito preconceito no Brasil, as pessoas tendem a se declararem pardos em vez de pretos, então é difícil saber também qual é a porcentagem de população preta. Considerando que quase 5 milhões de africanos vieram para o Brasil, eu esperaria muito mais do que apenas 9% de pretos declarados”, ela afirma.
Analisando o tema um pouco mais a fundo, é preciso concluir que, na verdade, todos partimos de um ancestral comum com origem na África. “O conceito de raça não é biologicamente validado. Do ponto de visto biológico, todas as populações humanas são ramos diferentes da população africana”, diz a professora Tabita.
Ou seja: o próprio conceito de raça é que não se sustenta de forma geral, e muito menos no Brasil.
Americanização do debate
Para além do debate sobre a miscigenação das raças, também é fato que os Estados Unidos mantiveram uma política de segregação mais intensa, e por muito mais tempo, do que o Brasil. Foi apenas em 1954 que a Suprema Corte americana decidiu que a segregação racial nas escolas era inconstitucional. Ainda assim, nove anos depois, o governo federal precisou enviar tropas para garantir que alunos negros pudessem frequentar a Universidade do Alabama. O governador do estado, George Wallace, protestou e tentou impedir pessoalmente que a integração racial fosse implementada. Um ano antes, ele havia sido eleito com o chocante lema “Segregação agora! Segregação amanhã! Segregação para sempre!”. Cenas do tipo eram inimagináveis no Brasil já naquela época.
É nesse contexto que surgem, por exemplo, as chamadas ações afirmativas: os negros não podiam sequer se aproximar de algumas universidades; quando a integração passou a ser a regra, muitas instituições acreditaram que era preciso oferecer uma espécie de compensação.
No Brasil, entretanto, o contexto histórico e racial era muito diferente; embora os negros estivessem em desvantagem do ponto de vista econômico, não havia um regime oficial de segregação que os impedisse de frequentar as universidades. Outro exemplo: já na Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil enviou sua Força Expedicionária à Europa, soldados de todas as raças lutavam lado a lado, enquanto as forças americanas ainda mantinham uma separação.
Por causa de diferenças como essas, a “americanização” do debate racial no Brasil acaba importando ideias e soluções que não se adaptam ao contexto brasileiro. Isso não quer dizer que não exista racismo no Brasil; mas a simples divisão entre “brancos e negros” gera uma imprecisão estatística, que exclui descendentes de indígenas e cria uma falsa dicotomia entre opressores e oprimidos, como se um grupo devesse ao outro - e nunca é recomendável danificar o tecido social com base em inverdades.
Os “negros” do IBGE merecem toda a atenção do poder público, não porque sejam a maioria da população, ou porque sejam todos descendentes de escravos, mas porque, como diz a Constituição, possuem exatamente os mesmos direitos e os mesmos deveres dos demais brasileiros.