O Brasil é o país que mais mata gays, lésbicas e travestis no mundo. A cada 19 horas, um LGBT é assassinado ou comete suicídio. Essas duas informações são repetidas com muita frequência, seja na imprensa, ou em discursos de militantes.
Recentemente, um grupo de pesquisadores se debruçou sobre a origem dos dados que dão sustentação a essas conclusões. O resultado da análise foi publicado nesta quarta-feira (01). Ela chegou à conclusão de que os dados originais são exagerados.
Apenas 9% do total pode ser considerado confiável. Ou seja: de 347 casos citados em um estudo específico, apenas 31 casos indiscutivelmente relacionados à violência contra homossexuais e travestis.
Existem pelo menos quatro levantamentos estatísticos sobre a violência contra LBGT no Brasil. O mais tradicional deles é produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) há 39 anos. Produzido anualmente, ele é divulgado, principalmente pela imprensa, com grande destaque. O problema é que o estudo não passa de um clipping de notícias, interpretadas pelos militantes do GGB e transformadas em uma lista.
Casos duplicados
“Para descobrir até onde vai a imprecisão, nós refizemos todo o trabalho do GGB referente ao ano de 2016, checando todos os dados colhidos pelo grupo”, informa o estudo, liderado pelo pesquisador mineiro Eli Vieira, biólogo de 32 anos, mestre em genética e biologia molecular, com doutorado em genética pela Universidade Cambridge, na Inglaterra. Eli Vieira, que é homossexual, ficou famoso em 2013, quando questionou em vídeo uma afirmação dada pelo pastor Silas Malafaia, a de que boa parte dos homossexuais tinha histórico de abuso na infância.
“Descobrimos que o banco de dados de vítimas da homofobia em 2016 no Brasil do GGB sofre de graves problemas de rigor”, o estudo prossegue. “Apesar do relatório se referir ao Brasil, estão incluídos seis casos de mortes no exterior. Há alguns casos duplicados. Em alguns casos descobrimos uma leitura incompleta do relato jornalístico: por exemplo, um casal heterossexual supostamente viciado em drogas foi assassinado por um traficante no Ceará. Aparentemente, o caso foi incluído pelo GGB somente porque a manchete omitiu o sexo da mulher, dando a entender erroneamente que poderia ser um casal gay”.
O Brasil não tem um levantamento oficial de violência contra LGBT. Além disso, nem 10% dos casos de homicídio do país são solucionados, o que dificulta identificar as causas de cada assassinato. Por isso, grupos de militantes se organizam para apurar estatísticas, com base nas notícias de jornais. O resultado, segundo Eli Vieira, é exagerado.
“No estudo de 2016”, ele afirma em entrevista à Gazeta do Povo, “encontramos 31 casos em que um LGBT morreu por ser LGBT no Brasil. É uma amostragem muito baixa, não permite fazer comparações rigorosas. Na verdade, não sabemos nada sobre a violência contra essas pessoas. Não podemos sequer fazer comparações com outros países. Tudo o que podemos afirmar é que problema existe, mas é menor do que afirma o GGB”.
Imprensa em crise
O pesquisador afirma que, na falta de dados confiáveis, só se pode especular. “Se é possível afirmar que o Brasil é excepcional na violência contra algum grupo LGBT, eu diria que provavelmente é contra as transexuais. Existem casos de mortes com dezenas de facadas, são pessoas que passam vários minutos atacando um corpo já morto. É muita motivação da parte do assassino”.
Para Eli Vieira, os pesquisadores que fazem esses estudos não aplicam conhecimentos mínimos de estatística. “A maioria vem da área de humanidades, onde, no Brasil, o ensino e a aplicação de estatística são deficientes. Além disso, existe um tribalismo político envolvido, há mais interesse em contrariar a vertente oposta do que em buscar a verdade”.
Isso tudo leva, diz o pesquisador, a um raciocínio circular: “Incluem casos incertos nos dados porque a homofobia é estrutural. E dizem em documento escrito em parceria com o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos em 2018 (quando ainda era chamado apenas de Ministério dos Direitos Humanos), que a homofobia é estrutural porque os dados deles mostram isso”.
Para o pesquisador, a facilidade com que a imprensa aceita esse tipo de relatório é sinal de falta de qualidade no trabalho. “O próprio fato de estarem surgindo agências de checagem indica que a imprensa está em crise. Afinal, a checagem correta de fatos deveria estar na base de todas as reportagens."
Aliás, duas agências de checagem, a Pública e a Lupa, já se debruçaram sobre os mesmos dados e concluíram que não é possível, com base neles, afirmar que o Brasil é o país que mais mata LGBT.
“Como seríamos o país que mais mata se existem lugares onde homossexualidade é crime punido com pena de morte?”, questiona o pesquisador.
“Mãos sujas de sangue”
Em entrevista concedida em fevereiro sobre o mesmo assunto, o antropólogo e historiador Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, respondeu às críticas à metodologia do relatório.
“Nós somos os primeiros a reconhecer que nosso levantamento é incompleto, porque não é feito por órgãos oficiais, que deveriam ter acesso aos relatórios anuais das delegacias de polícia, dos fóruns dos estados, dos fóruns municipais, das secretarias de segurança pública e de direitos humanos”, diz ele.
“É claro que há dados contraditórios, às vezes equivocados, mas não chegam a 5%. É intolerância pegar essa meia dúzia de casos que são problemáticos e desqualificar centenas de episódios documentados. Negar o ódio desses crimes contra homossexuais é intolerância, é uma manifestação de homofobia”.
O professor conclui: “Em 99% dos casos de mortes violentas de LGBT, a homossexualidade foi um agravante. A gente ouve as pessoas dizendo nas ruas, ‘viado descarado’, ‘traveco nojento’, etc. Nossos críticos, no fundo, são cúmplices e têm as mãos sujas do sangue desses gays, travestis, lésbicas e transexuais mortos pela intolerância”.
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