A Assembleia Estadual de Iowa é um dos prédios públicos mais bonitos dos Estados Unidos. Mas os turistas que visitaram o local nos últimos dias se assustaram com uma exibição no hall principal: uma espécie de altar satanista a uma entidade chamada Bafomé. Era uma estátua de um bode com proporções humanas, envolto em uma capa púrpura. Diante dele, cerca de 30 velas e mensagens com alguns princípios do satanismo.
A Assembleia Estadual de Iowa permite que diferentes grupos (religiosos ou não) façam exibições temporárias em seus saguões. Em agosto, o Templo Satânico de Iowa se inscreveu para ocupar o espaço por duas semanas. Como as normas não impedem a discriminação com base em religião, o pedido foi aprovado — justamente no período de Natal.
Nesta quinta, (14), a estátua foi destruída por Michael Cassidy, um morador do Mississipi que se apresenta como veterano da Marinha. Em uma entrevista ao portal The Sentinel, Cassidy apresentou sua justificativa para o ato. Segundo ele, a Primeira Emenda (que protege a liberdade religiosa) não foi desenhada para proteger o satanismo em espaços públicos. "O mundo pode dizer aos cristãos que eles devem aceitar de forma passiva a legitimação de Satanás, mas nenhum dos fundadores teria considerado que a permissão para altares satânicos dentro de uma Assembleia é protegida pela Primeira Emenda", afirmou.
Em poucas horas, uma campanha de doação para financiar a defesa de Cassidy na Justiça atingiu a meta de US$ 20.000.
O caso evidenciou uma cisão no meio conservador e reabriu o debate sobre o alcance da liberdade religiosa.
Constituição estadual menciona Deus
O deputado estadual Jon Dunwell, um republicano que também é pastor, afirmou que repudia a instalação mas, ao mesmo tempo, não acredita que o Estado deva impedir a expressão de alguma religião.
“Minha observação como cidadão de Iowa e deputado estadual é que não quero que o estado avalie e tome decisões sobre religiões. Sou guiado pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA”, ele escreveu, em uma publicação na qual tentava explicar porque não se opôs à exposição organizada pelo Templo Satânico.
A opinião dele gerou críticas.
Outro deputado estadual republicano, Brad Sherman, alegou que a exposição violava a Constituição Estadual, cujo preâmbulo invoca a proteção de Deus e reconhece depender da "continuidade" das bênçãos divinas. “É uma interpretação distorcida da lei que permite a Satanás, universalmente visto como o inimigo de Deus, uma expressão religiosa igual à de Deus em uma instituição de governo que depende de Deus pela continuidade das bênçãos", Sherman afirmou.
Já o professor da Universidade de Notre Dame Patrick Deneen foi irônico. “O liberalismo prevalecendo. Parabéns!”, ele escreveu, em sua página na rede social X. Deneen, autor de “Por que o liberalismo fracassou?”, costuma criticar a noção de que a esfera pública precisa ser completamente neutra em matéria de valores.
O paradoxo da liberdade religiosa
Os Estados Unidos foram o primeiro país do mundo a ter uma proteção robusta à liberdade religiosa. É com base nela que o Templo Satânico alega ter o direito de expor seus ídolos na Assembleia Estadual de Iowa — já que outros grupos religiosos fazem o mesmo ocasionalmente.
Uma leitura dos documentos históricos, no entanto, revela um paradoxo: a liberdade religiosa está fundada em uma tradição religiosa específica; remover essa tradição é remover o fundamento da liberdade religiosa. Logo, nem todas as tradições religiosas são equivalentes.
A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que estabeleceu a ampla liberdade religiosa que vige até hoje no país, foi em grande medida inspirada pelo Estatuto da Virgínia para a Liberdade Religiosa — escrito por Thomas Jefferson em 1777.
Neste documento, Jefferson usa um fundamento monoteísta para defender a separação entre Igreja e Estado. O texto começa afirmando que "Deus Todo Poderoso criou a mente livre". E diz que a tentativa de impor a religião é um "afastamento do plano do santo autor da nossa religião, que, sendo Senhor tanto do corpo como da mente, ainda assim optou por não propagar seu plano por meio da coerção”.
Ou seja: a liberdade religiosa é baseada na crença em um Deus. E, embora não necessariamente esse precise ser o Deus cristão, é possível argumentar que os fundadores dos Estados Unidos não pretendiam proteger um movimento anti-Deus — o satanismo. O mais provável é que eles tivessem em mente as diferentes manifestações do Cristianismo, com o possível acréscimo do Judaísmo e do Islamismo.
Estado laico não apaga influência pública do Cristianismo
Tradicionalmente, o Congresso dos Estados Unidos (que tem um capelão) inicia suas sessões com orações feitas do púlpito da Casa. Ao tomar posse, o presidente jura sobre a Bíblia. E as Forças Armadas têm capelães — quase todos, cristãos.
A influência dos princípios cristãos na esfera política dos Estados Unidos está bem documentada. Figuras como George Washington compreendiam que a existência de manifestações públicas de religiosidade cristã era salutar. Em seu discurso de despedida como presidente, George Washington afirmou que “de todas as disposições e hábitos que levam à prosperidade política, a religião e a moralidade são pilares indispensáveis.”
Nas últimas décadas, entretanto, juízes têm aplicado uma interpretação mais pluralista das normas. De acordo com essa visão, qualquer minoria, por menos representativa que seja, pode exigir o mesmo espaço concedido aos cristãos.
O que é o Templo Satânico
Embora se apresente como uma entidade religiosa, o Templo Satânico é liderado por ateus que usam o satanismo como uma forma de atacar a influência da religião na esfera pública. Em sua página na internet, a organização se diz inspirada no "iluminismo do século 18".
A filial de Iowa do Templo Satânico possui uma página no Facebook, mas não parece não ter uma sede no Estado — que, segundo os dados do Censo, tem um dos maiores percentuais de cristãos dos Estados Unidos.
Os satanistas são tão poucos que não aparecem como uma categoria própria no Censo. Os que se definem como "pagãos" ou adeptos da bruxaria são uma fração ínfima, muito inferior a 1%.
De acordo com o Pew Research Center, os adeptos da bruxaria são 0,4% dos americanos — em Iowa, com uma população majoritariamente conservadora, o número provavelmente é ainda mais reduzido.
Até mesmo a Igreja de Satã — que, ao que tudo indica, é o ramo mais influente do satanismo — viu o episódio como uma provocação; “Isso não tem nada a ver conosco ou o Satanismo. Isso foi colocado por um grupo de ativismo político em que qualquer um, de qualquer religião pode ingressar, com a intenção de provocar políticos e jornalistas”, afirmou o grupo, em uma postagem para seus 383 mil seguidores na rede social X.
Satanistas contra os Dez Mandamentos
A exposição na Assembleia Estadual de Iowa não foi a primeira atitude controversa do Templo Satânico.
Em 2015, a Suprema Corte de Oklahoma determinou a remoção de um monumento com os Dez Mandamentos em frente à Assembleia Estadual. A peça havia sido instalada quase uma década antes. Os juízes consideraram que o ato violou a Constituição Estadual. Antes que o monumento fosse removido, o Templo Satânico chegou a apresentar um requerimento formal para instalar uma estátua de Bafomé no mesmo local.
Algo parecido aconteceu em 2018 no Arkansas. Depois que os deputados estaduais aprovaram a construção de um monumento com os Dez Mandamentos, o Templo Satânico construiu a estátua de um bode (similar à da Assembleia Estadual de Iowa).
Os satanistas também iniciaram uma longa batalha judicial para remover o monumento com os mandamentos bíblicos. A estátua satanista foi removida porque a construção não fora autorizada. Já o processo pela remoção dos Dez Mandamentos ainda está em tramitação na justiça estadual.
Se o caso chegar à Suprema Corte dos Estados Unidos, é provável que o Templo Satânico saia derrotado. Em 2005, o tribunal rejeitou um pedido para remover um monumento com os Dez Mandamentos ao lado da Assembleia Estadual do Texas, em Austin.
"O Texas tem tratado os monumentos da Assembleia Estadual como representações das várias vertentes da história política e jurídica do Estado. A inclusão do monumento dos Dez Mandamentos nesse grupo tem um duplo significado, de religião e de governo", afirmou a decisão do tribunal.
Se decidisse de forma diferente, a Suprema Corte teria um problema a resolver: a própria fachada do prédio, em Washington, exige uma imagem de Moisés segurando as tábuas dos Dez Mandamentos.
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