Então você leu o título deste texto e clicou para lê-lo. Ótimo. Já é um bom sinal. Mostra que você está disposto a refletir sobre a forma como pensa e que não está fechado a dados, argumentos e opiniões que talvez o contradigam e o desagradem. De acordo com Alan Jacobs, autor de Como Pensar: Um Guia de Sobrevivência Para um Mundo em Desacordo, este é o primeiro passo para qualquer pessoa que queira dar ao ato cotidiano de pensar o peso que lhe é devido, ainda mais numa época em que expressar o pensamento é tão fácil – com consequências graves tanto para o ser pensante quanto para a sociedade.
Mas cuidado! Porque “pensar, vasculhar as bases de nossas crenças, é um risco, e talvez um risco com consequências trágicas. Não há garantias de que isso nos deixará felizes nem que nos dará qualquer prazer”, adverte Jacobs.
Ou seja, pensar é mais difícil do que... se pensa – e a gente nem se dá conta disso. Porque geralmente pensamos “no automático”, agindo mais por instinto e intuição, e não depois de uma reflexão minimamente ponderada. Isso porque pensar não é, para a maioria das pessoas, prazeroso. “Relativamente poucas pessoas querem pensar. Pensar nos causa problemas; pensar nos cansa. Pensar é algo que pode nos tirar de nossos hábitos conhecidos e confortáveis; pensar pode complicar nossa vida; pensar pode prejudicar ou no mínimo complicar nossas relações com aqueles que admiramos ou amamos ou seguimos. Quem precisa pensar?”, pergunta Jacobs.
Uma prova de que pensar é muito difícil e também algo que fazemos “no automático” é que muita gente leu o primeiro parágrafo e, impacientemente, correu para a caixa de comentários ou simplesmente me sentenciou em silêncio (e talvez tenha sentenciado até mesmo o autor do livro) ao frio gelado dos jornalistas pretensiosos que acham que são capazes de ensinar os outros a pensar. Onde já se viu uma coisa dessas, não é mesmo?
O instinto de seguir a manada
Ainda de acordo com Alan Jacobs, citando neurocientistas e psicólogos e toda a sorte de profissionais sem a chancela dos quais nosso “pensamento sobre o pensamento” parece não ter validade alguma, nosso pensamento se divide em dois: um instantâneo, no qual não deveríamos confiar, mas confiamos demais, e outro mais lento, ponderado, que almeja algum tipo de sabedoria.
O primeiro se manifesta de várias formas na nossa vida cotidiana. Quando decidimos não atravessar a rua com o sinal vermelho, por exemplo. Quando acordamos e abrimos mão daquela preguicinha matinal deliciosa para irmos trabalhar e, assim, não corrermos o risco de uma bronca ou demissão. Quando damos nota para o motorista do Uber. E, finalmente, quando damos ou não “like” nas redes sociais e, mais frequentemente do que nunca, quando usamos um meme ou até um xingamento para refutar aquilo que tanto nos causa ojeriza.
Mas por que cedemos tanto a esse pensamento apressado e não raro equivocado? Para Jacobs (você já entendeu, mas não custa repetir que tudo neste texto se refere ao que ele diz no livro) e seus amigos cientistas, a primeira dificuldade está no fato de o pensamento afetar tanto nossas relações pessoais. Ninguém pensa sozinho e ninguém está isento de influências, sejam elas conscientes ou não. E ninguém quer ser um pária por pensar diferente.
Daí porque tendemos a pensar em grupo. A ideia de pensar sozinho, ou melhor, pensar por si mesmo é uma impossibilidade, a não ser, talvez, se você for um eremita. Pensamos também para nos relacionar, para causar uma boa impressão, para influenciar, para que a vida siga um determinado curso. O ato de pensar, portanto, requer esforço não só cognitivo, mas também emocional. Isso serve tanto para o pensamento rápido e intuitivo quanto o demorado, reflexivo, embora se possa argumentar que a sabedoria só pode ser alcançada mesmo com certo domínio da emoção, como ensinam os filósofos estoicos.
Sim, é difícil resistir ao impulso de fazer parte da manada. “Por que as pessoas pensariam, uma vez que pensar lhes tira o ‘prazer de compartilhar uma atitude que se sabe ser socialmente aprovado’ – sobretudo num ambiente virtual no qual é fácil adquirir aprovação social por meio de likes, seguidores e amigos?”, pergunta a ensaísta Marilynne Robinson.
Isto é, sacrificar o prazer imediato da aceitação social e resistir ao impulso de sujeitar o pensamento a essa necessidade de aceitação é imperativo se você quer realmente pensar e, assim, dar valor ao sapiens que dá nome à sua espécie. O que é uma péssima notícia para uma sociedade viciada em “likes” e estrelinhas.
A guerra do pensamento
Outra reflexão interessante de Jacobs a respeito do simples ato de pensar nesse nosso mundo hiperinformado e hiperconectado é a transformação do pensamento em instrumento de agressividade e defesa. Parece um paradoxo, e talvez seja mesmo. Quanto mais informações e possibilidades de nos expressarmos temos, mais recorremos ao instrumento primitivo do conflito. Somos inteligentes, mas não buscamos o consenso; preferimos usar essa inteligência para derrotar e até destruir o outro.
E, assim, construímos para nós não a imagem de seres intelectuais, e sim de guerreiros adorados pela tribo, admirados pelo domínio dessa ferramenta extremamente sofisticada que é o pensamento.
Isso porque o pensamento, ou melhor, as ideias que são o produto deste pensamento se tornaram, sobretudo ao longo do século XX, armas perigosas. Ideias fizeram com que vizinhos mandassem vizinhos para gulags. Ideias fizeram com que vizinhos mandassem vizinhos para campo de concentração. Ideias provocaram a morte de centenas de milhares de pessoas sob cogumelos atômicos. E, por causa desses acontecimentos, do nosso medo diante das ideias alheias, nos acostumamos a nos munir de pensamentos a fim de esmagar qualquer ameaça que enxerguemos no pensamento (matéria-prima da ideia) alheio.
Ideias continuam destruindo. Na era das redes sociais, ideias fazem com que pessoas percam o emprego, tenham o casamento arruinado, caiam no ostracismo e até cometam suicídio por algo que disseram (e não existe essa coisa de dizer “impensadamente”; você só cedeu ao impulso do pensamento instintivo). Daí a vontade de ter, sempre na ponta da língua ou dos dedos, aquele argumento matador, que não só vai anular qualquer ameaça como renderá ao pensador todas as glórias que ele merece por suas brilhantes sinapses.
É possível contornar esse problema. Mas não é nada fácil. Para começo de conversa, é preciso abdicar ao máximo de termos belicosos. Ninguém realmente destrói ninguém com uma frase certeira. A única coisa que se consegue é uma humilhação passageira que pode virar ressentimento e dar origem a um sentimento ainda mais nocivo de vingança. Ninguém muda de ideia nem tampouco dá um passo em direção ao consenso ao se sentir derrotado por um argumento, por mais enfático que ele seja.
Depois é preciso estar disposto a ser “derrotado” pelo pensamento alheio. Quando você se deixou convencer pela última vez? Quando você permitiu que um argumento perfurasse essa sua armadura formada por uma trama de emoções, intuições, experiências pretéritas, fatos mais ou menos comprovados e até clichês? Para Jacobs, essa disposição em ser “derrotado” num debate significa “crer que as pessoas com as quais você está debatendo são pessoas decentes, que não querem prejudicá-lo nem manipulá-lo. (...) Isso sugere que o problema do pertencimento e não-pertencimento, de inclusão e exclusão, é fundamental para quem quer aprender a pensar”.
Esse vocabulário de guerra para se referir ao pensamento e ao debate também surge da ideia de que todos os problemas do mundo podem ser resolvidos por alguma medida excepcional, grandiosa e abrangente. Jacobs cita Sir Roger Scruton para explicar por que muitos de nós pensamos a fim de aniquilar as vozes dissonantes: “Quando você acredita que os problemas deste mundo não podem ser apenas contornados, e sim resolvidos de uma vez por todas, então as pessoas que não compartilham do seu otimismo, ou que compartilham dele, mas acreditam numa solução diferente, são adversários da Utopia. (Um adversário é alguém que se voltou contra você, alguém que bloqueia seu caminho)”.
Por fim, escreve Jacobs:
Nós nos fixamos tanto nessa ideia de que um debate é uma guerra, em parte, porque os seres humanos geralmente são competitivos demais; mas também porque em muitos debates há realmente algo a ser perdido, e comumente o que está ameaçado é nosso lugar na sociedade. Perder um debate pode ser um constrangimento pessoal, mas também pode ser um indício de que você está ao lado de pessoas erradas, o que significa que você precisa encontrar outro grupo ou aprender a conviver com o que os marxistas chamam de “consciência falsa”.
O outro e a hora de desistir
Mais difícil ainda é avaliarmos honestamente por que uma ideia nos causa admiração ou repulsa – a ponto de a encararmos com uma postura semelhante ao fanatismo (no caso daquilo que admiramos) ou nojo (no caso daquilo pelo que sentimentos repulsa). A questão aqui é se propor uma autoavaliação periódica sobre aquilo que consideramos nossas convicções, isto é, a base do nosso pensamento. Quais convicções são mesmo inabaláveis e quais são pura teimosia ou até mesmo preguiça de pensar?
Aliás, o hábito de repugnarmos todas as ideias que nos desagradam é tanta que a antropóloga Susan Friend Harding, interessada no fenômeno, cunhou o termo “repugnant cultural other”, isto é, o “outro culturalmente repugnante”, para descrevê-lo. O termo se refere ao reflexo de regurgitar diante de ideias que de antemão nos desagradam, como quando um físico vai a uma palestra de coach quântico ou quando um libertário assiste a um congresso do Partido Comunista, por exemplo. Nestes casos, a distância de valores e convicções é tamanha que simplesmente não há possibilidade de diálogo e consenso.
Aqui a palavra “distância” é essencial. Citando o velho e bom Kierkegaard (aquele nome que confere a qualquer texto um quê de erudição ridícula) e mais uma vez Sir Roger Scruton, Jacobs explora o conceito do “outro” em relação à aproximação real e a relativa, aquela criada pelo convívio no ambiente virtual. Scruton aconselha o pensador a ter uma postura mais generosa para com este outro que, por causa dos avanços tecnológicos, deixou de ser um vizinho de carne e osso, com o qual você pode se relacionar fisicamente, para se tornar um “outro” quase inumano: um avatar e um screen name,
Mas, claro, todos temos convicções – o que é bem diferente de nutrir teimosias. Essas convicções formam a espinha dorsal de muitas das coisas que pensamos e, por consequência, de muitos dos debates que travamos. Mas convicções são um problema porque, se não queremos parecer teimosos, tampouco queremos demonstrar hesitação nem tampouco sermos vistos como fracos.
São nossas convicções inabaláveis as responsáveis por investirmos boa parte da vida nesta ou naquela linha de raciocínio, a ponto de ser impossível, a partir de determinado momento, mudar de ideia. É isso o que explica, por exemplo, por que o ex-presidente Lula jamais fará a já mítica autocrítica ou por que aquele seu amigo de esquerda, diante da foto de um prisioneiro morto de fome num gulag ou ainda diante de relatos das atrocidades cometidas atualmente na Venezuela e Coreia do Norte jamais, em hipótese alguma (salvo, talvez, um milagre), mudará de ideia: eles investiram toda a vida numa convicção (neste caso, política) e agora é simplesmente tarde demais para uma correção de rota. Independentemente dos fatos e da verdade objetiva, para essas pessoas é compreensivelmente insuportável reconhecer que toda uma vida foi desperdiçada numa luta que talvez não seja a mais virtuosa.
Esse apego social e emocional a um raciocínio, mesmo que notadamente errado e mesmo diante de vários sinais de que a ideia só traz prejuízos, é o que leva ao fanatismo. O fanático, explica Jacobs, de uma forma um tanto quanto óbvia, está determinado a usar toda a sua inteligência para evitar cogitar qualquer alternativa à sua opinião. “Podemos considerar isso um ingrediente necessário de qualquer definição útil de fanatismo: não importa o que aconteça, isso prova o que estou dizendo. Isto é, as crenças dos fanáticos não estão sujeitas à falsificação: tudo pode ser incorporado ao sistema (...). Fanáticos são como os sacerdotes na parábola de Kafka: ‘leopardos entram no templo e bebem do líquido que está na bacia de sacrifícios; isso se repete várias vezes, até que se torna parte da cerimônia’”.
Os perigos de pensar
Jacobs conclui seu livro ressaltando os perigos de pensar: “Não posso prometer que, se você mudar de ideia, você não vá perder ao menos alguns de seus amigos – e isso é importante porque, se você aprender a pensar, pensar de verdade, você vai, às vezes, mudar de ideia”.
Por fim, ele propõe, com alguma generosidade, que a opção por não pensar, isto é, por se deixar levar pelas convicções sem embasamento (teimosia), pelo espírito belicoso e pela insuportável sensação de ter investido toda a vida num ideário equivocado é, no final das contas, uma escolha. Citando Tomás de Aquino, ele diz que “deixar de pensar é um ato de desespero – não consigo ir além – ou de simples arrogância – eu não preciso ir além”.
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