Em fevereiro de 2017, um aluno de 18 anos da faculdade de direito da Universidade de Cambridge, Ronald Coyne, foi filmado nas ruas de Cambridge queimando uma cédula de £20 diante de um morador de rua de 31 anos, Ryan Davies, que tinha lhe pedido educadamente um trocado. De acordo com Davies, Coyne disse: “Vou lhe dar um trocado. Troquei essa nota por fogo”. Coyne, então, seguiu pela rua, como se não tivesse feito nada digno de nota. Membro do clube conservador da faculdade, ele estava bêbado – embora não completamente bêbado, já que agiu com arrogância, sem hesitar — e vestia um traje formal todo branco.
O vídeo da cena viralizou; a imagem do jovem, aparentemente contente consigo mesmo, foi publicada em vários jornais britânicos. A condenação pública ganhou forma. Não demorou para que 23 mil pessoas assinassem uma petição exigindo que ele fosse expulso da universidade.
De uma gota de chuva, dizia o famoso historiador britânico Sir Lewis Namier, dá para tirar todas as cores do sol: e, neste episódio, por mais simples e breve que pareça, todos os conflitos sociais, políticos e filosóficos da sociedade britânica moderna, e talvez da sociedade ocidental em geral, podem ser vistos.
Nenhuma pessoa decente pode se deparar (ou ler a respeito) com a conduta de Coyne sem se revoltar. Mas compartilhar o sentimento universal de nojo não basta; é preciso ir a fundo e alisar os motivos disso. Por que o incidente – relativamente sem consequências, em comparação com os exemplos de violência e da selvageria que estampam os tabloides britânicos diariamente – provoca tanta revolta?
Desigualdade e falta de empatia
No momento em que queimou a cédula de vinte libras, Coyne demonstrou uma frieza incômoda. Ficamos arrepiados só de pensar que os homens são capazes de agir com tamanha crueldade. Se um jovem – inteligente, culto, privilegiado, com a vida toda pela frente — é capaz de agir dessa forma, do que mais ele, e outros iguais a ele, são capazes? Não podemos nos consolar pensando que a ação dela foi apenas algo impensado, um lapso momentâneo, como alguém que tem coisas demais na cabeça e que passa por uma porta-giratória sem pensar em quem está atrás. O gesto de Coyne não foi apenas maldoso; ele não se encerra na maldade. Coyne sentiu prazer com a dor que sabia que causaria, com a dose a mais de humilhação que infligiu sobre um homem já numa posição humilhante. Seu gesto foi arquetipicamente malvado.
A mãe de Coyne, que não aprovou a conduta do filho, disse que aquilo foi algo muito estranho da parte dele. Ele sempre foi um menino tranquilo e estudioso, não um valentão, disse ela, e, na verdade, ainda na escola Coyne trabalhou como voluntário num abrigo para moradores de rua. Mesmo que seja verdade, contudo, isso não nos tranquiliza, porque significa que qualquer pessoa decente e até boa pode, de repente, se transformar numa pessoa má capaz de atos cruéis. Mas essa reflexão ao menos nos avisaria de que deveríamos estar sempre alertas contra nós mesmos.
Muitos, contudo, viram no gesto de Coyne um sinal de algo muito mais profundo e relevante do que apenas um defeito de caráter. O fato de ele estar usando um traje formal todo branco serviu de símbolo da desigualdade crescente na nossa sociedade: não exatamente uma lacuna, e sim um abismo entre os bem e mal nascidos, os vencedores e os perdedores numa sociedade cada vez mais dividida. Como disse William Blake num contexto diferente:
Toda noite e toda aurora
A miséria é de alguém genitora
Toda aurora e toda noite
Alguém nasce em afoite.
Numa sociedade profundamente desigual como a que o comportamento de Coyne supostamente simboliza, é de se esperar condutas assim arrogantes, já que a divisão impede que os afortunados se solidarizem com os desafortunados e até que imaginem como é a vida deles. A desigualdade é tanta que “começa a afetar a capacidade das pessoas de se verem vivendo a vida dos outros”, como disse o filósofo do direito Jeremy Waldron na Conferência Gifford de 2015.
Se fosse mesmo assim, a conduta de Coyne na verdade seria menos repreensível, já que ele se mostrou incapaz, por falta de imaginação, de compreender a humilhação que estava perpetrando contra Davies. Para acreditar nisso, contudo, seria preciso também acreditar que a tentativa de queimar uma cédula diante do pedido de esmola foi algo feito ao acaso, sem sentido, e não um gesto cruel e maldoso. E, claro, ninguém poderia acreditar de fato nisso.
Onde está, de fato, a injustiça?
A desigualdade de uma sociedade na qual um estudante é capaz de queimar dinheiro apenas para humilhar um morador de rua desempregado e mais velho é, à primeira vista, chocante. Por um lado, dinheiro que pode ser queimado; de outro, nenhum dinheiro! O contraste não poderia ser maior e nenhum símbolo da injustiça econômica e social poderia ser mais emblemático.
Mas vamos deixar de lado a indignação por um instante — indignação que, vamos ser sinceros, faz com que nos sintamos bem com nós mesmos — e examinar onde está de fato a injustiça. Coyne quase com certeza não ganhou seu dinheiro por conta própria. Claro que ele deve ter se esforçado na escola e usado todo o seu talento para entrar para a faculdade de direito de Cambridge, mas isso não é o mesmo que ter trabalhado e ganhado seu dinheiro. Apesar de a mãe dele negar que a família fosse em qualquer sentido oligárquica, é bem provável que Coyne jamais tenha passado por dificuldades econômicas. Ele não fez nada para merecer as £20 que pôde se dar o direito de queimar em troca de uma satisfação horrenda.
Sim, é mesmo injusto que ele tivesse dinheiro para queimar — mas injusto para quem? Todos nós, até mesmo os mais pobres, gozamos de benefícios que não merecemos nem tampouco fizemos por merecer. Não fizemos nada, por exemplo, para merecermos a expectativa de vida relativamente maior de hoje. A maioria de nós aproveitamos, sem agradecer, como se fosse uma espécie de direito cósmico, os frutos dos esforços das gerações passadas. Na verdade, é possível até definir o progresso como sendo a quantidade de benesses que uma geração lega à seguinte, em comparação com as benesses que ela recebeu da geração anterior.
Claro que as pessoas não nascem com o mesmo nível de vantagem herdada. Ronald Coyne nasceu num berço de ouro, ou talvez folheado a ouro, em comparação com Ryan Davies. Essa disparidade seria injusta somente diante da hipótese de as benesses herdadas do passado poderem ser iguais: não só em relação a Coyne e Davies, mas em relação a todo mundo. Para que isso acontecesse, seria necessário um governo mundial com poderes que vão além dos sonhos de um Kim Jong-Un. Se para haver justiça é preciso algo assim, pior para a justiça.
Eliminar a vantagem relativa de Coyne seria ao mesmo tempo eliminar os incentivos para que alguém poupe, invista e preserve, porque, no final das contas, é para seus filhos que as pessoas querem transmitir os resultados de seus esforços, inclusive os intangíveis. Se fossem impedidas de fazer isso, por que não se contentariam em viver apenas o presente? Não pensar no amanhã tem lá seu encanto, sem dúvida, mas claro que isso não estimula a manutenção da civilização.
A culpa pelo próprio infortúnio
E quanto ao fato de Davies ser um morador de rua? Estranhamente, a impresa não demonstrou interesse em saber como ele acabou tendo de dormir nas ruas de Cambridge, como se o fato de ele ser um operador desempregado de guindaste (sua única ocupação) fosse explicação o bastante. Mas até mesmo em épocas difíceis – e, atualmente, a taxa de desemprego no Reino Unido é baixa – é preciso algo além do desemprego para se chegar a esse estado.
Parte considerável dos moradores de rua é de pessoas esquizofrênicas submetidas ao que hoje chamamos de “cuidados da comunidade”. Mas a mendicância tem outras causas também, entre elas o alcoolismo e o vício em drogas, ou melhor, o comportamento associado a essas duas condições.
Claro que se pode dizer que essas duas condições são algo que está além do controle do indivíduo. Os indivíduos podem, por exemplo, ter uma predisposição genética ao vício (embora isso não explique as diferenças entre os que sofrem e os que não sofrem com o vício). Ou podem ter passado por experiências de vida tão ruins que acabaram levados para os braços do infortúnio, isto é, do vício. Pode-se até mesmo atribuir a condição dessas pessoas ao preço da substância na qual são viciadas e, no caso do álcool, às políticas tributárias. Existe uma relação estatística entre o preço e o consumo de bebidas alcoólicas, e os órgãos reguladores do governo, ao reduzir os impostos “sobre o pecado” do álcool, permitiram que o preço das bebidas caísse para metade do que era há 60 anos. Quando o consumo médio aumenta, a quantidade de alcoólatras aumenta desproporcionalmente. Portanto, se Davies estava na rua por causa do alcoolismo, ele pode ser considerado uma vítima do governo, já que talvez não tivesse se tornado alcoólatra se o preço da bebida fosse mais alto.
Ainda assim, é improvável que ele não tenha contribuído em nada para chegar ao seu estado atual: por exemplo, alienando a família, já que o comportamento de bêbado não é puramente fisiológico, e sim uma questão de caráter, predileção e escolha. Na verdade, é bem provável que, por mais difícil que sua vida tenha sido em comparação com a de Coyne, suas escolhas não tenham sido as mais sábias e talvez tenham previsivelmente o levado ao desastre.
Por outro lado, se aceitamos o conceito completamente determinista da ação humana, a própria ideia de justiça perde sua aplicabilidade. Num Universo completamente determinista, nenhuma situação é merecida ou imerecida – elas simplesmente são. Portanto, o caso de Coyne e Davies não pode simbolizar a injustiça social ou qualquer outro tipo de injustiça. Se Davies foi, em grande medida ou totalmente, responsável por seu próprio infortúnio, o caso tampouco poderia ser considerado uma injustiça. Somos obrigados a recuar para a nossa posição original: o que nos horroriza, e deveria mesmo nos horrorizar, no comportamento de Coyne é sua frieza, uma vez que, mesmo que Davies seja o único culpado por sua situação, ela é profundamente desagradável, e devemos nos solidarizar com ele porque ele é um ser humano como nós. Fosse qual fosse a reação mais correta a seu pedido de esmola, não se pode admitir que queimar dinheiro diante dele esteja entre as alternativas.
Exposição e covardia
O episódio teve outros aspectos interessantes. Não se sabe direito quem filmou Coyne naquela noite de fevereiro, embora a explicação mais plausível seja a de que um colega dele, também aluno de Cambridge, tenha feito o vídeo. O fato de a pergunta não ter sido levantada nos relatos do incidente indica a quem ponto chegamos nisso de esperar que tudo o que fazemos provavelmente esteja sendo filmado.
Mas quem quer que tenha filmado a cena também a disponibizou online e Coyne foi imediatamente identificado – se pela pessoa que registrou a cena ou outro alguém, ninguém sabe. Foi a coisa certa a ser feita? A pessoa que filma Coyne não parece se esforçar para lhe aconselhar a não agir daquela forma: e, por pior que tenha agido, Coyne obviamente não era uma pessoa perigosa, prestes a atacar alguém que discordou dele.
Como deveríamos reagir em tal situação? Certa vez me deparei com essa pegunta em Nova York, na fila de uma lanchonete fast-food. O homem à minha frente, usando um terno caro, estava sendo grosseiro com os funcionários do outro lado do balcão porque eles lhe entregaram um pedido errado. Os funcionários, imigrantes peruanos recém-chegados ao país, não entendiam inglês perfeitamente e o homem os atormentava incessantemente. Será que eu deveria ter pegado meu telefone e filmado a cena, ou dito para o homem parar? Não fiz nada disso; só fiz sinal para os funcionários, querendo dizer com isso que achava que o homem estava sendo mau. Até hoje me arrependo da minha pusilanimidade – porque era disso que se tratava.
Pedido de desculpas
Meses depois do incidente em Cambridge, depois que a faculdade decidiu que ele podia continuar com seus estudos, Coyne pediu desculpas por e-mail, não para Davies, e sim para seus colegas alunos de faculdade:
Naquela noite, eu me esqueci do que significa estudar em Cambridge. Deturpei o significado de ser aluno desta faculdade (...) Cometi um erro terrível e enfrentei um processo disciplinar por causa disso. Tenho analisado o que me fez agir daquela forma graças a aulas que falam tanto do uso do álcool quanto da inclusão social.
Sinto muito pelos problemas que causei aos meus colegas. Não sei nem como expressar o remorso pela culpa que todos sentiram só de estarem associados a mim. Depois que as críticas na imprensa viralizaram, estranhos enviaram pilhas de cartas de teor violento para minha casa, me ameaçando de violência física e até de ataques químicos. Recebi algumas cartas de solidariedade e e-mails de pessoas que achavam que a violência virtual tinha ido longe demais. Ainda sou grato a essas pessoas.
Este pedido de desculpas é digno de análise, desde que se tenha em mente que se trata de um jovem escrevendo. Primeiro, ele se dirige não à vítima, e sim àqueles que supõe terem sofrido por estarem de alguma forma associados a ele – aquele tipo de sofrimento que às vezes parecer ser o único hoje em dia. Depois, Coyne meio que sugere que, se não fosse aluno de Cambridge, seu comportamento talvez não fosse considerado tão mau; não era tanto o seu comportamento digno de repreensão, e sim o lugar onde tudo aconteceu. Em terceiro lugar, o pedido de desculpas subvaloriza sua atitude ao sugerir que ele cometeu um deslize, um erro de cálculo – como se tivesse usado, digamos, o valor errado de π para estimar a área de um círculo.
Em quarto lugar, Coyne sugere que há causas subjascentes à sua conduta e que existe uma solução técnica para ela: aulas de orientação sobre alcoolismo e inclusão social. (Ele não menciona que Cambridge o obrigou a frequentá-las como uma das condições para que ele continuasse como aluno da instituição). Mas o que esses cursos ensinam? Um menino de 18 realmente tem de ouvir alguém lhe dizendo que as bebidas alcoólicas afetam a tomada de decisões? E as pessoas realmente têm de ser doutrinadas — sem dúvida com proposições políticas e econômicas dúbias — para saberem que é errado provocar e agredir outras pessoas? Ronald Coyne escreve sobre Ronald Coyne como se ele fosse outra pessoa, mais uma máquina do que um ser humano. E as escolas parecem ensinar os jovens a escrever em burocratês, a julgar por seu estilo.
Por fim, apesar de não se solidarizar com Davies, Coyne parece capaz de se autocompadecer; ao fim de seu pedido de desculpas, ele praticamente se torna a vítima do caso todo. O interessante é que ele parece mesmo acreditar, juntamente com algumas pessoas próximas, que a violência contra ele foi longe demais, deixando implícito que existe um nível adequado de violência. Este é um exemplo de como a crítica e a violência estão hoje misturadas na mente das pessoas, sendo que a violência é encarada como crítica.
Sem dúvida é crível que Coyne tenha recebido mensagens violentas pelo correio ou eletronicamente. Um website para futuros advogados britânicos publicou, entre outras coisas, o seguinte: “Ele tem um dos rostos mais ‘socáveis’ do mundo ou só eu que penso isso? Acho que não me cansaria de bater na cabeça dele”. (Uma linguagem incrivelmente semelhante apareceu nos Estados Unidos recentemente, entre tuiteiros condenando um grupo de alunos católicos que supostamente estavam zombando de um manifestante nativo-americano, naquilo que se tornou um dos mais recentes exemplos de como as redes sociais facilitam o pensamento de manada). E um homem que se fazia chamar de Savage Bastard [Bastardo Cruel] teve seu comentário removido porque violou as normas de conduta do site.
É triste quando os sentimentos morais de um homem como Ryan Davies, que dorme nas ruas, são imensamente superiores aos de futuros advogados. Apesar de a ação de Coyne ser revoltante, observou Davies, ele já passou por coisas piores: pedestres já lhe chutaram e cuspiram nele. Então talvez seja o caso de encontrarmos sofisticação moral nos nossos moradores de rua e crueldade moral em nossos advogados.
Visão cristã x visão secularista
O que o caso de Coyne ilustra é a superioridade da visão cristã sobre a visão dogmaticamente secular de uma situação como essa (e escrevo como agnóstico). O cristão aceita, sem necessidade de maiores reflexões, o dever da caridade para com os outros; ele reage instintivamente a seu sentimento natural de solidariedade em relação a Davies porque sabe que somos todos pecadores e que, não fosse pela Graça Divina, todos poderíamos estar na mesma situação. Deus também pode ser misericordioso em relação a Coyne.
O determinismo secular, que expressa o mesmo sentimento natural de solidariedade por alguém como Davies, tem de justificar este sentimento a si mesmo porque, se as pessoas são responsáveis por sua própria queda, a solidariedade já não lhes cabe. A forma mais fácil de o secularista justificar sua solidariedade é transformar pessoas como Davies em vítimas imaculadas, geralmente da sociedade. O secularista não percebe que, ao transformá-los em vítimas, ele os desumaniza: em essência, as vítimas se transformam em algo como uma ameba que reage a um estímulo químico. Mas negar a responsabilidade dessas pessoas por seu próprio infortúnio é algo que requer sofridos contorcionismos intelectuais e a aprovação mental daquilo em que o secularista não acredita realmente – porque não pode acreditar. O secularista dá voltas e voltas para provar a si mesmo algo que ele sabe, no fundo, ser uma mentira. O fato de ele não poder tirar do humano sua dimensão moral, uma dimensão que exige que vejamos o ser humano não como apenas amebas reagindo a estímulos químicos, é provado pela raiva geralmente extremada que ele sente daqueles que acredita terem agido mal — mas que, de acordo com sua teoria, devem ser tão autômatos quanto os que ele considera que agiram mal. Por isso é que aqueles que dizem que perdoam tudo porque compreendem tudo do ponto de vista científica, quando não com detalhes científicos, também são capazes de expressar uma crueldade extremada.
Talvez não devêssemos nos surpreender, pois, com o fato de que muitos daqueles que se manifestaram contrariamente ao comportamento horrível de Ronald Coyne o fizeram com uma violência que continha em si seu suposto humanismo.
Theodore Dalrymple é editor colaborador do City Journal e autor de vários livros, entre eles Não Com Um Estrondo, Mas Com Um Gemido e A Faca Entrou.
© 2019. Publicado com permissão. Original em inglês