“É bom mudar de nome. Quanto mais vezes, melhor. Confunde o inimigo.” Ao contrário de outros líderes comunistas, que ao longo do século 20 incentivaram o culto à personalidade, Saloth Sâr era adepto da discrição. Adotou diferentes apelidos ao longo da vida: Pouk, Hay, Primeiro Irmão, Irmão Mais Velho, Tio-Avô e Phem, além de “87” e “99”.
Entrou para a posteridade como Pol Pot, que significa algo como “o cambojano original”. Mas os próprios cidadãos do Camboja, na maioria, não o conheciam, nem mesmo no período da segunda metade dos anos 1970 em que ele liderou a destruição do país, que provocou a morte de quase um quarto dos cidadãos.
As reuniões entre os líderes eram secretas e aconteciam entre outros poucos homens, que também utilizavam apelidos. Do ponto de vista de uma pessoa comum, nascida no país e que teve a infelicidade de vivenciar os acontecimentos de 1975 e 1979, o governo era uma entidade sem rosto, conhecida como Khmer Vermelho – uma referência ao império Khmer, que controlou quase todo o Sudeste Asiático entre os séculos 9 e 15.
Mas não havia nenhum brilhantismo no novo Khmer. Ao contrário, a proposta de seus líderes era precisamente transformar o país de 181 mil quilômetros quadrados em um vasto espaço opaco. De um dia para o outro, não havia mais propriedade, nem bens pessoais, nem família, nem dinheiro (os rebeldes chegaram a produzir e mandar imprimir na China uma nova moeda, mas desistiram de utilizá-la).
Qualquer um, inclusive os dirigentes do país, utilizava o mesmo uniforme: túnicas negras, lenços vermelhos e sandálias feitas de borracha de pneus. Nas fazendas coletivas, sob condições precárias, todos trabalhavam na colheita – com exceção de alguns dos mais jovens, selecionados para receber treinamento militar.
Quando Pol Pot foi deposto, em 1979, a nação tinha 6,7 milhões de habitantes. Em 1975, eram 7,5 milhões. À parte o crescimento populacional natural, o país perdeu estimados 2 milhões de habitantes. Os assassinatos eram comuns, pelos motivos mais banais, mas a maior causa de fatalidade foi mesmo a fome, resultado da mais absoluta incompetência na gestão da coletivização da produção agrícola do país.
“Nos disseram para plantar arroz em uma quadra de basquete”, lembraria Long Visalo, que posteriormente se tornaria ministro e embaixador. “Não queríamos que quebrássemos o concreto, apenas cobrir com uma camada de terra. Eu pensava comigo: estas pessoas são maldosas.” Nas ruas da capital, Phnom Penh, buracos de um metro de profundidade eram cavados no asfalto para plantar tomates.
Do ponto de vista dos líderes do Khmer Rouge, era preciso reinventar o país, transformando-o em uma fazenda coletiva capaz de garantir a autonomia completa, sem qualquer interação com o exterior – em especial o Vietnã, inimigo de séculos e que, em janeiro de 1979, derrotaria os comunistas cambojanos e daria fim ao regime de terror.
Fazendas coletivas
Phnom Penh, aliás, tinha sido esvaziada, sem aviso prévio, em poucos dias, em abril de 1975. O Khmer Vermelho alegou que era preciso deixar a metrópole para evitar bombardeios americanos. Em três dias todos voltariam, os soldados disseram. A jovem Loung Ung e sua família acreditaram. Ela tinha apenas cinco anos. Viu o pai desaparecer e os seis irmãos seguirem diferentes destinos. Foi levada para um campo de treinamento militar do qual só saiu em 1980. Mudou-se para o Canadá, tornou-se ativista de direitos humanos, escreveu um livro autobiográfico e sua história inspirou o filme First They Killed My Father, de 2017, dirigido pela atriz Angelina Jolie.
Também abandonou a cidade o cirurgião Thiounn Thioeunn, que até então era ministro da saúde do Khmer Vermelho. Vindo de uma família de elite, ele havia aderido aos rebeldes por acreditar em mudanças no país. Sua filha Genevieve atuava como enfermeira voluntária em um hospital de campanha quando soube da vitória dos rebeldes. Comemorou eufórica, assim como a mãe, Mala, que planejou assar um bolo em comemoração – nunca teve a oportunidade, porque logo se viu morando em fazendas coletivas, sem camas nem banheiros. “Mala foi autorizada a visitar seus pais uma única vez, alguns meses depois, por poucas horas, em uma vila na província. Os dois morreriam de fome”, relata o jornalista britânico Philip Short na biografia Pol Pot – Anatomy of a Nightmare.
O líder misterioso deste genocídio viveria por 72 anos, até 1998. Desde a derrota em 1979 passaria o restante da vida tentando restaurar o território do Khmer Rouge – que, de certa forma, continuou existindo, em espaços limitados na floresta. Quem teve contato com ele relata: nada, no comportamento do líder de 1,73 metro, fala baixa e pausada e sorriso ambíguo no rosto, indicava que aquele homem era capaz de destruir completamente seu próprio país num período de apenas quatro anos.
Estudante limitado
As tentativas de omitir a própria identidade não resistiram ao tempo. Ao longo das décadas de 80 e 90, detalhes sobre a trajetória pessoal de Saloth Sâr vieram à tona (o nome “sâr” faz referência a seu tom de pele claro para os padrões locais). Nascido em 1925, integrante de uma família rica para os padrões da região de Prek Sbauv, um vilarejo localizado no nordeste do país, o garoto teve oportunidades incomuns para a maior parte de seus conterrâneos e contemporâneos. Seu pai detinha nove hectares de terras, onde plantava arroz, além de cabeças de gado. Um primo, Meak, trabalhou no palácio do rei Sisowath Monivong.
A família tinha ascendência khmer e chinesa, ainda que Sâr não falasse mandarim – no futuro, ao se encontrar com seu ídolo, o ditador chinês Mao Tsé-Tung, precisaria de tradutor para conduzir a conversa. Com seis anos, passou a morar com Meak na capital. Aprendeu preceitos básicos do budismo no monastério Wat Botum.
Recebeu educação formal na École Miche, uma escola católica francesa (o país colonizava o Camboja, que só se tornaria independente em 1953). Foi reprovado na escola por duas vezes, até completar os ensinos básicos em 1941. Seguiu para o equivalente ao ensino médio, onde aprendeu a tocar violino e atuou como ator amador em peças teatrais da escola. Também jogava futebol e basquete com frequência. Simpático, discreto, também dançava com alguma desenvoltura.
Em janeiro de 1950, Sâr fez parte de um grupo seleto de 21 estudantes que mudou para a França a fim de prosseguir os estudos. Mais uma vez, encarou grandes dificuldades intelectuais ao longo do percurso acadêmico, que acabaram por interromper sua passagem pelo país. Foram três anos em Paris, ao longo dos quais ele teve contato com o marxismo. Como admitiria depois, tentou ler as obras de Karl Marx, influenciado por um grupo de estudantes, inclusive futuras lideranças do Khmer Vermelho. Mas não entendeu os textos. Preferia acessar materiais panfletários creditados ao ditador soviético Josef Stalin e a Mao.
Um ponto em especial chamou a atenção dos jovens cambojanos influenciados pelo marxismo adaptado para a União Soviética e a China. “Mao, como Stalin, eram inflexíveis: ou você coopera com o Partido Comunista, ou se opõe a ele. E, no momento que se opõe, se torna um traidor”, aponta o biógrafo Philip Short. Sâr comprou este conceito. Ao retornar para o Camboja, passou meados dos anos 50 e toda a década de 60 acompanhando de perto as mudanças aceleradas que aconteciam a sua volta.
Stalin morreria em 1953. A Guerra do Vietnã começaria em 1955 e se estenderia até 1975, com profundos impactos para o Camboja. E a revolução cultural de Mao teve início em 1966 e forçou o abandono de qualquer expressão intelectual, acadêmica ou artística.
Em 1956, casou-se com Khieu Ponnary, a primeira cambojana mulher a conquistar um diploma de bacharelado. Nascida em 1920, ela também havia passado uma temporada em Paris – o casal escolheu, para celebrar a união, o Dia da Bastilha, 14 de julho, considerada a data de origem da Revolução Francesa. A violência do período do terror, entre 1793 e 1794, também influenciaria o líder comunista.
Ponnary se divorciaria em 1979. Diagnosticada com esquizofrenia, morreria apenas em 2003. Pol Pot se casaria uma segunda vez, em 1985, com Mea Son, com quem teria sua única filha, Sar Patchata – cujo casamento, em 2014, contou com convidados de toda a elite do país.
Caminho para a vitória
A partir de meados dos anos 1960, o Khmer Vermelho começou a ganhar espaço no interior do país. A operação de guerrilha contou com apoio moral crescente da população – o fato de os Estados Unidos terem lançado mais de 500 mil toneladas de bombas sobre as bases comunistas cambojanas não ajudou, já que o país era oficialmente neutro em relação à Guerra do Vietnã e as ações militares passaram a ser vistas como interferência nos rumos do país.
Boa parte da população, incluindo membros da elite cansados do regime monárquico, via nos rebeldes uma promessa de modernização do país. A falta de informações claras sobre os líderes e seus objetivos reais ajudou o Khmer Vermelho a colocar em prática seus planos assim que as principais cidades começaram a cair sob seu poder.
A agilidade na execução deixa claro: os rebeldes liderados por Pol Pot sabiam exatamente o que pretendiam fazer do país. E conseguiram, de certa forma. Em poucos anos, os sobreviventes viviam em condições precárias, utilizando roupas idênticas, afastados das famílias, sem qualquer incentivo para produzir alimentos a não ser o medo.
O Camboja ainda sofre para se recuperar do impacto do governo comunista. Atualmente, a população local está em 17 milhões de pessoas. Apenas aproximadamente 4 milhões vivem em cidades, metade na capital, que ainda não recuperou a população que tinha em 1975. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é apenas o 144º do planeta. A economia vem se diversificando e a renda per capita média vem subindo, ainda que permaneça em níveis baixos. É possível que o país precise de mais algumas décadas para alcançar padrões de qualidade de vida compatíveis com o restante do Sudeste Asiático.
“Não é que a vida não tivesse nenhum valor, e que os assassinatos se tornassem um ato sem consequências”, resume Short. “O que aconteceu é que um país inteiro foi lançado diante de um ideal distópico que negava tudo e qualquer coisa que parecesse humano.”
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