Nem jantar, baile ou viagem. Estudantes do 3º ano do Ensino Médio do Colégio Contemporâneo, em Curitiba, decidiram dar um destino diferente ao dinheiro que arrecadaram para a formatura. Eles ajudaram uma família de venezuelanos a fugir da ditadura de Nicolás Maduro rumo ao Brasil. A ideia surgiu depois que a turma conheceu o advogado e policial Julio Bernal Galindo, de 37 anos, que estava desempregado e havia deixado um cenário de fome e violência na Venezuela, em busca de trabalho na capital paranaense. Julio esperava juntar dinheiro para, um dia, conseguir trazer a esposa e os três filhos para o país.
Esse desejo se tornava cada vez mais urgente desde que a Assembleia Constituinte foi instalada por Maduro, a fim de reescrever a Constituição venezuelana. Uma série de direitos da população está ameaçada, entre eles, o de deixar a nação.
Leia também: Como o socialismo levou o país de maior renda per capita da América Latina à ruína
Neste contexto, uma corrente de solidariedade foi formada até que os quatro venezuelanos, Julio e os estudantes se cruzassem em Curitiba. Com ajuda de um amigo, Julio havia conhecido alguns brasileiros, que juntaram fundos para trazer o venezuelano para cá em julho e ajudá-lo a trabalhar com a instalação de rastreadores de veículos. A professora de Biologia da turma do Contemporâneo, Tatiana da Silva Pinto, 37, soube da história através do marido dela, que trabalha na mesma empresa que Júlio. Tatiana resolveu apresentar o venezuelano aos alunos, como forma de proporcionar à classe um relato do que está acontecendo no país vizinho. A aula interdisciplinar, no entanto, foi além do que a professora esperava.
Sensibilizados, os estudantes escreveram uma carta para o imigrante e doaram o dinheiro da formatura para trazer Malberlis, 43, Juliesca, 12, Danesca, 13, e Harold, 21, ao encontro dele. E mais que isso: a turma ajudou a organizar um esquema de logística e doação de roupas, móveis e eletrodomésticos para a família no Brasil. “Fiquei muito orgulhosa. Não imaginava que teríamos essa repercussão”, comenta a professora.
Articulação
Ao todo, os alunos investiram R$ 3,6 mil na travessia da família da Venezuela para Pacaraima, no interior de Roraima, e o transporte até Boa Vista, e depois para o Sul do Brasil. A jornada durou quatro dias, entre viagens por terra e de avião. Em Pacaraima, a família pegou um táxi para a capital. O tio de uma das alunas envolvidas, que mora no estado, recebeu o grupo em Boa Vista e o ajudou a ir para São Paulo. Já o esposo da professora de Biologia buscou a família em Guarulhos.
O encontro de Júlio e seus familiares com os estudantes ocorreu nesta quarta-feira (6), no colégio.
“É algo que nós não esperávamos que acontecesse. Não é muito comum alguém chegar e dizer para os venezuelanos: olhe, estudantes brasileiros compraram passagens para vocês irem para o Brasil. É mentira, pensamos. Mas não, era sério”, conta Harold. “Não é fácil sair do país, do que estamos acostumados, deixar nossa gente, mas conhecemos tantas pessoas boas que não temos palavras para agradecer”. Estudante de engenharia de sistemas na Venezuela, o jovem assinala que ele e a família vieram para o Brasil em busca do básico para o ser humano. “A promessa e a capacidade de entender o futuro, que não vai faltar nada para a sua família, isso não é possível na Venezuela”, define.
A família vive agora numa casa alugada em Curitiba e está entusiasmada para aprender a falar português e retomar a vida. A esposa de Julio, Malberlis, se entristece apenas quando lembra da mãe. Idosa, ela continuou no país governado por Maduro. “Ela não aguentaria fazer a viagem por terra”, lamenta, ao completar que pretende trazê-la para Curitiba assim que tiver condições.
Antes de tentar o Brasil, Julio e os familiares chegaram a ir para a Colômbia em busca de refúgio, porém sem sucesso. “Enfrentamos muita humilhação e xenofobia. Já no Brasil, encontramos verdadeiros anjos”, descreve Julio.
Lançar luz e solução
Os estudantes descrevem a ajuda à família de Júlio como um quebra-cabeça que foi se encaixando aos poucos. A turma tinha passado o Ensino Médio vendendo bolo no intervalo das aulas, no pátio da escola, para o encerramento do 3º ano. Mesmo assim, não sabia o que fazer com o dinheiro.
“Parecia que existia uma força maior que não nos deixava gastar isso. Foi quando conhecemos o Julio e pensamos na família dele. Percebemos que há gratidão, união e amor no coração das pessoas, inclusive dos nossos colegas de sala. Cem por cento aceitaram fazer a doação”, relata a aluna Ana Flávia Biobok Barros, de 16 anos.
A colega Yohana Santos, 16, estava satisfeita com a ação da turma. “Foi mais do que lançar luz ao problema, falar sobre isso. Nós lançamos uma solução”, pontua.
Situação bem pior
O caos vivido pelos venezuelanos, segundo Julio, é bem pior do que o que os brasileiros acompanham pelos veículos de comunicação. Ele calcula que só 20% do que acontece no país chega a ser divulgado, em função das limitações que jornalistas correspondentes encontram e da censura na imprensa local. “A situação ficou pior quando Maduro entrou no poder. Com Chávez, pelo menos havia comida. Agora, vemos pessoas que conhecemos emagrecendo, com o rosto lembrando uma caveira”, define.
Leia também: Um em cada quatro brasileiros é a favor do envio de tropas à Venezuela
Esta miséria, observa, está longe de atingir apenas a parcela mais pobre e sem estudos do país. Profissionais liberais, a classe média, todos estão enfrentando dificuldade de comprar o básico. “Quem tem muito dinheiro consegue comprar mercadoria de fora, de Miami, por exemplo. Os outros não”, relata. A falta de insumos na saúde também tem prejudicado a população de maneira geral. Julio chegou a perder um irmão de forma violenta depois que a crise se acentuou. Ele foi baleado ao fazer a cobrança de um serviço que prestou e não recebeu tratamento correto no hospital, por falta de estrutura.
Para o venezuelano, tudo isso é reflexo do regime político em vigor. “O socialismo é um câncer”, resume Julio.
Números da crise
De acordo com o Observatório Venezuelano de Conflitos Sociais, desde abril deste ano, mais de 160 pessoas já morreram em conflitos envolvendo forças armadas e manifestantes contra e a favor de Maduro. O número de protestos já passa de 4 mil no país.
Pelo menos 430 pessoas também já foram detidas neste ano por crime político na Venezuela, segundo o Fórum Penal Venezuelano.
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Deixe sua opinião