Andou reverberando nas redes sociais um artigo científico que “provava” que as ditaduras são sanitariamente melhores do que as democracias. O texto, contudo, não passa de uma tentativa desesperada de justificar “cientificamente” medidas mais restritivas, do tipo que as democracias simplesmente não permitem ou no mínimo questionam. Na pior das hipóteses, trata-se de um panfleto pró-China com um monte de referências bibliográficas mesmo.
O artigo científico “Political Regimes and Deaths in the Early Stages of the COVID-19 Pandemic” [Regimes políticos e mortes nos primeiros estágios da pandemia de Covid-19], de autoria de Michael T. Dorsch e Réka Branyiczki, da Central European University, juntamente com o brasileiro Gabriel Cepaluni, da UNESP, é um belo exemplo de como a ciência está sendo usada ideologicamente em meio ao caos gerado pelo coronavírus.
O leitor que se interessar pelos pormenores do trabalho, contudo, perceberá que ele também é didático ao expor toda uma mentalidade que permeia o mundo acadêmico, sobretudo no campo das ciências humanas. Essa mentalidade se caracteriza, entre outras coisas, pela linguagem marcada por eufemismos políticos (como a opção pela expressão “países menos democráticos” em vez de “ditaduras”) e pela necessidade quase desesperada de encontrar respaldo nas ciências exatas para qualquer conclusão ideológica a que se chegue.
Dilema
Já na introdução somos apresentados à premissa que pontua todo o trabalho, e que de objetiva não tem nada. “Usando várias técnicas empíricas, mostramos que os países mais democráticos tiveram mais mortes per capita, registraram mortes precoces e foram menos rígidos e eficientes em suas medidas políticas”, escrevem os autores. E, logo em seguida, eles elencam as muitas variáveis que escolheram analisar e tabular para chegar a essa conclusão e, assim, ganhar as manchetes dos portais de notícia.
Essa frase joga por terra qualquer noção da ciência como uma atividade baseada somente em fatos objetivos observados por um homem superior e também ele objetivo. O caráter enviesado do estudo (um viés natural, diga-se de passagem, simplesmente porque é impossível observar objetivamente certos fenômenos de natureza política) fica claro logo em seguida, quando os pesquisadores dizem que “os resultados são preocupantes para os defensores da democracia liberal”.
No original, em inglês, os autores usam a palavra “sobering”, cuja tradução “preocupante” é menos do que exata. “Sobering”, no caso, pressupõe que “os defensores da democracia liberal” estão embriagados com os valores dessa mesma democracia e que, depois lerem o artigo, que neste caso equivale a um remédio contra ressaca, perceberão que a realidade é menos colorida do que o efeito inebriante da liberdade dava a entender.
Ainda na introdução, os autores do artigo dizem que, “em geral, os cientistas sociais” concordam que os governos democráticos geram resultados econômicos, sanitários e sociais melhores, graças a processos de tomada de decisão mais bem informados, rigorosos e responsáveis. Mas”, continuam eles, “as mesmas características da democracia (...) limitam a velocidade e a força das tomadas de decisões”. Logo, para os autores, a democracia se vê numa encruzilhada e precisa escolher entre a manutenção das liberdades e da privacidade ou a contenção do vírus.
É a partir deste dilema ideológico que se dá a coleta de dados, a tabulação, a análise e a conclusão que, como se verá, tem muito pouco de científica. Aos que torcem o nariz e ainda acreditam que ciência não pode ser contestada com opinião, sugiro uma olhada rápida nas variáveis escolhidas pelos autores do estudo. Elas ajudam a entender por que é impossível eliminar completamente o caráter subjetivo da ciência – sobretudo quando se trata das ciências humanas.
Subjetividade e obediência
É assim que, usando dados sobre liberdade, corrupção e desempenho das instituições, os autores criam fórmulas matemáticas na tentativa de chegar a uma conclusão sólida em seu intento não-declarado de mostrar que as ditaduras são mais eficientes em impor medidas de força que teriam consequências sanitária benéficas.
Numa tentativa científica de incluir o máximo de variáveis possíveis e, assim, compensar problemas como a confiabilidade dos dados e a subnotificação das mortes causadas por Covid-19, principalmente nos primeiros 100 dias desde o registro do primeiro óbito, os autores incluem dados como PiB per capita, porcentagem de clima tropical, densidade populacional, nível de comércio internacional e fechamento ou não das fronteiras (aeroportos).
E é assim que eles chegam a uma conclusão estarrecedora, mas desprezada como uma simples correlação: países mais corruptos também têm menos mortes per capita por Covid-19. Não, não estou inventando. Está lá na página 10 do estudo. Claro que isso tem uma explicação no mundo fático: ditaduras têm níveis de corrupção muito mais altos do que as democracias, pelo simples fato de que elas concentram muito poder nas mãos de uns poucos tomadores de decisão.
Mas, por algum motivo, não se leu nenhuma manchete dizendo que “estudo mostra que altos níveis de corrupção ajudam no combate ao coronavírus”. Não só porque há uma narrativa a ser preservada como também porque há limites até mesmo para as picaretagens acadêmicas.
Outro ponto importante a se destacar no estudo é a ênfase meio constrangida que os autores dão à “disposição dos cidadãos em obedecer às autoridades”, que evidentemente é menor nas democracias e muito maior nas ditaduras, que contam para isso com um importante aliado: o medo. Tangencialmente, os autores acabam por legitimar essa obediência proveniente do medo natural em regimes de exceção. Ao que parece, para eles tudo é válido em nome da segurança sanitária.
Caráter explicitamente ideológico
Quando chegamos às considerações finais do estudo, nos deparamos com o lado mais explicitamente ideologizado dessa ciência. Escrevem os autores e os grifos são meus:
Acreditamos firmemente no valor inato da liberdade e das liberdades civis da democracia. Mas, as instituições democráticas e os cidadãos que nelas vivem devem desenvolver estratégias emergenciais para reagir rapidamente e com mais eficiência a pandemias futuras ou crises semelhantes. Entre essas estratégias talvez estejam processos mais rápidos de tomada de decisão que imponham restrições desagradáveis às liberdades individuais. Em nossa opinião, a incapacidade de se lidar eficientemente com as pandemias impõe um risco à confiança do povo nos governos democráticos, o que poder contribuir para a reversão democrática que já está ocorrendo em algumas regiões do mundo. Abdicar de algumas liberdades no curto prazo, dentro das instituições democráticas, pode ser necessário para que se garanta as liberdades futuras das instituições democráticas.
Aqui os autores rompem qualquer compromisso com a objetividade inequívoca das equações matemáticas e se entregam ao proselitismo político ao dizer o que os cidadãos devem fazer nas epidemias futuras – que curiosamente são dadas como certas. Eles devem, antes de mais nada, se sujeitar a governos capazes de tomar decisões desagradáveis, mas supostamente eficientes.
E, para finalizar com uma honestidade surpreendente, os autores propõem que, uma vez constatado que as ditaduras são melhores do que as democracias na contenção do coronavírus, os cidadãos dos países mais livres abdiquem aqui e ali de uma liberdadezinha hoje em nome de uma liberdadezona no futuro. Do contrário, alertam eles, podemos ter reversões democráticas como as que vemos em regiões do mundo. Alguém arrisca dizer de que reversões democráticas os autores estão falando?
Sem usar equações falsamente objetivas e dados que se moldam perfeitamente ao pressuposto, Benjamin Franklin, no século XVIII, chegou a uma conclusão bem diferente e, arrisco dizer, acertada, ao alertar que “aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”.
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