Em junho, informamos aos leitores que havia um grupo de drogas com resultados promissores para tratar COVID-19 em seus estágios iniciais. As principais drogas para o tratamento precoce eram a ivermectina, budesonida e fluvoxamina. Dessas, a ivermectina perdeu o estrelato. A budesonida continuou bem corroborada.
Já a fluvoxamina acaba de ganhar mais corroboração de um estudo internacional realizado em Minas Gerais envolvendo 1.500 pacientes. O estudo é de um grupo internacional envolvendo universidades do Canadá, Estados Unidos e a PUC Minas, onde é coliderado pelo pesquisador brasileiro Gilmar Reis. Antes de falar do novo estudo, é preciso explicar o que houve com a ivermectina.
O que aconteceu com a ivermectina?
Três fraudes, basicamente. Ou, no mínimo, estudos com graves defeitos metodológicos, como números impossíveis de se obter na realidade. Um desses estudos defeituosos recomendava a ivermectina como profilático (uso contínuo preventivo, que não é tratamento precoce). Dois desses estudos davam uma base falsa ao uso da ivermectina para redução de mortalidade em pacientes cujos sintomas evoluíram para o quadro hospitalar, o que também não é tratamento precoce. É importante lembrar que houve fraudes e erros crassos contrários ao uso da ivermectina.
Em ciência, as decisões deveriam ser baseadas nas evidências, em primeiro lugar. Mas tudo o que envolve o fator humano é mais complicado que isso. Alguns defensores do uso da ivermectina como tratamento precoce prontamente abandonaram essa defesa quando foi publicada em setembro uma carta na prestigiosa revista Nature relatando essas fraudes em estudos favoráveis à eficácia da droga. As metanálises (estudos dos estudos) deverão ser refeitas com a exclusão das fraudes. A carta é importantíssima, pois sugere que o caminho para o futuro é examinar os dados brutos dos estudos reanalisados, levando a sério a possibilidade de esses dados terem sido fabricados.
O resultado disso tudo é que a ivermectina perdeu sua posição de estrelato: se ela tem eficácia como tratamento precoce, é menor do que a que foi relatada antes da descoberta das fraudes. Afirmar a ineficácia agora, no entanto, seria prematuro. Kyle Sheldrick, um dos autores da carta, menciona quatro estudos clínicos randomizados e controlados da ivermectina cujos autores se revelaram probos e cujos dados não tinham qualquer sinal de fraude: Babalola, Lopez-Medina, Mahmud e Vallejos.
Em três desses, com exceção de Vallejos, os pacientes que tomaram ivermectina se saíram bem melhor do que os que não tomaram. No estudo de Vallejos, os grupos não foram distinguíveis e a dose de ivermectina foi baixa. No estudo de Mahmud, o tão desejado valor p baixo, cuja interpretação inadequada foi criticada neste texto por ser um dos motivos para a rejeição dogmática desse tratamento, foi atingido (p = 0,003). Valor p indica a probabilidade de não haver diferença entre o grupo que tomou e o que não tomou o remédio. Quando não se atinge um valor p inferior à marca convencionalmente aceita de 5%, entende-se que não se pode afirmar que há eficácia, o que é diferente de se afirmar ineficácia — que é a confusão de muitos.
Quatro estudos não são suficientes para bater o martelo, mas esse é justamente o ponto principal: o martelo não foi batido e quem alega que há “comprovação de ineficácia” faz isso por outros motivos que não o estado das evidências. Se as análises pararem aqui e a questão da eficácia ou ineficácia da ivermectina como tratamento precoce para Covid-19 nunca for respondida, quer dizer que venceu um tabu político, dando uma resposta negativa à pergunta do título do artigo de junho.
O estudo
O estudo publicado na última quarta-feira (27) pelo dr. Gilmar Reis e colegas na revista Lancet Global Health é resultado de uma colaboração do grupo TOGETHER, envolvendo pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, da Universidade McMaster, do Canadá, da Universidade de Washington em St. Louis e outras.
O propósito do grupo, ao ser formado, foi achar entre medicamentos já conhecidos e seguros algum que tivesse efeito como tratamento precoce da COVID-19. O grupo descartou a eficácia da hidroxicloroquina, da ivermectina, e agora demonstra com mais rigor a eficácia da fluvoxamina, corroborando o estudo piloto que mencionado pela Gazeta do Povo em junho.
A droga é um antidepressivo das classes dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina. O que isso significa é que, quando o cérebro libera uma substância associada ao bem-estar, esses antidepressivos fazem com que ela fique mais tempo disponível antes de ser reciclada pelas células. A fluvoxamina é similar à famosa fluoxetina, que está na lista de medicamentos essenciais da OMS.
Os pacientes foram recrutados em onze localidades de Minas. Foram considerados quase dez mil deles, os incluídos no estudo da fluvoxamina foram 1.497. A idade média dos pacientes é de 50 anos. Com escolha aleatória, metade ganhou a droga, metade tomou uma pílula inerte (placebo). O grupo que tomou a droga teve uma redução de 32% na evolução de sintomas que leva à hospitalização relativamente ao grupo que não tomou. Uma só pessoa que tomou fluvoxamina morreu, em comparação a 12 mortos no grupo do placebo.
Um grupo de pacientes não gostou dos efeitos colaterais da droga e abandonou o tratamento. Os que completaram o tratamento se saíram ainda melhor. Subtraindo as porcentagens de quem piorou nos dois grupos, obtém-se a assim chamada redução absoluta de risco, que neste caso foi de 5% para quem tomou fluvoxamina. Em se tratando de pandemia, 5% fazem grande diferença.
A heroína por trás da história
Modestamente listada entre os quase 30 autores do estudo, por trás de um botão do site, está a dra. Angela Reiersen. A ideia de usar a fluvoxamina foi dela. Psiquiatra infantil, há muitos anos a doutora avaliou um grupo com síndrome de Wolfram, causada por uma mutação de um gene que participa da função do retículo endoplasmático nas células. Os pacientes com a síndrome têm diabetes (ambos os tipos), perda progressiva de visão e audição, além de dificuldades motoras e de equilíbrio. Tudo isso resulta de uma perda da capacidade de modular a resposta do retículo endoplasmático a estresse. Alguns desses pacientes se beneficiavam ao tomar fluvoxamina. Em 2019, Reiersen encontrou um artigo que relatava que a fluvoxamina também ajudava camundongos com um defeito similar de modulação do retículo endoplasmático, reduzindo sua morte por tempestade de citocinas (sinalizadores do sistema imunológico) em inflamações. Tempestade de citocinas é justamente o que mata os pacientes com COVID-19 grave. Em março de 2020 ela propôs sua hipótese de uso da fluvoxamina neste sentido, e daí foi feito o estudo piloto.
A ousadia da dra. Reiersen é exatamente o que foi defendido no artigo de junho: os médicos devem ser livres para especular, encontrar plausibilidade bioquímica no que estiver disponível na farmácia para uma nova doença, especialmente numa emergência. É esta autonomia médica que está sob ataque no Brasil.
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