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Eu li anotações privadas de Woody Allen e posso dizer: ele é obcecado por meninas adolescentes

Woody Allen em cena do filme “O Escorpião de Jade” | Divulgação
Woody Allen em cena do filme “O Escorpião de Jade” (Foto: Divulgação)

Woody Allen está fazendo um filme novo. Brincadeira: ele não faz filmes novos. O filme que ele está editando agora, "A Rainy Day in New York" ("Um dia chuvoso em Nova York", ainda sem título oficial para o português), sobre um triângulo amoroso entre universitários, poderia, assim como qualquer um de seus filmes, se chamar "Uma mulher é objetificada por um homem". 

Isso, em seu ponto de vista, é o ponto central da arte, seu maior propósito. Principalmente quando isso envolve mulheres jovens sendo atraídas por homens sem graça simplesmente pela atração provocada pela obsessão masculina. 

Eu sei disso porque vi sua carreira de perto – li todos seus rascunhos e rabiscos, em seu espaço físico e psicológico disponível em uma sala na Universidade Princeton (que ele não frequentou), onde ele faz a curadoria de documentos seus de até 57 anos desde 1980. 

De acordo com a equipe do setor de livros raros da Biblioteca Firestone, eu fui a primeira pessoa que leu toda a coleção Allen – conhecida como Woody Papers – da primeira à última página. E, do começo ao fim, Allen é simplesmente e repetidamente misógino. 

Allen, que já foi indicado a 24 Oscars, nunca precisou de ideias além de um homem sem graça e sua bela conquista – um conceito que usou para fazer filmes sobre Paris, Roma, Barcelona, Manhattan, jornalismo, viagem no tempo, revolução comunista, assassinato, escrita, Dia de Ação de Graças, Hollywood e várias outras coisas – porque ela já rendeu muitos frutos para a sua carreira. 

Os arquivos de Allen são um jardim de rejeitados – décadas de anotações, histórias e desenhos que o prolífico diretor exilou, por algum motivo, para uma terra sombria entre um comprometimento total e uma posse não tão total assim. Seus roteiros são frequentemente freudianos e geralmente são protagonizados por ele (ou um avatar de si mesmo) usando a seguinte fórmula: uma relação que beira o fracasso é levada ao caos pela introdução de alguém de fora, quase sempre uma jovem mulher. Às vezes, isso produz um ótimo filme, como "Match Point". Frequentemente não é isso que acontece. Ellen Page, que encenou o filme de 2012, "Para Roma com Amor", disse que trabalhar com Allen foi "o maior arrependimento” de sua carreira. 

O trabalho de Allen é constantemente grosseiro. Acessar todas as caixas do arquivo é perceber uma obsessão insistente e vívida por mulheres jovens e meninas: é ver o personagem "rico, educado, respeitado" de um dos contos ("By Destiny Denied: Incident at Entwistle's"), que mora com uma indiana de 21 anos. Primeiro, as revisões de Allen diminuem sua idade para 18. Depois ele a dobra, e a personagem se torna duas mulheres de 18 anos. 

Entre seus personagens, existe também uma menina de 16 anos descrita como "uma loira sexy com um vestido de noite vermelho e curto, com uma fenda de um dos lados", presente em uma proposta de televisão que não chegou a ser concretizada. 

Existe também uma personagem de 17 anos em outro conto, "Consider Kaplan", pela qual o vizinho de 53 anos se apaixona depois dos dois compartilharem uma viagem de elevador no prédio. 

Existe a universitária de "Rainy Day", que "não deve ter 20 ou 21, mas sim 18 – ou até 17 – mas 18 parece melhor". O roteiro inclui um universitário, mas não descreve sua idade. Outro personagem masculino de Allen, em um rascunho de 1977 chamado "The Kugelmass Episode", é um homem de 45 anos fascinado por alunas da City College de Nova York. Nas margens desse texto, Allen escreve: "c'est moi" – sou eu. 

Sua assessora, Leslee Dart, se recusou a responder os vários pedidos de comentar essa reportagem. Recluso por natureza, Allen chegou a reclamar do momento em que surgiram as reclamações sobre Weinstein, alertando na BBC sobre uma "atmosfera de caça às bruxas, como Salem, em que qualquer homem em um escritório que já piscou para uma mulher deve procurar um advogado". Ele parece achar que colegas de trabalho piscam uns para os outros o tempo todo. 

Ele prefere falar sobre sua arte e sua ficção mais do que sobre sua vida ou cultura. Mas veja o quão rápido sua escrita muda num rascunho de "My Apology", um conto dele: "de todos os homens famosos que já viveram, o que eu gostaria de ter sido era Sócrates. Não só porque ele era um pensador incrível, porque eu sou conhecido por ter alguns pensamentos profundos também, ainda que os meus invariavelmente envolvam duas garçonetes de 18 anos e algumas algemas". (Na versão publicada desse conto, o objeto do desejo do narrador se torna uma aeromoça cuja idade não é mencionada). 

Em outro rascunho, "My Speech to the Graduates", ele reclama que "a ciência falhou. É verdade, ela achou cura para muitas doenças, descobriu o código genético e até levou homens para a Lua. E ainda assim quando um homem de oitenta anos é deixado em um quarto com duas garçonetes de 18 anos, nada acontece". Um rascunho do conto "The Lunatic's Tale" contém uma parte longa sobre um homem traindo sua mulher com uma "modelo fotográfica" antes de concluir que "a questão é que minhas necessidades exigem o melhor de duas mulheres". 

E ele não restringe essas necessidades para mulheres fictícias. Em uma entrevista falsa, ele escreve sobre a atriz Janet Margolin, que teve papéis em "Noivo neurótico, noiva nervosa" e "Um assaltante bem trapalhão": "ocasionalmente eu precisava fazer sexo com ela para ela encenar de forma decente. Eu fiz o que eu precisava fazer, como negócios mesmo" (Margolin morreu em 1993). 

E aqui está o que ele escreveu como legenda de uma foto imaginária da socialite espanhola Nati Abascal, que trabalhou com ele em "Bananas": 

"Ela podia atuar? Sim, eu descobri. Ela bloqueou a minha mão quando eu alcançava sua coxa e trouxe seu joelho perigosamente perto da minha virilha enquanto discutimos negócios… eu tirei o contrato do bolso e nós dois assinamos, mas não antes de eu contar para ela sobre as obrigações sexuais que faziam parte de trabalhar como atriz para mim". 

Allen continua: "eu comecei a gostar do corpo dela, um corpo de menina, como ele era com o tempo… Logo ela se acostumou com meu jeito. Consciente da minha posição paternal no set de filmagem (um diretor é exatamente isso), eu permiti que ela me buscasse com seus problemas. Quando ela não aparecia, eu ia falar com ela sobre os meus problemas". Os representantes de Abascal não responderam os pedidos de comentários sobre essa questão. 

É provável que os trechos sobre Margolin e Abascal tenham sido escritos como paródias, mas estão muito relacionados com a função que as mulheres parecem ter realmente na vida de Allen, que as vê como se elas tivessem implorando para entrar na vida dele – mesmo quando as relações envolvidas não são sexuais. Quando Coretta Scott King pediu que ele fosse diretor honorário da Comissão do Feriado Nacional Martin Luther King Jr., Allen disse para a sua assistente, Norma Lee Clark (que anotou o comentário nas margens da carta): "ok, mas só se eles escreverem novamente para pedir".

Mas espere! Allen cria papéis incríveis para mulheres! Bom, mais ou menos. O fato de que seu trabalho rendeu tantas nomeações e prêmios para atuações de mulheres – Penélope Cruz, Rebecca Hall, Mariel Hemingway, Diane Keaton, Geraldine Page, Maureen Stapleton, Dianne Wiest – é uma piada dentro de outra: seus troféus têm troféus. Allen usou Keaton e outras da mesma forma que Harvey Weinstein usou Meryl Streep: um Oscar é brilhante o suficiente para cegar aspirantes a atrizes para entrar no seu jogo sujo, ainda que algumas percebam o que está acontecendo e participem mesmo assim. 

"Ele não é falso. Ele é exatamente quem ele é, o tempo inteiro", disse Miley Cyrus sobre Allen para a Vanity Fair no lançamento do programa de televisão deles, "Crisis in Six Scenes". Quando a revista Billboard perguntou para Selena Gomez, que participou de cinco testes de elenco para participar de "Rainy Day", se ela tinha levado em consideração o passado de Allen – se referindo principalmente às alegações de que ele teria abusado de uma das filhas de sua namorada e começou uma relação inapropriada com outra – antes de aceitar o papel, ela respondeu: "Isso é algo que, sim, eu tive que encarar e discutir. Eu dei um passo para trás e pensei: 'Nossa, o universo funciona de jeitos interessantes'". 

Kate Winslet justificou sua participação em "Roda Gigante" dizendo: "na realidade, eu não sei de nada, se tudo isso é verdade ou mentira. Pensando bem, você deixa isso de lado e trabalha com a pessoa".  

A atenção de Allen a detalhes é evidente quando se lê seus escritos – ele escreve e reescreve, inventa e destrói personagens, se insere e se remove de roteiros. Ele se preocupa com detalhes insignificantes: "encolher os ombros" vira "rir", que por sua vez vira "gargalhar". Mas esses retoques ficam estranhos quando se fala de mulheres. Em um roteiro chamado "Cloquet & Brisseau: The Chair", ele transforma "pernas boas" em "pernas ótimas", que então se transforma em "peitos enormes" e, por fim, "pernas longas e bronzeadas". 

Às vezes Allen se coloca em seu trabalho mas, mesmo quando não está, seus personagens são substituições óbvias de si. Em um conto que se passa completamente na mente de um homem chamado Moses Rifkin, ele escreve: "Ao contrário da menina judia – a shiksa não é levada pela culpa – não é uma reclamona – ela é livre, divertida de amar, e promíscua. A shiksa está disposta a fazer tudo no sexo". 

Em "Rainy Day", Roland Polland, um diretor de filmes fictício, confessa para uma jovem universitária: "eu não corri riscos porque a deusa vadia do sucesso abriu suas pernas no meu cérebro". Mas isso é Roland Polland, não Woody Allen. O "c'est moi" está sempre riscado. Ele é Alvy Singer, Moses Rifkin, Isaac Davis, Sandy Bates, Zelig.  

Em um projeto extremamente revelador que ele nunca chegou a concretizar, ele mostrava seu verdadeiro eu. "The Filmmaker" é um roteiro escrito em parceria entre Allen e Marshall Brickman no fim dos anos 60 ou começo dos 70. É sobre um documentarista que arranja um bico gravando filmes pornográficos "como Fellini", mas só porque ele é "uma espécie de gênio do cinema que precisa de dinheiro". 

O nome do personagem? Woody Allen. 

O Woody fictício está noivo de Susan, que trabalha no Museu de Arte Moderna como vendedora de livros. Seu trabalho e seu interesse em música fazem dela uma intelectual – ou ao menos culta – o que a destrói aos olhos dele. É um relacionamento frio. Um dia, enquanto filmava em um instituto de saúde mental, o Woody fictício conhece Jennifer, uma "menina". Ela é esquizofrênica.  

Jennifer: "Existe algo em você que parece me fazer reagir. Eu suspeito que você seja potencialmente uma pessoa forte… profunda… e que você sofre muito". 

Woody: "Eu… você sabe..." 

Jennifer: "Um dia você vai ser um ótimo artista. Isso está nos seus olhos". 

Woody: "Você tem o melhor rosto que já vi na minha vida. É verdade". 

Ele então larga Susan no altar. 

O Woody fictício se apaixona pela Jennifer da mesma maneira que o Woody real e seu co-roteirista sabem como descrever: à primeira vista, cosmicamente, instintivamente, arrebatadoramente e então, como se isso fosse um elogio, obsessivamente.No mesmo padrão do homem de 53 anos do elevador, que manda uma carta para sua vizinha de 17 anos. 

Os conteúdos daquele bilhete de amor são instruções para o que Allen entende como namoro e, em termos criativos, sua noção de como a química se forma entre dois personagens. Reproduzo o bilhete escrito pelo personagem na íntegra: "Eu te vi rapidamente há alguns dias e não parei de pensar em você. Ainda que tenhamos compartilhado de uma viagem normal e rápida de elevador – um andar, para ser exato – eu temo que minha vida nunca mais será a mesma. Por favor, me encontre para beber algo alguma noite desta semana. Eu moro na cobertura. Eu imploro, não diga não. Se por algum motivo você não puder compartilhar meus sentimentos, o pior que vai acontecer é você me ouvir falando sobre o quão adorável você é enquanto tomamos um martini". 

Ainda que a idade em que se é permitido beber nos EUA tenha aumentado de 18 para 21 em 1986, em nenhum momento da vida de Allen teria sido legal para um homem oferecer um martini para uma menina de 17 anos. Mas esse é o homem que, aos 43 anos, se deu de presente o primeiro beijo da Mariel Hemingway – da própria atriz, que então tinha 16 anos, não da personagem interpretada por ela – no set de filmagem de "Manhattan". (Depois, ela se lembraria em uma entrevista que ela correu até o produtor Gordon Willis e chorou. "Nunca mais vou precisar fazer isso, né?"). Ele está disfarçando crime de arte. Hemingway se recusou a comentar o fato. 

De várias maneiras, Allen frustra as pessoas porque ele parece gostar de dançar na beira do escândalo. Não há nada criminoso em um homem de 82 anos ter uma fixação por meninas de 18 – não é tão ruim quanto casos mais sérios de assédio sexual. Mas é profundo e anacronicamente repugnante. 

Mais do que isso, ele parece não se importar em melhorar ou mudar de alguma forma. Ele vive, pensa e cria como ele fazia em 1970, há quase meio século. Ele é um lembrete que o nosso futuro, por mais consciente que seja, não estará repleto de oradores que buscam justiça social e citam James Baldwin e Roxane Gay. Existirão ignorantes no séc. 22, permanecendo mais tempo que deveriam. Allen é pior que o prognóstico dos trolls do amanhã: ele é um modelo, uma validação.  

Na era do #MeToo (#EuTambém, hashtag criada para que pessoas compartilhem suas experiências com assédio sexual), um argumento moral vulgar se calcificou por amar a arte e odiar o artista, se baseando na ideia de Walter Benjamin de que "a base de todo grande trabalho de arte é uma pilha de barbárie". Allen está inserido nessas conversas, dado o trágico começo do seu casamento atual, que começou quando ele iniciou uma relação sexual com uma das filhas da sua então namorada – a ex-enteada é sua esposa há duas décadas. Ele descreveria o relacionamento depois: "Eu era paternal. Ela reagiu a alguém paternal. Eu gostava de sua juventude e sua energia". 

A ideia de amar a arte vê a arte como um produto finalizado, polido e embalado para o público. Mas quais são os pensamentos que entram na produção de uma obra? As emoções? As prioridades? A maldade? Toda arte é parcialmente autobiográfica, já que ela vem da mente e da alma de alguém. E os arquivos de Allen mostram exatamente o que está na alma dele.

Tradução de Gisele Eberspächer

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