A vida é curta demais para ler tudo o que queremos. Um contemporâneo de Marco Túlio Cícero poderia ter a expectativa de ler tudo o que há de bom, pela simples razão de que poucas coisas haviam sido escritas. Ele tinha Platão. Nós temos Platão e Machado de Assis. E Gógol, e Swift, e… E tem gente que lê Jones Manoel.
Mas vá lá: nós não lemos todos os clássicos perenes que queremos, e ainda assim lemos uma porção de coisas de curta duração. Precisamos ler jornais para nos inteirarmos das coisas que nos afetam, e convém ler textos que pensam as coisas que despertam nossa curiosidade. Para que um texto desse último gênero seja útil, é preciso que lance luz sobre as coisas. Quem pretende que Jones Manoel esclareça alguma coisa?
Por alguma razão, porém, parte do Brasil resolveu se pautar pela discussão da obra (que consiste em tuítes) do youtuber stalinista.
Taxonomia do stalinista
Em mim, Jones Manoel desperta um profundo tédio. Daí não querer falar dele, nem ir analisar seus tuítes com a curiosidade de quem se depara com uma bizarrice. A única vez em que consegui me surpreender com a aceitação do stalinismo foi quando de fato vi um universitário na estadual de Feira de Santana usando um broche com a cara de Stálin. Ele cuidava de uma urna numa eleição e eu tinha ido lá fazer seleção de professor substituto. Fui tirar satisfação e perguntei o que ele achava do Holodomor. A resposta é que era tudo invenção da CIA. Se não me falha a memória, era um militante de um tal PCR, Partido Comunista Revolucionário, que tenta obter registro junto ao TSE.
A acompanharmos Paim, um stalinista não é diferente de um marxista-leninista, pois Stálin era um bom discípulo de Lênin, e foi ele quem sistematizou a “vulgata marxista” difundida pela propaganda soviética. Com o Relatório Kruschov, Stálin foi transformado em bode expiatório post mortem, e todos os males da União Soviética foram atribuído à pessoa de Stálin, como se não houvesse nada de errado em suas ideias. No entanto, o Relatório Khrushchov desencadeou uma série de rachas e rupturas no comunismo internacional: alguns abandonaram o comunismo e se converteram à democracia; outros se subdividiram entre uma miríade de tiranos e tiranetes comunistas. O herdeiro óbvio era o “Grande Timoneiro” Mao, e quem o siga se diz maoísta. O PCdoB resolveu seguir o obscuro “Farol do Socialismo” Enver Hoxha, ditador da Albânia, sendo portanto um partido hoxhaísta. Hugo Studart, em seu novo livro sobre a Guerrilha do Araguaia (Borboletas e Lobisomens, ed. Francisco Alves, 2018), conta que os militantes do PCdoB receberam como apoio da Albânia, não armas, não dinheiro, senão programa de rádio: jovens desmiolados na Amazônia brasileira ouviam uma rádio sediada em Tirana tecendo maravilhosos elogios à sua guerrilha em português. E já que falamos em guerrilha, o Sendero Luminoso, do Peru, idolatra Marx, Engels, Lênin, Mao e Abimael Guzmán, um professor de filosofia e líder terrorista outrora conhecido como Presidente Gonzalo.
Resumindo: as facções marxistas soem ser marxistas-leninistas-fulanistas. A variável (Fulano) é o tirano que assumiu ou pretendeu assumir a liderança de uma guerrilha vitoriosa. Como os comunistas são metidos a intelectuais, o Fulano terá uma obra em que prega um método de tomar o poder e dá lições de economia. Na ausência de um Fulano, ou seja, quando se diz apenas “marxista-leninista”, trata-se de um stalinista velado, que ainda usa a vulgata marxista sistematizada pelo “Guia Genial dos Povos” (Stálin). Os stalinistas velados são muito mais frequentes do que os stalinistas desavergonhados.
Na era petista, a New Left começou a pipocar pelas federais. É um elemento relativamente novo na fauna universitária, mais frequente na imprensa e no Projac do que nas federais. A nova esquerda não é propriamente marxista; ela abandonou a luta de classes e só quer saber – à maneira nazista – de luta de raças, ou então de guerra dos sexos. A homossexualidade passa a ser vista como revolucionária, enquanto que para os comunistas era o “vício burguês”.
Aí está, portanto, a taxonomia do militante de esquerda. Jones Manoel é um tipo banal.
Como ganhou holofotes?
Com tamanha banalidade, é de admirar que muitos estejam falando dele agora. A explicação para isso são os holofotes que lhe dera Caetano Veloso. Como a Nova Esquerda está acachapante na cultura, um stalinista pode parecer novidade.
Enquanto isso, Caetano está sob os holofotes por causa do filme Narciso em Férias. Lacrimoso, olha para as câmeras e conta como sofreu muito na ditadura por ter ficado dias preso sem espelho (daí o título) e por terem cortado o seu cabelo sem consentimento. Quem vê as inserções da Globo até pensa que a tortura da ditadura era problema sanável por salão de beleza. Antigamente, os opositores da ditadura que não foram torturados tinham algum pudor em se fazer de grandes vítimas, e apontavam com respeito quem de fato sofreu.
Dá vontade de despachar Caetano para um gulag de Jones Manoel.