Indicada pelo então presidente Donald Trump para o cargo de secretária de Educação dos Estados Unidos e aprovada pelo senado americano em votação apertada, Elizabeth Dee DeVos devotou sua carreira na política e na iniciativa privada à causa que lhe é especialmente cara: a liberdade educacional.
Entre 2016 e 2020, Betsy DeVos, como é conhecida profissionalmente, trabalhou na contramão da tendência democrata (acentuada ao longo do governo de Barack Obama) de fortalecer um sistema de ensino padronizado cada vez mais ineficiente e, pior, ideológico: para a empresária, cabe às famílias a decisão do que e como suas crianças vão aprender. Em 7 de janeiro de 2021, pouco antes do fim de seu mandato, apresentou sua renúncia ao cargo por conta das invasões no Capitólio.
Seu livro “Hostages No More” (“Reféns Nunca Mais”, em tradução livre), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos, trata do sequestro da educação de uma das nações mais poderosas do mundo e dos caminhos para superá-lo. Por intermédio do Acton Institute, DeVos concedeu uma entrevista exclusiva presencial à Gazeta do Povo, em Grand Rapids, Michigan, na qual abordou os desafios das famílias americanas e o futuro da liberdade educacional na era pós-Trump.
Em seu livro, a senhora defende que a educação americana foi sequestrada por ideólogos. Como se deu esse sequestro? Houve negligência por parte dos pais e professores defensores da liberdade?
O que houve foi a longa progressão de um sistema criado há cerca de 175 anos. O título “Hostages No More” é uma referência a uma frase de Horace Mann, amplamente considerado o pai do sistema educacional K-12 [N/E: o sistema K-12 é o sistema de ensino básico nos Estados Unidos, mais ou menos como o ensino fundamental, do 1º ao 9º ano, no Brasil), quando ele disse que “educadores têm o direito de enxergar os pais como reféns de sua causa”.
Entendo que o que ele queria dizer, na época, era um pouco diferente do que se vê hoje, considerando o contexto dos pais e estudantes de seu tempo. Mas acredito que, especialmente nos últimos dois anos, as famílias americanas assistiram de camarote às falhas deste sistema que se transformou, basicamente, em uma abordagem única, impositiva e controlada pelo governo. Ainda que não tenha mudado essencialmente em termos de forma, boa parte de sua agenda continuou a guinar à esquerda no tocante ao que as crianças estão ouvindo e experimentando em sala de aula.
Além disso, este sistema também vem falhando na missão de educar milhões de crianças americanas em aspectos básicos do ensino, e elas estão ficando cada vez mais para trás a cada ano. Os níveis de aprendizado dos Estados Unidos vêm deteriorando a cada ano. Há alguns casos de sucesso, lugares onde há mais liberdade educacional como na Flórida mas, de modo geral, quando as famílias não dispõe de muitas opções escolares, muitas crianças simplesmente não aprendem sequer o mínimo necessário.
Em outras palavras, elas não apenas estão aprendendo coisas ruins, mas não estão aprendendo sequer o básico em linguagem, matemática e afins. É isso?
Precisamente. Elas não aprendem a ler, a fazer contas básicas, a serem capazes de argumentar e pensar criticamente ou analisar problemas. Houve, de fato, uma falha grave, especialmente para crianças de famílias de baixa renda.
Quais devem ser, na sua opinião, as principais frentes de investimento e atenção para recuperar a educação americana? Qual deve ser o foco?
A coisa mais importante a ser feita é abandonar o sistema de financiamento que sustenta, por assim dizer, o próprio sistema – que já se comprovou falho -, e fazer com que este dinheiro chegue às mãos da família, dando-lhe a possibilidade de escolher como a criança será educada. Fazendo isso, criaremos um enorme mercado de consumidores que desejam algo melhor para seus filhos.
Alguns deles podem até escolher a mesma escola na qual a criança já estuda – o que é ótimo, se estiver funcionando para ele ou ela -, mas para aqueles que querem algo diferente, que sabem que seu filho estaria mais empolgado ou que teria sua curiosidade despertada por outro método de ensino, o dinheiro deveria estar disponível para que tomem a melhor decisão.
Eu costumo usar a metáfora da mochila: todos os dias, as crianças vão para a escola com as coisas das quais precisam para cumprir suas atividades. Nosso trabalho é fazer com que o dinheiro chegue justamente nesta “mochila”, que irá junto com a criança para o sistema educacional mais adequado para ela.
Como a senhora enxerga os projetos republicanos que visam barrar o ensino ideológico, como a teoria crítica racial ou a teoria queer, através de leis?
Acho que são bem-intencionados, mas não vão resolver o problema. Para cada ação para banir um certo tipo de currículo – seja a teoria crítica racial, as teorias de gênero ou qualquer outra coisa -, aqueles que estiverem ávidos para implantá-lo vão encontrar caminhos para se esquivar da lei e inserir novamente o que quer que queiram ensinar, de alguma forma.
Penso que uma melhor abordagem para nosso sistema é exigir uma transparência radical acerca do currículo. Se um pai perguntar “o que está acontecendo na sala de aula do meu filho hoje?”, é preciso que ele tenha total acesso ao que será ensinado e ao que as crianças vão ouvir.
E isso serve tanto para a perspectiva do currículo e do aprendizado, quanto para a perspectiva financeira: nós gastamos mais do que qualquer outro país no mundo e, ainda assim, temos péssimos resultados. Estamos no 37º lugar em matemática, 80º em ciências e 13º em leitura, comparando com os países mais competitivos do mundo. Os pais têm o direito de saber o porquê.
Falando em países competitivos, o que a senhora pensa sobre o sistema de educação da China? Em alguns aspectos, eles apresentam resultados melhores que os dos Estados Unidos. Há algo que pode ser aprendido com os chineses?
Visitei algumas escolas chinesas há muitos anos e minha compreensão é a de que não dá para confiar em boa parte dos dados que vêm da China - quais são, de fato, seus resultados, como vão os alunos, etc. Claramente, eles dão muito valor à educação e cobram muito dos estudantes. Há uma ética de trabalho que é imposta pelo próprio sistema, o que não aconteceria em uma democracia.
Mas, isto posto, acho que há, sim, coisas que podemos aprender com os chineses, principalmente sobre trabalho duro e ter altas expectativas com relação aos resultados, valores que vem sendo abandonados por alguns educadores nos Estados Unidos.
O que o Brasil pode aprender com os erros e acertos recentes dos Estados Unidos?
Como não conheço a fundo o contexto brasileiro, não posso fazer grandes conexões entre o que passamos por aqui e o que vocês vivem em termos de educação. Entretanto, penso que nosso principal aprendizado nos diz que o respeito ao federalismo, à forma como cada estado vai abordar a educação de acordo com suas próprias necessidades, bem à ideia de delegar a decisão de como e onde uma criança será educada ao nível da família, vão resultar em um ambiente educacional muito mais dinâmico, uma vez que teremos todos os tipos de gente se envolvendo na criação de novas escolas e novas soluções.
Ao respeitar o federalismo, você não exige que todos sigam as mesmas abordagens, os mesmos métodos, etc. Veja que nem todas as regiões têm as mesmas oportunidades e necessidades. No nosso caso, por exemplo, o que funciona para alunos no Alasca é muito diferente do que funciona para crianças da Flórida. Com tantas diferenças geográficas, culturais, econômicas, por que deveríamos insistir em uma abordagem padrão, imposta de cima para baixo?
O final do governo Trump foi bastante traumático, com a invasão ao Capitólio e tudo o que se seguiu. No que diz respeito à educação, como avalia o avanço das causas a favor da liberdade depois do "trumpismo"? Elas foram contaminadas com a rejeição ao ex-presidente ou ganharam mais força?
Eu diria que o compromisso com a liberdade educacional está forte e tende a crescer porque, como eu disse, durante os últimos dois anos, as famílias tiveram um acesso inédito ao que está sendo ensinado para seus filhos, sobretudo por causa da forma como as escolas lidaram com a pandemia. E muitas delas não lidaram nada bem. Acho que isso despertou em muita gente o senso de que é preciso fazer alguma coisa.
Essas questões já preocupavam pais que desejavam um ensino diferente para seus filhos, mas não tinham dinheiro ou os recursos para isso. Mas, agora, muitas famílias que se mudaram para outro distrito escolar, compraram casas mais caras em bairros mais caros, tudo para fornecer uma educação melhor, estão cada vez mais desapontadas com os resultados.
Além disso, o abismo entre a filosofia dos dois partidos nunca foi tão claro. Isso pode ser observado durante a eleição para o governo da Virgínia, quando o ex-governador Terry McAuliffe afirmou que os pais não deveriam se meter no que acontece na escola, enquanto o republicano Glenn Youngkin insistia no papel da família e no seu direito de intervir no que for necessário. As intenções dos dois lados, portanto, estavam bastante às claras.
McAuliffe, inclusive, dobrou a aposta e continuou a apelar para os sindicatos, uniões escolares e outros aliados do status quo, tal como o resto do Partido Democrata. 99,7% das arrecadações do partido — que obviamente é dinheiro dos contribuintes direcionado aos sindicatos de professores — acaba servindo para apoiar políticos comprometidos com a proteção e expansão de um sistema falho, em um esquema no qual “uma mão lava a outra”. E isso ficou muito mais claro para um público que não havia prestado atenção nisso até então.
Isso, então, fez com que mesmo quem não gostava do Trump se importasse com a questão.
Exatamente. Eu não acho que a pauta da liberdade educacional é associada a Donald Trump. Quero dizer, ele a apoiava, foi o primeiro candidato à presidência e, depois, presidente a falar abertamente sobre o assunto, mas não essa nunca foi sua preocupação central. Penso que, para quem se importa com a causa, ele sempre foi visto como um apoiador, mas toda essa questão educacional emergiu de uma forma que ninguém teria previsto e que extrapola a figura do ex-presidente. Nesse sentido, a pandemia foi um divisor de águas.
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