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O ditador Suharto, da Indonésia, enviava grupos de música tradicional para acompanhar massacres de populações inteiras no interior do país.
O ditador Suharto, da Indonésia, enviava grupos de música tradicional para acompanhar massacres de populações inteiras no interior do país.| Foto: Freepik

Considerado um dos maiores neurobiólogos e primatólogos do mundo, Robert M. Sapolsky também é autor de best-sellers que explicamde forma simples, comovente e bem-humorada as diferentes nuances do comportamento humano.

Em ‘Comporte-se: A Biologia Humana em Nosso Melhor e Pior’ (Companhia da Letras), ele se debruça sobre a origem de problemas que nos afligem desde sempre, especialmente a intolerância e a violência.

E garante: “Não odiamos a violência. Odiamos e tememos o tipo errado de violência, aquela que ocorre no contexto errado”.

Leia a seguir um trecho extraído da introdução do livro e que trata justamente deste ponto central das ideias de Sapolsky.

Algumas vezes, somos, de fato, como qualquer outro animal.

Quando assustados, secretamos o mesmo hormônio que um peixe subalterno ao ser atormentado por um valentão. A biologia do prazer envolve as mesmas substâncias químicas em nós e numa capivara.

Os neurônios dos seres humanos e das artêmias funcionam da mesma forma. Coloque duas fêmeas de rato vivendo no mesmo lugar e em questão de semanas elas sincronizam seus ciclos reprodutivos e acabam ovulando com poucas horas de diferença.

Tente a mesma coisa com duas mulheres (como relatado em alguns estudos, mas não em todos), e algo parecido acontece. Chama‑se efeito Wellesley e foi demonstrado pela primeira vez em colegas de quarto da faculdade exclusivamente feminina Wellesley College.

E, quando se trata de violência, podemos agir da mesma forma que outros grandes primatas: golpeamos, espancamos, apedrejamos e matamos com nossas próprias mãos.

Dessa forma, algumas vezes o desafio intelectual é compreender o quanto somos semelhantes a animais de outras espécies; em outros casos, é reconhecer como, apesar de a fisiologia humana guardar semelhanças com a de outras espécies, nós a utilizamos de maneiras distintas.

Ativamos a fisiologia clássica do alerta quando assistimos a um filme de terror. Incitamos uma resposta de estresse ao pensar acerca da nossa mortalidade.

Secretamos hormônios relacionados aos cuidados infantis e ao vínculo social, só que em resposta a um adorável bebê panda.

E isso decerto se aplica à agressividade — utilizamos os mesmos músculos que um chimpanzé macho ao atacar um competidor sexual, mas para machucar alguém por causa de sua ideologia.

Por fim, às vezes a única forma de entender nossa condição humana é levarem conta apenas os seres humanos, pois as coisas que fazemos são únicas.

Enquanto umas outras poucas espécies praticam o sexo não reprodutivo, somos os únicos que depois conversam sobre como foi.

Construímos culturas baseadas em crenças sobre a natureza da vida e podemos transmitir essas crenças de geração em geração, mesmo entre indivíduos separados por milênios — pense em nosso best‑seller mais perene, a Bíblia.

Nesse sentido, podemos causar danos sem precedentes e que não exigem um esforço físico maior que apertar um gatilho, consentir com a cabeça ou olhar para o outro lado.

Podemos ser passivo‑agressivos, condenar com um elogio débil, interromper com desdém, expressar desprezo com uma preocupação condescendente. Todas as espécies são únicas, mas nós somos únicos de formas bastante únicas.

Aqui vão dois exemplos de quão estranhos e singulares podem ser os seres humanos quando decidem se machucar ou cuidar uns dos outros.

O primeiro envolve, bem, minha esposa. Estamos numa minivan com as crianças no banco de trás e ela ao volante.

Então um completo imbecil nos dá uma fechada e quase provoca um acidente, de um jeito que deixa claro que não foi distração de sua parte, apenas egoísmo. Minha esposa buzina e ele mostra o dedo do meio. Estamos furiosos e indignados.

Que‑filho‑da‑mae‑onde‑esta‑a‑polícia‑quando‑precisamos‑dela, e coisa e tal.

E, de repente, minha esposa anuncia que iremos segui‑lo, só para deixa‑lo nervoso. Ainda estou fulo, mas isso não me parece a coisa mais prudente do mundo.

Mesmo assim, ela se põe no encalço dele, colada na traseira do automóvel. Depois de alguns minutos, o sujeito está dirigindo de forma esquiva, mas minha esposa continua em sua cola.

Por fim, ambos os carros param num sinal vermelho, que sabemos que é bem demorado. Há outro veículo na frente do vilão. Ele não tem para onde ir.

De repente, minha esposa apanha alguma coisa da divisória do banco da frente, abre a porta e diz: “Agora, sim, ele vai se arrepender”.

Eu me adianto, num tom débil: “Ãhm, querida, você acha mesmo que é uma boa id…”, mas ela já está do lado de fora do carro, esmurrando a janela dele.

Chego bem a tempo de ouvi‑la dizer: “Se você é capaz de fazer algo tão ruim para outra pessoa, então provavelmente merece isto”, num tom de voz muito maldoso. Então ela arremessa algo contra a janela. Volta para o carro gloriosa e triunfante.

“O que você jogou lá dentro!?”

Ela ainda não está falando. O sinal muda para verde, não tem ninguém atrás de nós e apenas ficamos parados.

O malfeitor começa a piscar a seta de forma muito contida, faz uma curva devagar e segue em direção a uma rua paralela à velocidade de, sei lá, uns dez quilômetros por hora. Se fosse possível um carro parecer envergonhado, este parecia.

“Querida, o que você jogou lá dentro, me diz?”

Ela deixa escapar um sorrisinho maligno. “Um pirulito de uva.” Fico impressionado com sua entonação feroz e passivo‑agressiva.

“… Você é um ser humano tão ruim e horrível que algo de muito errado deve ter acontecido na sua infância, e talvez este pirulito ajude a corrigir esse problema só um pouquinho.”

Esse cara vai pensar duas vezes antes de mexer de novo com a gente. Fiquei cheio de orgulho e amor.

E o segundo exemplo: em meados da década de 1960, um golpe militar derrubou o governo da Indonésia, instaurando a ditadura de [Hadji Mohamed] Suharto, a “Nova Ordem”, que durou 30 anos.

Na sequência do golpe, o governo patrocinou o expurgo opositores e cidadãos de etnia chinesa, resultando em meio milhão de mortos. Execuções em massa, tortura, vilarejos incendiados com seus habitantes dentro.

O escritor V. S. Naipaul conta em seu livro ‘Entre os Fiéis: Irã, Paquistão, Malásia, Indonésia’ que, quando estava na Indonésia, ouviu rumores de uma situação absurda: sempre que um grupo paramilitar chegava para exterminar todas as pessoas em um determinado vilarejo, trazia consigo uma tradicional orquestra de gamelão [conjunto de música tradicional da região].

Mais tarde, Naipaul encontrou um impenitente veterano de um massacre e lhe perguntou sobre o boato.

“Sim, é verdade, nós levávamos músicos de gamelão, cantores, flautas, gongos, o serviço completo.”

Por quê? Por que vocês fariam isso? O homem pareceu perplexo e deu o quelhe parecia uma resposta óbvia: “Bem, para tornar tudo mais bonito”.

Flautas de bambu, incêndio em vilarejos, a balística de pirulitos do amor materno.

Nosso trabalho agora está delimitado: tentaremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos machucamos ou cuidamos uns dos outros, e quão interligada é a biologia por trás de ambas as ações.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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