Qualquer internauta que pesquise notícias em português sobre o OnlyFans, rede social que permite a comercialização de conteúdo adulto, encontra rapidamente dezenas de histórias de pessoas que afirmam ter enriquecido na plataforma. “Ícones do OnlyFans destacam as vantagens da plataforma”, anuncia uma coluna publicada no último mês de agosto. “Por lá, até 2021, já existiam mais de 150 milhões de usuários cadastrados e 1,5 milhão de criadores de conteúdo”, continua o texto. “Mas, afinal, qual o lado bom deste fenômeno que ainda é carregado de estigma e de tabus?".
Se, por um lado, uma pesquisa recente revelou que mais de 50% das modelos que vendem conteúdo íntimo no OnlyFans o fazem sem que seus pais e amigos saibam, por outro, o esforço que parte da imprensa brasileira faz para arrefecer o dito “estigma” sobre a plataforma - que, diga-se de passagem, rendeu nada menos do que 2,62 bilhões de dólares ao acionista majoritário nos últimos 18 meses - é digno de nota.
Casos como o da ex-professora que diz ter ficado milionária em três anos na rede, da atriz que diz se sentir "mais segura financeiramente", da ex-frentista que afirma ter faturado mais de meio milhão de dólares e da “ex-miss BumBum” que “conquistou a liberdade financeira” no OnlyFans aparecem dia após dia em alguns dos principais portais de notícias do país.
“Pornografia dos privilegiados”
Ocorre que, a exemplo do que acontece com o restante da indústria sexual, não é preciso investigar muito a fundo para perceber que os alardeados “sucessos” do OnlyFans são mais uma face do que a ensaísta canadense Melinda Selmys chama de “pornografia dos privilegiados”, na qual “a experiência de um pequeno grupo é apresentada como a norma, enquanto as realidades violentas, coercitivas e traumatizantes da indústria do sexo desaparecem com o uso da varinha mágica da ‘escolha’”.
Ainda em 2020 - ano no qual o OnlyFans cresceu cerca de 600% em meio à pandemia -, a revista britânica The Spectator alertou para a presença não apenas de atrizes, cantoras e celebridades virtuais entre os usuários (são elas, é claro, as que mais faturam com os “nudes”), mas de mulheres desempregadas que precisavam pagar as contas e acabavam se arrependendo da exposição. Uma das entrevistadas pela reportagem contou que excluiu a conta depois que um de seus “clientes” publicou uma de suas fotos sem sutiã em um site aberto de pornografia.
“Cada assinante me pagava dez dólares por semana e, tirando a comissão do OnlyFans, eu ficava com 8 dólares. Precisava conseguir o maior número possível de assinantes para conseguir pagar meu aluguel, o que significa postar novas fotos o dia todo, todos os dias e concordar com pedidos cada vez mais explícitos. No final, me senti exausta e degradada, e cancelei minha inscrição”, contou a mulher à reportagem.
Tudo à venda?
O relato não deveria ser surpresa: segundo informações fornecidas pelo próprio aplicativo, o ganho médio dos criadores de conteúdo é de 180 dólares (cerca de 940 reais, menos de um salário mínimo) por mês. O problema é que mesmo este valor passa uma falsa dimensão do problema, dado que 1% das contas recebe um terço de todo o dinheiro arrecadado na plataforma, de modo que a maior parte dos usuários recebe menos de 800 reais por mês.
Em contrapartida, ainda que o negócio fosse lucrativo para uma parcela maior dos usuários, é sempre o caso de se perguntar, a exemplo do que propõe o professor de Harvard Michael Sandel, se é ético que determinadas esferas da vida humana - como o sexo, tão atrelado à própria dignidade - sejam expostos à lógica do mercado. "Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda? Ou será que existem certos bens morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não compra?", questiona o autor.
No ano passado, foi a vez do New York Times acordar para o “outro lado” do sucesso do OnlyFans: uma das entrevistadas pelo jornal é uma jovem de 22 anos que, demitida três vezes durante o pico da crise e sem dinheiro para arcar com as mensalidades da faculdade, recorreu ao OnlyFans, a despeito do temor de não conseguir outros empregos no futuro.
Finalmente, em maio deste ano, outra reportagem destrinchou o fenômeno dos “cafetões digitais”: homens que, literalmente, abriram “agências virtuais” para “auxiliar” mulheres que desejem lucrar na plataforma. “O OnlyFans é uma grande oportunidade não apenas para moças sexy, mas para os homens também. O que estou propondo aqui é a cafetinagem eletrônica” (N/E: a expressão utilizada pelo entrevistado foi “e-pimping”), afirmou um dos personagens da matéria.
Segundo uma “sobrevivente do OnlyFans”, estes homens costumam abordar modelos via Twitter oferecendo o “gerenciamento” de sua imagem virtual em troca de conteúdo. “As pessoas estão desesperadas e caem nessa por ingenuidade. Isso naturalmente cria uma oportunidade perfeita para chantagem e outros tipos de manipulação. Acontece o tempo todo e não é falado o suficiente”, revela a fonte anônima.
Abuso sexual infantil
A exposição de jovens mulheres desesperadas a um mercado degradante e a consequente exploração das mesmas por empresários ávidos por lucro - a começar pelo próprio criador da plataforma, Timothy Stokely — é só a ponta do iceberg de problemas que acompanha o crescimento exponencial do OnlyFans, um enredo que segue à risca o padrão das grandes empresas de tecnologia que se vêem às voltas com acusações de material pornográfico ilegal circulando em suas plataformas. À denúncia da presença de menores de idade na rede, o OnlyFans meramente “reforçou estar em dia com as medidas de segurança”.
Enquanto isso, grupos como o National Center on Sexual Exploitation (NCOSE) - uma das mais antigas organizações nos Estados Unidos a abordar a intrínseca relação entre pornografia, prostituição, exploração sexual e tráfico humano - acumulam novas denúncias: um investigador do Departamento de Segurança Interna dos EUA chegou a reportar à ONG que encontra entre 30 e 50 imagens de abuso sexual infantil por dia “claramente vindas do OnlyFans”.
Para o NCOSE, o OnlyFans é, em suma, um grande "esquema de pirâmide" da exploração sexual, além de oferecer um "ambiente seguro" para práticas que, aos poucos, ganham a atenção da imprensa internacional. Por que o Brasil insiste em atrelar o uso da plataforma ao "empoderamento" feminino é uma pergunta a ser feita por quem quer que se preocupe a sério com a dignidade dos mais vulneráveis.
Em artigo para a revista conservadora First Things, Samuel D. James lembra que no Inferno de Dante, os que lucram com a exploração da sexualidade alheia são punidos com maior severidade do que os promíscuos. "A ordem social progressista contemporânea é uma ordem de trabalhadores", pontua o autor. "Corpos nus trabalhando dia e noite, sacrificando sua dignidade e reputação pela oportunidade de ciscar as migalhas que caem da mesa da Big Tech".
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