Como não sou a pessoa mais organizada do mundo e estou vivendo um momento particularmente intenso em termos de volume de trabalho, não pude dar a atenção que gostaria às eleições britânicas, que serão realizadas amanhã, dia 08 de junho. Ainda assim, ao longo das sete semanas que se passaram desde que o pleito foi anunciado, fui reunindo e organizando todos os dados, notícias e histórias que me pareciam relevantes para uma eventual análise prospectiva. Esse material reunido acabou servindo de base aos comentários que apresento abaixo.
Comecemos pela ordem cronológica das notícias referentes à disputa, que revelam um padrão ao mesmo tempo problemático e interessante: nos primeiros dias, falava-se em uma vitória arrasadora, em um landslide, que entregaria à Theresa May uma maioria de proporções thatcheristas; em seguida, teve início um outro ciclo de notícias, que falava sobre a perda de alguns assentos por parte dos conservadores, mas sem a perna definitiva da maioria no Parlamento; e, por fim, chegamos ao momento atual em que artigos alarmistas afirmam que o Partido Conservador pode perder efetivamente o seu domínio no Parlamento, o que levaria o mundo a assistir, atônito, a ascensão do socialista Jeremy Corbyn como primeiro-ministro do Reino Unido.
Felizmente, as coisas parecem ser bem mais simples do que isso. Embora a mídia britânica tenha se esforçado para criar uma narrativa que sugere a possibilidade de uma virada heróica (sic) por parte dos trabalhistas, as tendências gerais do eleitorado não parecem ter sido substancialmente alteradas ao longo do tempo. É claro que o Reino Unido está passando por mudanças e que as forças políticas estão sendo realinhadas em um momento em que, para a surpresa da academia e da mídia especializada, a divisão mais tradicional entre direita e esquerda começa a dar lugar para a divisão, ainda incipiente, entre soberanismo e globalismo, mas essas mudanças são lentas e graduais e se desenvolvem de acordo com tendências históricas — sobretudo em uma cultura política madura como a britânica.
No primeiro ciclo de notícias, a resiliência do Partido Trabalhista (ou melhor, a resiliência da oposição ao Partido Conservador) estava sendo fortemente ignorada com base no argumento de que o voto pela saída da União Européia no Norte da Inglaterra e nas Midlands, redutos tradicionais dos trabalhistas, indicava uma vitória substancial dos conservadores nessas regiões e, portanto, um massacre em escala nacional.
Sem alternativa
Isso só seria possível se os eleitores das duas regiões, marcadamente opostos ao que o Partido Conservador defende em suas políticas domésticas, tivessem alguma alternativa ao Partido Trabalhista que fosse, representativa dos sentimentos anti-tory dominantes na região, que cooperaria para a divisão dos votos desse eleitorado. Na Escócia, o sentimento anti-tory encontra uma alternativa no SNP, o Partido Nacional Escocês, mas na Inglaterra tal alternativa simplesmente não existe, o que impede uma vitória dos conservadores nessas regiões.
Se muito, poderíamos ver nesses locais uma vitória do UKIP, o Partido da Independência do Reino Unido, mas não uma vitória do Partido Conservador, que precisaria de muito mais tempo de campanha para melhorar suas chances no Norte e principalmente nas Midlands – com a atual crise de identidade do UKIP, no entanto, o que deve ocorrer efetivamente é a manutenção do domínio trabalhista na região.
No segundo ciclo de notícias, o erro ia na direção contrária e os principais analistas pareciam ignorar totalmente a influência das mudanças e do realinhamento de forças no Reino Unido. Embora as tendências gerais não tenham sido suficientemente alteradas e os fundamentos da política britânica ainda permaneçam mais ou menos os mesmos, os dois referendos recentes — sobre a independência da Escócia em 2014 e o Brexit em 2016 — tiveram impactos marginais que colocam o Partido Conservador em uma situação mais vantajosa do que em 2015, quando ocorreram as últimas eleições gerais. Neste cenário, seria equivocado acreditar que os conservadores alcançariam um resultado menos favorável do que a vitória obtida em 2015, sobretudo porque os distritos em que o Partido Trabalhista apresentava possibilidade de vitória, nesse momento, eram distritos que ou já pertenciam aos trabalhistas ou pertenciam a partidos menores como o Liberal Democratas.
Participação efetiva
Por fim, no momento atual, temos uma exacerbação do equívoco cometido no ciclo de notícias anterior somado a uma série de fatores que exageram consideravelmente as chances do Partido Trabalhista. Via de regra, os artigos que falam sobre os riscos de uma derrota do Partido Conservador tomam como base pesquisas com problemas metodológicos, que assumem que o eleitorado mais jovem participará efetivamente da eleição em uma proporção jamais vista em eleições anteriores e ignoram, quase que por completo, a probabilidade de que os eleitores não-tradicionais que votaram a favor do Brexit participem efetivamente da eleição.
Em 2016, por ocasião do referendo que decidiu sobre a saída do Reino Unido da União Européia, cerca de 3 milhões de eleitores que não costumam participar das eleições (e que, por isso mesmo, foram ignorados pelas pesquisas) foram decisivos para a decisão de deixar a União Européia. Mais uma vez esses eleitores estão sendo ignorados, o que é um erro imperdoável em uma eleição em que o Brexit continua sendo um dos temas centrais. A participação efetiva desses eleitores, que deve aumentar a proporção dos votantes, ampliando a participação no dia das eleições de algo em torno de 60% do eleitorado geral para algo entre 65% e 70%, deve garantir a vitória conservadora em distritos que as pesquisas indicam vitória trabalhista como Bolsover, Don Valley, Darlington, Birmingham Northfield, Bradford South e Workington.
Deste modo, embora a narrativa dominante sobre as eleições britânicas tenha sido construída para envolver uma série de reviravoltas e surpresas, parece seguro afirmar que os fundamentos da política britânica não foram substancialmente alterados e possibilitam a realização, segura, de algumas previsões.
O eleitorado tradicional dos tories (como são chamados os membros do Partido Conservador britânico) continua bastante confiável e, como qualquer pessoa com um conhecimento razoável sobre as eleições anteriores pode confirmar, é superior a 40%. Do mesmo modo, ao que tudo indica, as fortalezas trabalhistas – Norte da Inglaterra e as Midlands – parecem distantes de serem tomadas por outro partido. Em relação às tendências históricas, a mudança mais substancial – que já não é exatamente uma novidade – fica por conta da Escócia, onde o SNP deve cimentar seu processo de consolidação como principal força política. Os eleitores não-tradicionais que votaram pela saída da União Européia serão os responsáveis pela quota restante de novidades e surpresas.
Assim, a menos que os trabalhistas tirem da manga um milagre em termos de voto tático e consigam mobilizar os jovens numa escala jamais vista, os conservadores conquistarão a maioria absoluta dos assentos e expandirão o seu domínio do Parlamento, dando à Theresa May a desejada legitimidade das urnas, que hoje é muito mais do partido do que dela.
Em termos numéricos, isso significa que o Partido Conservador deverá obter algo entre 360 e 380 assentos, frente aos 330 assentos que o partido possui atualmente. Por sua vez, o Partido Trabalhista deverá obter um número de assentos que pode variar entre 205 e 220. Dentre os partidos menores, o SNP deve conquistar algo entre 47 e 55 assentos; os Liberais Democratas não terão menos do que 5 e mais do que 10 assentos; o Partido de Gales terá, no máximo, 4 assentos; e os Verdes deverão manter seu único assento, representando o distrito inglês de Brighton Pavilion. O UKIP não deverá obter nenhum assento.
O acerto de Jeremy Corbyn
Por fim, vale ressaltar que a ascensão de Jeremy Corbyn é o fenômeno mais interessante desta eleição e, por isso mesmo, aquele que deverá ser analisado com mais cuidado quando os detalhes sobre o resultado forem divulgados. Mesmo com a derrota, sua versão radical do trabalhismo — na realidade, a defesa de uma plataforma socialista, o que acaba por reinserir o partido dentro do movimento mais amplo da esquerda revolucionária — pode se consagrar como a fórmula certa para mobilizar eleitores apáticos, sobretudo entre jovens estudantes que residem em grandes centros urbanos.
A consagração desse modelo, que provavelmente ocorrerá apesar da derrota trabalhista, representará o aprofundamento da divisão entre a população mais jovem e a população mais velha; entre eleitores com formação superior e eleitores com níveis menores de educação formal; entre as grandes cidades e as cidades de porte médio e pequeno; entre cosmopolitas e patriotas; entre globalistas e soberanistas.
E deve ampliar o abismo entre as elites e as classes populares, em um cenário em que o Partido Trabalhista acabaria entregando, em definitivo, os trabalhadores para o Partido Conservador, com o objetivo de construir uma nova coalizão eleitoral composta por minorias, pelo lumpemproletariado e pela elite cosmopolita e, não menos importante, liderada por pregadores revolucionários carismáticos e utópicos. Ao menos no longo prazo, portanto, a vitória de Theresa May no pleito de amanhã não significará a derrota de Jeremy Corbyn.
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