Não vivemos em Utopia. Vivemos no mundo real. Portanto, não temos nem sujeitos perfeitos, nem instituições perfeitas. Temos, não obstante, instituições, valores, projetos, etc, que resgatam e fomentam (ainda que imperfeitamente) aqueles valores e aquelas instituições que pavimentaram o caminho para a civilização.
Sociedade alguma prospera sem que nela encontremos os seguintes pilares:
1. Uma ordem expressa seja em seu Império do Direito seja em seus costumes e instituições;
2. Uma economia com foco na liberdade para escolher e empreender.
Isso significa compreendermos, de largada, o que significa ‘liberdade’, uma categoria tão polissêmica quanto vilipendiada. “Liberdade”, como nos diz John Locke (ao distinguir liberdade de licenciosidade), “não é como nos dizem: licença para qualquer um fazer o que bem lhe apraz – porquanto quem estaria livre, se o capricho de qualquer outra pessoa pudesse dominá-lo?” Portanto, a liberdade significa o indivíduo ser responsável pelas suas ações e escolhas (tanto pelas bem-sucedidas quanto pelas fracassadas). Não apenas isso, significa “liberdade dentro da ordem”. Por que? Ora, para que as ações de um indivíduo não violem a liberdade de outrem.
Mas que significa essa “ordem”? Ela envolve o Império do Direito, valores morais, instituições, etc. Mas a que valores, regras e Instituições estamos aqui a nos referir? Simplesmente aos que passaram pelo teste do tempo. Aos que funcionaram. A ideia de “ordem”, aqui, remete a uma perspectiva conservadora. Remete àquilo que assoalhou o caminho para nossa civilização.
Nossas convicções: O Estado de Direito
Um exemplo veio de uma polêmica entrevista do general Mourão, em sua defesa da família “tradicional”. Ao falar sobre a ausência da presença paterna, o general Mourão estava simplesmente corroborando aquilo que décadas de pesquisas têm demonstrado, a saber, que quando as famílias se dissolvem as crianças sofrem as consequências negativas dessa dissolução e o Estado assume sua paternidade, uma função que não apenas não é sua (e pela qual acabamos pagando), mas a qual ele realiza de forma desgraçadamente fracassada e cara.
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Criticar o general Mourão pela sua declaração é rejeitar os fatos e o conteúdo de sua fala. E o fato é: a criação de crianças pelos pais biológicos, em um ambiente de pouco conflito, permite que essas crianças, na média geral, se saiam melhor em todos os quesitos de avaliação individual e social. Noutros termos, todos sofremos as consequências da degenerescência de instituições como a família “tradicional”. Seu declínio, como diversos estudos recentes reiteram (“Why Marriage Matters. Thirty Conclusions from the Social Sciences”, de Bradford Wilcox; “Marriage and the Public Good: Ten Principles”, editado pelo Instituto Witherspoon; “Família e Políticas Públicas”, de João Carlos Espada; “Life Without Father”, de David Popenoe, e muitos outros), é causa de alguns “efeitos colaterais” indesejáveis, como aumento de criminalidade, fracasso educacional, fracasso na formação de novas famílias (aumento de famílias disfuncionais), drogadição, rendas baixas, aumento da violência, aumento da dependência de programas assistenciais do governo, etc.
Nossas convicções: O valor da família
Esses fatos são indícios de patologias individuais e sociais. O ponto é: há instituições e valores que simplesmente surgiram, espontaneamente, em um passado remoto, quando nossos ancestrais ainda eram, como diria Darwin, “simiescos”. Elas surgiram espontaneamente a partir do convívio social voltado para a criação de arranjos sociais mais adequados para que pudéssemos alcançar a felicidade (‘plena realização humana’). A monogamia é uma dessas instituições, como o demonstram cada vez mais estudos (“Marriage and Civilization. How Monogamy made us Human”, de William Tucker, “Disease dynamics and costly punishment can foster socially imposed monogamy”, de Chris Bauch e McElreath, “The evolution of monogamy in response to partner scarcity”, de Adrian Bell, e muitos outros). Outro exemplo seria a propriedade privada. Seus primeiros registros remontam a 8 mil anos atrás, como o indicam os sinetes do povo halaf.
Instituições como família monogâmica e propriedade privada não são (como o diriam somente aqueles sujeitos imersos na estupidez mais abjeta) “criações da burguesia”. Elas simplesmente não foram “criadas”. A exemplo do que ocorreu com outras instituições, valores, etc, elas surgiram de forma espontânea também com propósitos evolutivos. E isso por várias razões (sim, trata-se de um fenômeno complexo). Houve, então, boas razões para que elas passassem a ser protegidas e regradas pelo estado. São milênios de experiência as solidificando como pilares de nossa civilização. É temerário simplesmente tentarmos, artificialmente, as revogar, como o intentam diversos projetos políticos, especialmente os alinhados à “esquerda” (e “centro”) do espectro político.
Nossas convicções: A importância do casamento
O mesmo se aplica a princípios morais como a ‘regra de ouro’, a qual não foi inventada. Nenhum antepassado nosso acordou um dia e pensou: “Hoje vou formular um princípio moral que vai ser influente ao longo dos próximos milênios”. Tal “regra” surgiu espontaneamente e apenas muito tempo depois a batizamos de ‘regra de ouro’ (ver, por exemplo, “The Origins of Virtue: Human Instincts and the Evolution of Cooperation”, de Matt Ridley, bem como “The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culture”, editada por Jerome H. Barkow, Leda Cosmides e John Tooby).
Consideremos também o exemplo da linguagem. Ora, quando estabelecemos as regras da linguagem nós já falávamos. Primeiro veio a sabedoria. Depois, a reflexão e a proteção daquilo que a experiência mostrou como essencial ao nosso desenvolvimento. Mas esses são apenas alguns exemplos de valores e Instituições fundamentais, sem as quais não viveríamos, hoje, no “melhor dos mundos possíveis” (o qual, reitero, não é perfeito: não vivemos, nem viveremos, em Utopia). Mas mesmo o “melhor dos mundos possíveis” está sempre em risco. Tais valores e instituições precisam ser protegidas. Assim como progredimos podemos, também, decair (tal como ocorre com a dissolução da família “tradicional”, por exemplo, cujos efeitos negativos são mensurados por diversas pesquisas).
Nossas convicções: A finalidade da sociedade e o bem comum
Nesse sentido, o Estado tem essa função instrumental de proteger a dignidade da pessoa humana, a família “tradicional”, a propriedade privada, a liberdade e aquele modelo econômico que mais adequadamente se alinha com essa proteção, a saber, a economia de mercado, uma vez que o mercado, a livre troca, também surgiu espontaneamente, causando vindouros benefícios civilizatórios, como o demonstram muitos estudos (como, por exemplo, “Recordkeeping alters economic history by promoting reciprocity”, dos autores Sudipta Basu, John Dickhaut , Gary Hecht , Kristy Towry e Gregory Waymire), os quais apontam para vários indícios arqueológicos que comprovam que a troca, o comércio, já ocorria antes de surgirem as primeiras cidades.
Nossas convicções: A finalidade do Estado e do governo
Em verdade, se considerarmos que a “grande virtude em política é a prudência: o julgamento de qualquer medida pública se dá pelas consequências no longo prazo” (Russell Kirk), veremos a importância de uma espécie de “empirismo político”, o qual adota um princípio que se poderia chamar de “princípio da consagração pelo uso”. Trata-se de uma espécie de empirismo político, baseado naquilo que surgiu espontaneamente e se solidificou ao longo da história por uma razão bem simples: assegurar nosso progresso na direção de uma vida melhor, mais próspera individual e socialmente. Eis, então, a necessidade de protegermos as “coisas permanentes”, como as acima referidas.
Desejos para o Brasil: Respeitar a família e defender a vida em todas as fases
*Carlos Adriano Ferraz foi professor visitante na Universidade Harvard (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, no qual orienta dissertações e teses com foco em ética, filosofia política e filosofia do direito