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Análise

Família, religião e nacionalismo em decadência: o Ocidente está cometendo suicídio?

Mulheres participam de marcha pró-aborto em Nova York, EUA, 02 de outubro de 2021: "doença intelectual e espiritual" (Foto: EFE/EPA/JUSTIN LANE)

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O youtuber e provocador profissional Nick Fuentes, autointitulado conservador, gerou controvérsia nos últimos dias ao celebrar o avanço das tropas russas sobre a Ucrânia. Seria, nas palavras dele, uma derrota do “grande Satanás”: os Estados Unidos. Aqui e acolá, outras vozes da direita parecem fazer coro ao argumento de que a guerra iniciada pela Rússia não é uma ameaça, mas uma esperança. Afinal, Vladimir Putin já deu demonstrações claras de que se opõe à ideologia de gênero, o feminismo e resto do pacote politicamente correto que os Estados Unidos e a Europa Ocidental têm exportado nas últimas décadas. O argumento de Fuentes e seus colegas é o de que o Ocidente, tal qual Roma em seu período de decadência, já não merece ser salvo. Mas existe algo de real nisso? O Ocidente está indo ladeira abaixo ou é apenas uma ilusão?

Cinquenta e oito anos atrás, o escritor James Burnham, figura importante do conservadorismo americano, publicou o livro clássico “O Suicídio do Ocidente”. Na época, o Cristianismo era quase unanimidade na Europa e nos Estados Unidos, o homossexualismo era crime — assim como o aborto. O divórcio amigável, sem necessidade de comprovação de culpa, não existia na maior parte desses países. Ideias como o casamento gay soavam absurdas até para os mais radicais progressistas. Entretanto, Burnham enxergou que a maré estava começando a mudar. Sobretudo nas universidades e em outros círculos intelectualizados.

No livro publicado em 1964, ele observou que o Ocidente estava “se contraindo”, e profetizou: “Se o processo continuar nas próximas décadas mais ou menos como aconteceu nas décadas anteriores, então – esta é uma mera extrapolação matemática – o Ocidente estará acabado; A civilização ocidental, as sociedades e nações ocidentais em qualquer sentido significativo e reconhecível, simplesmente não existirão mais."

O processo a que ele se referia era a perda da “vontade de sobreviver”. Uma doença intelectual e espiritual, não material, nas palavras de Burnham. “Não pode ser o caso que o Ocidente esteja se contraindo por falta de recursos físicos e poder; essa carência não existiu e nem existe".

A raiz do problema, para Burnham, era o que ele chamava de “liberalismo” — não o liberalismo econômico, mas a ideia de que não há valores objetivos e de que tudo se resume a uma questão de preferências igualmente válidas. Em outras palavras, uma renúncia à ideia da verdade. A “ilusão liberal”, para Burnham, é acreditar natureza humana pode ser modificada, e que a humanidade pode atingir um estado de paz global. Nesse esquema, o Ocidente não possui uma tradição mais especial do que a dos índios Tupinambás.

"Tempos fáceis, homens fracos"

Burnham não foi o primeiro nem o último a escrever sobre o assunto. Sua obra pode ser situada em uma linhagem que inclui 'Deus e o Homem em Yale', de William Buckley (1951), 'O Fechamento da Mente Americana', de Allan Bloom (1987), e 'Por que o Liberalismo Falhou' (2018), de Patrick Deneen.

Antes de todos eles, o suíço Jean-Jacques Rousseau escreveu, ainda em 1750, que o progresso da civilização estava tornando as pessoas materialistas, superficiais e moralmente corrompidas, sem apreço por suas nações e à religião. “Os políticos da Antiguidade falavam permanentemente de moral e virtude; os nossos falam somente de comércio e de dinheiro”, criticou ele, naquele que é conhecido como o Primeiro Discurso.

O argumento de Rousseau não destoa muito do meme que volta e meia ressurge nas redes sociais, e segundo o qual “Tempos difíceis geram homens fortes, homens fortes criam tempos fáceis, tempos fáceis geram homens fracos, homens fracos geram tempos difíceis”. Mesmo antes da Revolução Industrial se concretizar, Rousseau já antecipava que a prosperidade e a evolução das “artes e das ciências” cobrariam um preço. “O gosto pela ostentação raramente coexiste, no espírito de alguém, com um gosto pelo que é honesto. Não: mentes degeneradas por uma hoste de preocupações fúteis não podem jamais geram algo grandioso; e mesmo que elas tivessem a força necessária, lhes faltaria a coragem”, esbravejou.

Em comum, estes autores têm o argumento de que o Ocidente virou as costas para sua tradição e se tornou débil. Se a invasão da Ucrânia tem a ver com essa percepção de fragilidade no campo moral, nunca saberemos ao certo. Mas talvez a imagem do presidente americano Joe Biden, envelhecido e confuso, pode ser vista como um símbolo do próprio estado de ânimo do Ocidente.

Enquanto os vídeos de recrutamento das Forças Armadas de Rússia e China enfatizam a força e a virilidade, os Estados Unidos tomaram o caminho oposto. Uma das campanhas mais recentes, preenchida com animações de desenho animado, mostra uma jovem com voz infantil enquanto ela conta a sua história: criada por um casal lésbico, ela se orgulha de ter participado de protestos a favor da causa LGBT. Em vez de se alistar no exército por lealdade à pátria, ela o fez para provar “força interior”, seja lá o que isso signifique.

Vladimir Putin, um tirano saudosista da União Soviética, explora essa lacuna com demonstrações calculadas de virilidade e um apelo aos valores tradicionais — o que talvez explique a estranha fixação de grupos mais à direita com um ex-espião da KGB, a polícia secreta comunista.

Onde o Ocidente vai bem

Os argumentos mais pessimistas sobre o futuro do Ocidente podem soar exagerados para alguns. E isso faz sentido.

Economicamente, os países ocidentais vivem um período de prosperidade sem paralelos. Os jovens europeus podem até não encontrar o emprego dos sonhos, mas a realidade é que, tanto lá quanto nos Estados Unidos, a escassez é uma lembrança distante: trabalhadores comuns conseguem manter um padrão de vida inimaginável para seus avós e bisavós. Nos Estados Unidos, empresas tem tido  dificuldades de preencher vagas de emprego com um salário de US$ 15 por hora (o equivalente a cerca de R$ 12 mil por mês).

Mesmo as pessoas consideradas pobres estão longe da miséria: a maioria tem carros e vive em casas confortáveis. O problema dos sem-teto se deve quase sempre a doenças mentais ou ao vício em drogas. Mas, como regra, quem trabalha consegue se manter com as próprias pernas — e é por isso que imigrantes da África e do Oriente Médio continuam se dirigindo à Europa, mais do que à Índia ou à China, em busca de uma vida mais confortável.

Militarmente, o Ocidente continua soberano. Desde a Segunda Guerra Mundial, o território dos países da OTAN permaneceu praticamente inviolado, com a exceção de ataques terroristas pontuais. Apesar de estar avançando rapidamente nesse quesito, a China não consegue fazer frente ao poderio ocidental.

Culturalmente, o Ocidente também não parece estar indo mal — pelo menos não quando o critério é a influência. Potencializados pela internet, a música e os filmes produzidos nos Estados Unidos e na Europa alcançam os quatro cantos do globo com uma facilidade impressionante. A relevância cultural da China, por exemplo, praticamente se limita às próprias fronteiras.

Dinheiro não é tudo

Se economicamente, militarmente e culturalmente o domínio do Ocidente continua incontestável, como é possível dizer que ele está em decadência? A resposta é que o sucesso econômico, ou mesmo militar e cultural, não explica tudo.

Há bons argumentos em favor da tese de que a decadência do Ocidente é sobretudo moral, e que os outros pilares vão acabar cedendo com o tempo. E é possível olhar para alguns dados objetivos. Se o progresso gera indivíduos egoístas, hedonistas e superficiais, a consequência será a ruína de três elementos essenciais de uma civilização: família, religião, pátria. Em comum, os três carregam a ideia de que existe algo acima do indivíduo e mais importante do que a auto-satisfação.

A confiança no futuro não se calcula por declarações ou em livros de filosofia, mas em elementos mais objetivos: a taxa de natalidade e a disposição em arriscar a própria vida na defesa da nação.

O primeiro pilar, o da família, não parece ir bem: boa parte dos países ocidentais têm taxas natalidades abaixo de 2,1 por mulher, o que significa que a população está diminuindo. Os níveis de divórcio são elevados, e só pararam de crescer porque cada vez mais pessoas nem chegam a se casar.

A religião, por sua vez, parece seguir o mesmo caminho da família. Ir à igreja nunca foi tão pouco popular. O problema é maior na Europa, onde países como a República Checa e a França têm quase 50% de ateus e agnósticos. Mas os Estados Unidos seguem o mesmo caminho: em neste ano, um levantamento do Pew Research Center mostrou que o número de pessoas que  frequenta a igreja regularmente nunca foi tão baixo.

Por fim, a ideia de sacrifício pela pátria tem se tornado uma relíquia do passado: número de pessoas que morreria pelo país é pequeno. Uma pesquisa global divulgada em 2015 pela Gallup mostrou um padrão claro. O percentual médio mais alto foi o do oriente médio e do norte da África — países majoritariamente muçulmanos. Nessa região, a média foi de 83%. No extremo oposto, a menor percentagem foi a da Europa Ocidental, com 25%. Nos Estados Unidos, o índice é de 44%. Já China,(71%), Índia,(75%) e Quênia (69%) estão acima da média global.

Mesmo economicamente, o Ocidente, se não está empobrecendo, está perdendo importância relativa. Em especial para a China. Apenas duas décadas atrás, os Estados Unidos eram o principal parceiro comercial dos países africanos, e de boa parte dos asiáticos. Hoje, os chineses assumiram essa liderança. Com a parceria comercial com os chineses, também surge um compromisso diplomático. O resultado é um afastamento de países africanos e asiáticos do bloco ocidental.

Progressistas desistiram da ideia do Ocidente por causa da sua herança (escravidão, machismo, racismo). Conservadores parecem titubear porque, hoje, o Ocidente já foi profundamente transformado pelos progressistas — a ponto de uma empresa com público infantil, como a Disney, se orgulhar de incluir conteúdo LGBT para crianças e de uma das “mulheres do ano” ser um homem biológico.

"Nacional-conservadorismo"

Ao mesmo tempo, um movimento — curiosamente, capitaneado por não-americanos, tem propagado a ideia de que a salvação está numa aposta redobrada no tripé tradicional: família , religião e nação. O chamado “nacional-conservadorismo” possui como modelo Israel e a Hungria.

Em comum, esses regimes têm o fato de serem antiliberais — ou seja: de não concordarem com o princípio de que todas as civilizações são igualmente valiosas, e que a moralidade objetiva é uma simples ilusão. Israel, em especial, parece ser um bom exemplo: o país tem uma taxa de natalidade muito superior à dos países europeus, religião continua tendo um papel central na sociedade israelense, e 66% dos cidadãos de Israel afirmam que morreriam pela nação. As taxas de divórcio estão entre as mais baixas do mundo desenvolvido.

Talvez não por acaso, o nome do autor israelense Yoram Hazoni esteja se tornando cada vez mais popular entre os conservadores americanos preocupados com a decadência do Ocidente. Autor de “A Virtude do Nacionalismo” (lançado no Brasil em 2019 pela Vide Editorial), Hazoni afirma que o pluralismo e o multiculturalismo são ilusões: para ele, sem uma identidade nacional clara, famílias fortes e um senso de transcendência, as sociedades humanas perdem a própria razão de existência.

Uma das possíveis explicações para a queda do Império Romano foi o seu sucesso. Não só porque o progresso financeiro levou os tempos fáceis a gerar homens fracos. É que a própria ideia de império parece ser autodestrutiva: ao se expandir, o regime precisou incorporar outros povos e necessariamente se tornar menos romano. Ao se tornar cada vez menos romano, ele também perdeu o único fator que o mantinha unificado. E caiu.

Se Israel tem algo a ensinar, é o fato de que apenas uma identidade nacional clara, em vez de um apelo genérico a ideias como “a humanidade”, é capaz de dar vitalidade a um povo. A dúvida é se Estados Unidos e a Europa estão dispostos a seguir esse caminho. Caso o cenário pessimista se confirme, vai ser possível dizer que James Burnham estava certo: a morte do Ocidente terá sido um suicídio.

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