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“Como enfrentar o ódio”

Felipe Neto escreve livro “antiódio” que prega o ódio

Felipe Neto (no centro) acompanhado de Marcelo Freixo (esquerda) e Lula (direita). Em novo livro, Neto reduz direita e esquerda a ódio e amor.
Felipe Neto (no centro) acompanhado de Marcelo Freixo (esquerda) e Lula (direita). Em novo livro, Neto reduz direita e esquerda a ódio e amor. (Foto: Marcio Menasce/Flickr)

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Um velho adágio político diz que, se uma pessoa não é de esquerda quando jovem, não tem coração, mas se não se torna mais conservadora quando madura, não tem cérebro. Se é verdade, Felipe Neto é um dos exemplos de marcha à ré nessa tendência, como ele deixa claro em seu novo livro “Como enfrentar o ódio: a internet e a luta pela democracia” (Companhia das Letras).

O influenciador, que disse um dia “cadeia neste corrupto chamado Lula, neste safado, neste ladrão, neste delinquente desgraçado que afundou o nosso país” (2016, quando tinha 28 anos) agora diz “Entre Lula e Bolsonaro, não há polarização, o que há é a disputa entre a sensatez e a barbárie, entre a paz e a violência, entre a vida e a morte” (escreveu agora com 36 anos, no livro). Dilma Rousseff, se antes “escarrou na nossa cara” ao tentar nomear Lula para a Casa Civil, agora é “absolutamente incorruptível”.

Com frequência, Felipe Neto descreve sua posição “de direita” anterior como “ódio”. Quando fez as pazes com o PT, ele postou uma foto com Lula em 25 de setembro de 2022 e colocou a legenda “É hora do amor vencer o ódio! Lula 13 no primeiro turno!” — ele recebeu agradecimento do então candidato no mesmo dia (“Feliz com nosso encontro, seu apoio e confiança”, disse Lula), mas curiosamente deletou a postagem depois.

Felipe Neto parece orientado por uma teoria política em que o pensamento político se divide entre os lados do ódio e do amor, mas tenta convencer o leitor que sua conversão para a esquerda foi fruto não desse sentimentalismo, mas de “estudo”. Seu sucesso nisso, como veremos, é bem limitado.

Felipe Neto toma responsabilidade, mas a culpa é do tio e da Igreja

Apesar de em várias passagens o autor alegar que o livro é sua mea culpa, sua oportunidade de se responsabilizar pelo que fez de errado, não é bem isso o que transparece da descrição que ele faz do ambiente em que cresceu.

Criado pela mãe no Engenho Novo, “zona bastante desfavorecida da cidade do Rio de Janeiro”, as condições eram humildes em sua casa sem rua asfaltada, mas ao menos ele “era um homem branco de família branca” (um aceno do autor aos identitários).

Felipe culpa o tio por sua doutrinação na suposta direita raivosa, pois ele era “quem fazia a cabeça da família” e “um homem tradicional e conservador”. “Tudo que ele dizia ficava impresso na minha cabeça”, afirma o youtuber, “e o mesmo ocorria com minha mãe, verdadeira esponja replicadora de tudo que chegava a ela pelo irmão”.

Pequena digressão linguística: um dos conselhos de George Orwell para bons escritores é que evitem metáforas gastas, evitem misturar metáforas, e que sejam precisos na imagem evocada por elas. Felipe Neto, além de criar a “esponja replicadora” como crítica à própria mãe, produziu esta maravilha: “Meu ódio contra aquela criatura [candidato petista] havia começado como um pequeno tijolo e se transformara em uma fortificação indestrutível, rodeada de um fosso cheio de crocodilos e guardas armados até os dentes com granadas e fuzis”.

Quais eram as supostas crenças erradas do tio, segundo o sobrinho? Era “um homem peculiar” que “nutria um ódio gigantesco por governos de esquerda”, não era “uma pessoa ruim”, mas foi “vítima” de “uma máquina de propaganda da meritocracia que vende que a direita é boa e a esquerda é má”.

Não fica claro qual era o problema exato do tio de Felipe Neto acreditar na “meritocracia”, dado que ele se formou em direito “já depois dos quarenta anos, ascendeu e começou a ganhar dinheiro com escritório próprio de advocacia, transformando sua casa dos fundos em uma grande casa de três andares”. Parece que ser de direita funcionou muito bem para ele. O sobrinho falhou em mostrar onde, exatamente, estaria o problema, fora das alusões vagas a “ódio”.

Felipe também atribui à suposta crença equivocada na “meritocracia” o fato de ele ter começado a trabalhar aos 13 anos, e ter sido diligente em atingir sucesso com trabalho duro em diferentes projetos online, culminando em seu canal no YouTube. A crença no mérito também funcionou para ele, mas o recém-convertido para a esquerda agora quer chutar a escada — como quer fazer em relação à liberdade de expressão online, da qual foi beneficiário.

Além do culpado pelo “ódio” político confessado por Felipe ser supostamente seu tio, a culpada pela homofobia (que o autor confessa ter abandonado) foi a influência da “Igreja católica, entre outros”.

Para alguém que tenta convencer seu leitor que teve uma conversão política porque reconheceu os próprios erros, Felipe Neto culpa os outros demais. Ele até reconhece erros, mas somente quando foram cometidos pelo antigo Felipe de direita: “se eu tinha fracassado, a culpa era do PT. (...) Quando fracassa, o meritocrata é o primeiro a não assumir a culpa”.

O livro antiódio que prega o ódio

Felipe Neto tenta explicar por que, enquanto exalta sua jornada na direção do amor, ainda tem permissão de si mesmo para odiar Bolsonaro. “O meu ódio à esquerda nasceu da minha ignorância, enquanto minha batalha contra o neofascismo nasceu do meu estudo e vivência”, alega o influenciador.

 “Nem todo ódio que sentimos está errado, pois não podemos e não devemos compactuar com a intolerância”, explica o autor de “Como enfrentar o ódio”. Ele soa como um revolucionário pronto para pegar em armas: “Aos fascistas, a luta. E nossas armas não serão as flores”. Mas talvez sejam armas de festim: “E quando erramos, corrigimos. Com a mesma intensidade com que cometemos os erros”. Caso não sejam armas de festim, como é que se corrigem erros cometidos por armas que não são flores? Como se “desfuzila” um falsamente acusado de “fascismo”? É o tipo de questão complexa demais para este livro.

Em seu projeto, que não é de “combater o ódio”, mas de permitir o “ódio do bem”, Felipe Neto dedica um capítulo a contar de forma triunfante que Olavo de Carvalho morreu de Covid-19, cujo perigo o pensador minimizava. Neto afirma que a imunidade natural nada teve a ver com a queda no número de mortes em 2022 (não é o que mostramos na nossa extensa cobertura dos estudos científicos para a Gazeta do Povo).

Outro capítulo apoia os desmandos do ministro Alexandre de Moraes expostos até pelo New York Times. Felipe Neto ridiculariza os censurados já no título, “‘Estamos sendo vítimas de censura!!!’” (com aspas, como se os arremedasse), e diz que fazem uma “vitimização que passaria a fazer parte do discurso neofascista no Brasil”. No diagnóstico do youtuber, “Alexandre de Moraes agiu com consciência para conter o avanço do ódio e da desinformação, removendo apenas algumas contas criminosas”.

Resta saber qual foi o crime cometido pelo empresário Luciano Hang, por exemplo, cujas contas nas redes sociais continuam suspensas há mais de dois anos. Ou pelo podcaster Bruno “Monark” Aiub, hoje exilado nos Estados Unidos — sua opinião de que nazistas deveriam ter direito à liberdade de expressão, que motivou a perseguição das autoridades brasileiras, é muito diferente de ele dizer que é nazista.

Felipe Neto diz que Moraes agiu porque o PL das “fake news” não foi aprovado pelo Congresso. É um reconhecimento indireto de que o ministro age à margem da lei e que o influenciador aprova essas ações porque vê os censurados como inimigos. Como a Gazeta do Povo mostrou na segunda edição dos Twitter Files Brasil, Felipe Neto usou acesso privilegiado ao Twitter pré-Musk para pressionar pela censura ao jornalista Allan dos Santos. Agentes do FBI deixaram claro o que pensam das alegações das autoridades brasileiras sobre supostos crimes cometidos por Santos: “são só palavras”, disseram ao ministério da Justiça de Flávio Dino em resposta a um pedido de extradição, segundo a Folha de S. Paulo.

Todo falso defensor da liberdade de expressão a defende apenas para sua própria tribo. Felipe Neto defende o jornalista Ruy Castro por ter sido “perseguido” após publicar em uma coluna “Se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo”. Neto acusa o governo Bolsonaro de ter usado a Lei de Segurança Nacional com uma frequência sem precedentes para perseguir críticos. Nenhum desses críticos teve contas nas redes sociais banidas ou precisou se exilar. Mas Neto aprova a utilização da mesma lei por Alexandre de Moraes para punir o deputado federal Daniel Silveira.

Com advogados e juristas, Neto se gaba de ter fundado o movimento “Cala-Boca Já Morreu”. “Nosso objetivo era defender a verdadeira liberdade de expressão”, explica.

Livro já está fazendo queima de arquivo e ignora conteúdo dos Twitter Files

Como dito, Felipe Neto acredita que se converteu à esquerda por causa de “estudo”. Agora mais culto, ele diz que suas crenças anteriores a 2018 eram um fruto do “viés da confirmação”, que ele praticava, por exemplo, ignorando “reportagens que falavam das grandes conquistas da gestão do Lula, feitos que eu considerava ‘sorte’ ou ‘mentira’”.

O influenciador foi tão fundo nas suas novas convicções que alguns elogios às escolhas de Lula já caducaram: “Para cuidar dos direitos humanos, saiu Damares Alves e entrou um dos maiores nomes do mundo na área, Silvio Almeida”, afirmou elogiosamente a respeito do ministro que Lula demitiu por denúncias de assédio sexual no dia 6 de setembro. O livro de Felipe Neto foi publicado no dia seguinte, ainda consta esta data como data de publicação em sua página da Amazon, mas a Companhia das Letras removeu este trecho inteiro da versão e-book.

Contatada, a editora disse que eram dois os trechos com referência a Silvio Almeida e “a pedido do autor, os trechos já foram retirados da versão e-book e não farão mais parte da obra nas próximas impressões”. A Companhia das Letras não respondeu se a prática de edição silenciosa sem alteração da data de publicação ou número da edição é comum em suas obras.

Felipe também é adepto da teoria da conspiração da “Internacional Neofascista”, que a esquerda brasileira pró-censura usou em abril para tentar desviar o foco do que foi revelado pelos Twitter Files. No livro, ele cita as reportagens, alegando falsamente que o nome “Twitter Files Brasil” foi dado por Elon Musk e que a primeira reportagem teria contado uma “mentira” sobre a remoção de conteúdo por ordens de Moraes. O youtuber alega que as decisões do TSE e Moraes “se referiam à prática de crimes no Twitter”.

Como revelado pela reportagem, consultores jurídicos sêniores do Twitter disseram que o TSE não apresentou “provas da ilegalidade” em suas ordens que buscavam, por exemplo, colher dados de centenas de milhares de brasileiros só por terem postado uma hashtag a favor do voto impresso, “o que pode caracterizar monitoramento e pesca probatória”. A ordem do TSE para rastrear e revelar dados de usuários por postarem hashtags “não cobre minimamente as exigências do Marco Civil”, nas palavras de um consultor. Na época, 2021, o Twitter resistiu e conseguiu reduzir o número de contas que tiveram seus dados colhidos pelo TSE de centenas de milhares para cerca de 200. Felipe Neto não tem nada a dizer sobre isso.

Sobre a reportagem da série que sugeriu acesso privilegiado ao Twitter, o youtuber finalmente respondeu que não se encontrou com o chefe de segurança da rede social, Yoel Roth, para pressionar pela censura de Allan dos Santos. Nas palavras de Neto, ele estava só pedindo “ao diretor do Twitter que fizesse alguma coisa a respeito de Allan dos Santos”.

Se as ideias dificilmente explicam a conversão, o que explica?

A explicação “intelectual” da virada de casaca de Felipe Neto fica implausível, por exemplo, quando ele lista seus antigos heróis e os novos.  “Quase todos os intelectuais que eu admirava se identificavam com a esquerda”, diz o influenciador, listando entre eles Albert Einstein, José Saramago, Marie Curie, Stephen Hawking, Jean-Paul Sartre, Martin Luther King Jr., Frida Kahlo, Oscar Wilde, Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski, Paulo Freire e Malcom X.

A pista para a rasura de sua posição política anterior “de direita” é a lista concorrente de “pessoas pelas quais eu não tinha o menor apreço: Ronald Reagan, Winston Churchill, Margaret Thatcher...”.

Talvez seja mesmo verdade que a posição anterior “de direita” de Felipe Neto se resumia a ódio, mas isso só vale para ele próprio. Ele nunca teve um perfil de alguém que se identificasse, por experiência ou intelectualidade, com posições como conservadorismo ou liberalismo. Por exemplo, há uma década e meia, ele tentou participar do blog ateu “Bule Voador”. É possível que um ateu seja “de direita”, mas muito improvável nesta época. Hoje, ele pouco fala sobre suas crenças nesta área.

Descartado o alinhamento ideológico por afinidade natural (que é defendido por autores conservadores como o filósofo britânico Roger Scruton, segundo o qual conservadorismo não é uma ideologia, mas uma prática de vida), ficam faltando provas de um alinhamento intelectual. Felipe Neto nunca nos dá uma lista de pensadores “de direita” que ele admirava antes de sua conversão. Grandes nomes como Edmund Burke e F. A. Hayek não aparecem no livro. O liberal Karl Popper só aparece para uma distorção comum nas redes sociais em que progressistas tentam transformar uma nota de pé de página de sua obra “A sociedade aberta e seus inimigos” (Edições 70, 2012) em uma defesa da censura.

Se não foram estudos ou argumentos que transformaram a posição política de Felipe Neto, resta-nos especular por que razão isso aconteceu. Eis uma hipótese: Felipe Neto foi para a esquerda justamente porque ascendeu socialmente. Partidos mais ideológicos à esquerda do espectro político como o PSOL hoje são mais populares em bairros nobres como o Leblon (Rio) e Perdizes (São Paulo) que na periferia. As crenças hoje populares na esquerda, como o identitarismo ao qual o youtuber se curva em seu livro, são “crenças de luxo”, como explicado pelo psicólogo americano Rob Henderson.

Apesar de toda a sua afetação de defesa de fracos e oprimidos, a esquerda é hoje muito mais uma visão política de uma elite que de grupos que ela historicamente defendeu, como a “classe trabalhadora”. Uma pessoa muito rica e envolvida em mídia, como Felipe Neto, é um peixe fora d’água se deixa de se declarar “progressista”. É a posição de 81% dos jornalistas brasileiros e 85% dos supostos “especialistas em desinformação”. Além disso, 70% do dinheiro de campanha eleitoral doado por professores universitários do país vai para partidos de esquerda. É evidente também o domínio dessa visão política entre os artistas.

Em suma, em todo tipo de produção cultural do país, se você se identifica com a direita, você é parte de uma minoria pequena sob pressão para calar a boca. E não há nada mais poderoso para moldar as crenças de uma pessoa que o ambiente social ao seu redor. Se Felipe Neto não tivesse virado a casaca, ele continuaria sendo aquele antigo “pobre de direita” e “CEO de MEI”, termos pejorativos que a elite progressista usa para ridicularizar as classes mais baixas que não votam como ela quer.

Não tem nada a ver com estudos ou argumentos. Felipe Neto hoje é de esquerda porque ser de esquerda faz parte do pacote de sinalização de virtudes da elite socioeconômica do país.

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