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O pânico, que ainda não encontra justificativa nos números, dá vazão a uma versão contemporânea do mito diluviano que eliminará os maus e redimirá os bons.
O pânico, que ainda não encontra justificativa nos números, dá vazão a uma versão contemporânea do mito diluviano que eliminará os maus e redimirá os bons.| Foto: AFP

Nos últimos dias, fomos bombardeados por notícias sobre o coronavírus. O que começou como um punhado de casos na longínqua China (0,0005% da população) acabou revelando ao mundo a curiosa e exótica dieta daquele país e sua autoritária capacidade de usar a força para conter uma ameaça sanitária em potencial. E expôs, pela segunda vez neste ano, o desejo mal contido de algumas pessoas verem a Humanidade “purificada”.

É o que chamo de “fetiche da peste”. Ele se revela de tempos em tempos, sempre que alguma doença surge em algum ponto remoto do planeta, matando algumas dezenas e até centenas de pessoas em poucos dias ou meses, para depois desaparecer, vencida provavelmente por antibióticos ou pela incrível capacidade humana de resistir a patógenos desconhecidos num dia e derrotados noutro.

Foi assim com a epidemia de AIDS (que não tem cura ainda, mas cujo potencial assassino está bastante controlado) nos anos 1980, com o surto de ebola, com a doença da vaca louca, com o H1N1 e com a Saars. Está sendo assim com o coronavírus, apesar de os números mostrarem que a doença não é tão letal assim e nem de longe tem chance de aniquilar toda a Humanidade. Sim, os números são do governo comunista chinês e há razões de sobra para não se confiar nesse tipo de estatística. Mas, a não ser que o vírus mate centenas de pessoas em países com estatísticas mais dignas, ainda não há o que temer.

O fetiche da peste exibe seu lado mais perverso ao expressar um desejo mal contido por um “milagre às avessas” qualquer capaz de “purificar” a Humanidade, de eliminar os maus, de criar uma espécie de “caos virtuoso” a partir do qual surgirá uma ordem igualmente virtuosa e na qual os bons reinarão redimidos.

Mito diluviano

Trata-se de uma fantasia antiga – tão antiga quanto a própria história. Está lá a narrativa bíblica do Dilúvio que não me deixa mentir. E há versões semelhantes na mitologia chinesa, grega, hindu, nórdica, maia, africana e até aborígene. A reação contemporânea às grandes “pestes” do dos séculos XX e XXI (entre as quais incluo as pestes reais, como a de varíola e a Gripe Espanhola, e também as pestes falsas já citadas) nada mais é do que uma versão com verniz científica do dilúvio purificador.

E é aí que mora o perigo. Porque a ciência não só criou como já pôs em prática sua própria versão do dilúvio purificador. E, aqui, não estou falando das várias teorias da conspiração que cercam os surtos de AIDS, ebola e, agora, coronavírus. Não. Estou falando da grande experiência eugenista que pretendia criar uma versão pura da Humanidade por meio da eliminação de deficientes, “depravados” e dos considerados racialmente inferiores.

Pode-se argumentar com algum otimismo que essa experiência ficou marcada na história e no inconsciente coletivo como um episódio infame, destinado a nunca mais se repetir. Gostaria muito de acreditar nisso. Mas acho que a força do mito purificador ainda é sedutora demais e ainda encanta muita gente.

Um sinal desse encanto são os gritos catastrofistas de Greta Thunberg e seus seguidores, que veem na possibilidade de uma extinção em massa a oportunidade da refundação do ser humano – menos ambicioso, menos extrativista, menos próspero e, em essência, mais comunal e menos capitalista.

Jordan Peterson, em seu pouco lido e muito citado 12 Regras Para a Vida, aborda com perfeição esse tema ao falar da necessidade humana por ordem sempre que nos percebemos num cenário de caos. É uma necessidade tão grande que investimos todo o nosso intelecto na tentativa de gerar essa ordem que supostamente nos trará a paz eterna e uma versão técnica do Paraíso na Terra. E é a partir dessa necessidade por ordem que o intelecto dá vazão a ideias como as de planejamento centralizado de todos os aspectos da vida, do alimentar ao sexual. Um planejamento que não pode nascer espontaneamente e que precisa ser imposto de cima para baixo. Bom, você já sabe onde vai dar isso.

A ciência, ou melhor, o cientificismo contribui para a criação dessa esperança falsa, macabra e arrogante. Usando o velho e ultrapassado malthusianismo, camuflado por algum verniz da moda, ele pinta vários cenários futuros nos quais está implícita a necessidade da eliminação de milhões de seres humanos descartáveis para que outros tantos milhões de escolhidos e ungidos sobrevivam, prosperem e levem a Humanidade a um outro patamar qualquer.

Fetiche da guerra

Não por acaso, o fetiche da peste tem um irmão gêmeo – e é curioso que os dois tenham sido vistos de mãos dadas neste primeiro mês de 2020. Falo do fetiche da guerra, que vê na possibilidade de um conflito mundial, quiçá nuclear, a oportunidade para a recriação da Humanidade. Se bem que o fetiche da guerra consegue ser ainda mais macabro, uma vez que faz uso de noções como a nobreza e o heroísmo para propor, nunca explicitamente, a aniquilação daqueles que parecem estar sobrando.

Sinto ser eu a furar a bolha de alguns, mas não, o coronavírus jamais será uma Peste Negra, cujas consequências, entre elas o ateísmo (esse, sim, epidêmico), sofremos até hoje. Não, o coronavírus não será a Gripe Espanhola nem a varíola – cujas mortes contabilizadas aos milhões são prova, aliás, de que o mito diluviano falha miseravelmente em dar à luz essa utopia de uma sociedade perfeita ou pelo menos mais ordeira.

O coronavírus vai passar. Mas, daqui a alguns anos, outra doença, ameaça de guerra ou até um desses meteoros que costumam “passar perto” da Terra surgirá, despertando novamente o pânico algo cínico que, por trás de uma máscara e besuntado em álcool em gel, esconde essas fantasias sombrias de purificação do ser humano.

Resta-nos torcer para que neste caso, como agora e sempre, estejamos bem protegidos dentro da caótica arca.

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