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Cena do filme "Mr. Jones"
Cena do filme “Mr. Jones”: a coragem de um repórter para expôr os crimes do regime comunista soviético| Foto: Divulgação

Após a revolução bolchevique de 1917, a Ucrânia não conseguiu escapar do controle soviético. A coletivização do campo promovida por Stalin estabeleceu o confisco das propriedades e fazendas privadas, bem como de todos os alimentos. Essa política foi aplicada pela polícia estatal e por agentes locais e, como conseqüência, pelo menos quatro milhões de ucranianos -- e vários milhões a mais na União Soviética -- morreram de fome. O número de mortos, assim como as testemunhas da época, conta uma história de brutalidade impressionante. Então, por que ouvimos falar tão pouco sobre isso?

Entre as primeiras pessoas a se fazer essa pergunta estava um jovem jornalista galês chamado Gareth Jones, o personagem principal de um novo filme disponível no iTunes, "Mr. Jones", de Agnieszka Holland. Nascido em 1905, Jones se formou na Universidade de Cambridge em russo, alemão e francês, trabalhou como consultor estrangeiro do ex-primeiro ministro Lloyd George e -- jornalista talentoso e linguista -- conseguiu obter uma entrevista com Adolf Hitler no início dos anos 30.

O filme começa com Jones (interpretado pelo ator James Norton) avisando, sem sucesso, membros do establishment britânico de que Hitler é perigoso e que mudará a Europa para sempre. Depois disso, Jones viaja para Moscou em busca de outra informação: uma entrevista com Stalin sobre seu plano quinquenal (que coletiviza as fazendas soviéticas). Embora a entrevista com Stalin nunca se concretize, Jones descobre uma história com consequências muito mais graves: a horrível fome imposta pelo Estado, o Holodomor (que significa "matar de fome"), propositadamente ignorado pela imprensa estrangeira em Moscou.

Os jornalistas mais influentes, como Walter Duranty, do New York Times (que ganhou um Pulitzer por suas reportagens) e Eugene Lyons, da United Press, estavam essencialmente realizando propaganda soviética. Correspondentes estrangeiros eram mantidos em Moscou, não podiam entrar na Ucrânia, e dependiam fortemente da cooperação soviética para obter histórias. Duranty tinha um apartamento e uma amante patrocinados pelos soviéticos e acesso exclusivo a funcionários importantes (incluindo, em várias ocasiões, o próprio Stalin, que falava confiante de sua cobertura favorável). Não há dúvida de que eles conheciam a verdade inconveniente. Mais tarde, Lyons admitiu: "A fome foi aceita como uma questão natural em nossas conversas casuais nos hotéis e em nossas casas". Mas nunca em suas reportagens.

Quando Jones contou sua história, Duranty (cujo Pulitzer, o filme nos lembra, nunca foi revogado) continuou negando a verdade e conseguiu, em grande parte, desacreditar a história de Jones. A reputação de Jones nunca se recuperou, e ele foi assassinado por bandidos chineses três anos depois, em circunstâncias que sugerem um jogo sujo da União Soviética.

Duranty, enquanto isso, jantou com Franklin Roosevelt (então governador de Nova York) e escreveu sobre o experimento de Stalin no New York Times ("all the news that’s fit to print") que "você não pode fazer uma omelete sem quebrar ovos." A biografia de Duranty, escrita por Sally J. Taylor em 1990, “Stalin’s apologist (sem versão em português)”, detalha como, além de seus relatos imprecisos, o correspondente participava de orgias, além de abusar de drogas e álcool. Taylor documenta "a amarga e irônica história de um homem que teve a rara oportunidade de trazer à luz o sofrimento das milhões de vítimas de Stalin, mas permaneceu prisioneiro da vaidade, autoindulgência e sucesso".

Embora o filme caracterize com precisão Duranty, a família de Gareth Jones reclama que o mesmo não é verdade para ele. A sobrinha de Jones, Margaret Siriol Colley, publicou os cadernos de seu tio nos anos 90, que agora são exibidos em sua antiga faculdade de Cambridge, ao lado de memorabilias pertencentes ao ex-aluno Isaac Newton. A família de Jones reclamou das "múltiplas ficções" no roteiro de Jones. Seu sobrinho-neto disse ao Sunday Times que Jones "não testemunhou nenhum cadáver ou canibalismo, muito menos participou de algum".

No entanto, o roteiro de Andrea Chalupa é mais sobre a verdade que Jones expôs. E, nesse sentido, o roteiro está alinhado com a História. O livro “Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin: A Europa entre Hitler e Stalin (Editora Record)”, de Timothy Snyder, relata como, em desespero, as pessoas comiam os mortos, incluindo membros da família. A escritora Anne Applebaum discute abertamente o canibalismo dentro das famílias em seu livro “A fome vermelha: A guerra de Stalin na Ucrânia (Ed. Record)”. Quanto à cena na qual um bebê que está chorando é jogado com o cadáver de sua mãe em uma carroça cheia de cadáveres, é tirada do relato de um sobrevivente do Holodomor, avô da própria Chalupa, cujas memórias ela entrelaça em seu livro “Orwell and the Refugees: The Untold Story of Animal Farm (Orwell e os Refugiados: a história não contada de ‘A Revolução dos Bichos’, em tradução livre, sem edição no Brasil)”.

No filme, Jones tem um breve contato com Malcolm Muggeridge, correspondente do jornal ‘Manchester Guardian’, que também conseguiu contar histórias sobre a fome na URSS, publicando-as anonimamente. De volta à Inglaterra, Jones também conhece George Orwell, um escritor socialista, cuja opinião sobre o experimento de Stalin ele parece conseguir mudar. Não está claro que, na realidade, os dois jamais se conheceram. Mas há uma verdade simbólica aqui também.

No livro “Orwell and the Refugees”, Chalupa explica que, em 1947, remessas da edição ucraniana de “A Revolução dos Bichos” - a primeira língua estrangeira em que o livro foi publicado - foram interceptadas por americanos que, vendo Stalin como um aliado crítico na derrota de Hitler, as entregaram às autoridades soviéticas. Felizmente, cerca de 2.000 livros escaparam e foram levados por ucranianos que deixaram o país. Chalupa explica: “Soube dessa história incrível pela introdução de Christopher Hitchens em a ‘A Revolução dos Bichos’. Inspirada, decidi transformá-la no final esperançoso do roteiro sombrio em que eu vinha trabalhando há muitos anos sobre o terror da fome imposta por Stalin à Ucrânia. ”

“Até 1939, e mais tarde, a maioria dos ingleses era incapaz de avaliar a verdadeira natureza do regime nazista na Alemanha, e agora, com o regime soviético, eles ainda estão em grande parte sob o mesmo tipo de ilusão”, Orwell escreveu no prefácio ucraniano de “A Revolução dos Bichos”. O filme começa com Orwell em uma máquina de escrever, escrevendo sua alegoria do regime soviético - um lembrete de que escritores de verdade não promovem a mentira, não importa o custo.

©2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês 
Conteúdo editado por:Jones Rossi
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