O Ministro da Economia Paulo Guedes quer dar mais liberdade profissional ao acabar com a adesão obrigatória a conselhos de classe, o que pode afetar não apenas os profissionais de cada área, mas também seu bolso e como você enxerga seus direitos.
Os 29 principais conselhos de classe no país arrecadam juntos R$3 bilhões com a cobrança de anuidade obrigatória. Entre eles, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é o que mais fatura. De acordo com o Portal da Transparência, a OAB arrecadou ao menos R$ 529 milhões em 2017, apenas por meio das anuidades. Mas o montante é maior, já que nove seccionais não revelam seus dados.
Se a PEC 108/2019 for aprovada, o monopólio de regulação dos conselhos de classe pode acabar. Assim, questões polêmicas atualmente impostas pelas entidades podem ser revistas.
No caso da advocacia brasileira, atualmente são proibidas a propaganda e a atuação de advogados estrangeiros no país. A advocacia pode ser revolucionada se houver mudança em alguns pontos da regulamentação da profissão. E, como diz o ditado, todos precisam de um advogado em algum momento da vida (nem que seja para fazer o seu inventário). Então isso impactará a sua vida também.
Propaganda
Para impedir a “mercantilização da profissão”, a OAB proíbe a chamada propaganda ativa na advocacia . Essa restrição parte da premissa de que advogados têm a função social de serem “a porta de acesso à justiça”. Nessa perspectiva, a profissão não seria um negócio qualquer que busca o lucro e, se permitida, a propaganda comprometeria a dignidade da profissão. O veto, no entanto, não é unanimidade entre os profissionais.
O advogado e diretor de relações institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo Ricardo Peake Braga conta que há um impasse sobre o assunto. De um lado estão os grandes, tradicionais e conceituados escritórios de advocacia. Eles já estão estabelecidos no mercado e não precisam de propaganda. Do outro lado estão os profissionais recém-formados, que sofrem dificuldades para se apresentarem ao mercado por causa das restrições à propaganda.
Ele esclarece que a advocacia não é vista pela OAB como uma atividade mercantil. “Propaganda está vinculada à ideia de comércio ou mercantilização de produtos, visa alcançar público maior e incentivar a demanda. A publicidade informativa é permitida, mas a propaganda indutiva é proibida”, afirma.
O presidente da OAB Felipe Santa Cruz já se manifestou e disse que a mercantilização da advocacia não atinge apenas os colegas de profissão. "Todos os cidadãos ficam vulneráveis. Assim como lutamos pela qualidade do ensino jurídico, não podemos permitir que a advocacia seja tratada como um mero produto de consumo", afirmou.
Para o advogado Pedro Cabral, que atua na área há 25 anos, tudo não passa de uma desculpa para proteger os interesses dos grandes escritórios. “Eles dizem querer evitar que a atividade advocatícia se transforme em atividade empresarial mas, na essência, os maiores escritórios são empresas”, afirma. “Toda essa conversa bonita é papo furado. Tudo que vi sobre a atuação da OAB em todo esse tempo me leva a crer que as proibições de propaganda protegem os grandes escritórios ao criarem reserva de mercado”.
Ele critica quem acredita que a proibição da propaganda manterá a nobreza da advocacia. “Quem acha que advocacia é algo mais nobre do que o comércio é prepotente. Só compra esse discurso contra propaganda quem quer reserva de mercado (os grandes escritórios) ou quem é prepotente e se acha especial", dispara.
Propaganda na advocacia seria bom para o judiciário?
Há um debate quanto à publicidade na advocacia ser ou não benéfica para o acesso à justiça porque, se houvesse redução nas vedações de propaganda ou mesmo sua abolição, haveria mais divulgação de direitos e precedentes. O público teria mais informações sobre seus direitos e deveres.
Mas se por um lado as pessoas, uma vez mais bem informadas, recorreriam mais ao Judiciário para resolver problemas, por outro haveria mais processos na justiça. Hoje o Poder Judiciário brasileiro tem cerca de 80 milhões de processos em tramitação. Proporcionalmente ao número de habitantes, é o segundo mais caro do Ocidente, perdendo apenas para El Salvador.
Há quem considere a permissão da propaganda um problema porque ela poderia levar à veiculação de propagandas falsas e estímular ações inúteis. Nesse caso, o Judiciário brasileiro, que já é lento, ficaria ainda mais abarrotado. Mas quem defende a permissão da publicidade diz que, ao restringí-la, menos pessoas ficam informadas sobre seus direitos. Pedro Cabral concorda que permitir a propaganda pode gerar problemas como a propaganda enganosa, mas argumenta que, ainda assim, os benefícios superam os ônus. “Com a propaganda, acredito que mais pessoas teriam acesso à informação sobre a defesa de seus direitos”, diz.
A restrição da propaganda por parte de escritórios de advocacia é tão ampla que até mesmo a divulgação de trabalhos voluntários é proibida. A respeito disso, Cabral diz que o argumento para essa medida é a suposta depreciação que isso causaria à profissão, mas critica a regra: “A OAB é uma guilda monopolista. Eles não querem estimular o trabalho voluntário na área porque acham que isso vai prejudicar o mercado dos advogados. É outra forma de reserva de mercado”, diz.
Contra concorrência de advogados estrangeiros
Outra vedação imposta pela OAB no exercício da advocacia no Brasil e que pode ser classificada como reserva de mercado é a proibição da concorrência de escritórios estrangeiros. Atualmente, advogados de fora do país podem atuar por aqui apenas como consultores.
Segundo o jurista Luciano Timm, em seu livro Artigos e Ensaios de Direito e Economia (Ed. Lumen Juris), a regulamentação atual é problemática. “O argumento de mercado é que o melhor seria deixar a livre concorrência entre bancas nacionais e estrangeiras [...] Contudo, como o tema envolve comércio exterior, parece que o melhor órgão para tratar dos interesses nacionais seja o Poder Executivo, responsável pela condução de nossa política comercial exterior”, escreve ele.
Ou seja, a OAB não teria competência nem como órgão de classe para regulamentar essa questão. Permitir a atuação de profissionais estrangeiros no país faria parte de um processo de abertura comercial, algo que deve ser decidido pela União.
Além disso, Timm afirma que a OAB pode ser “sequestrada” por grandes escritórios. É o que se chama de captura regulatória: quando os interesses do agente que escreve a legislação conflitam com o que seria melhor para o interesse público.
Por que a propaganda dos advogados é permitida nos Estados Unidos?
Ao contrário do Brasil, os escritórios de advocacia americanos podem se promover distribuindo panfletos, veicular propagandas na televisão e em outdoors. “A maioria dos advogados não consegue imaginar um sistema diferente do atual”, segundo o professor e advogado Thomas D. Morgan, um dos responsáveis pelo Código de Ética dos advogados norte-americanos.
O caso Bates vs. State Bar of Arizona julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1977 foi responsável por definir as regras de propaganda da advocacia naquele país. Os argumentos utilizados para permitir a propaganda contrastam com os utilizados no Brasil para proibí-la.
O caso conta a história de John Bates e Van O'Steen, que se graduaram pela Universidade Estadual do Arizona em 1972. Eles abriram um escritório focado em atender casos de baixa complexidade a um custo baixo, reduzindo suas margens de lucro. Assim, entenderam que precisavam de escala para que o negócio fosse financeiramente viável e decidiram fazer um anúncio com os preços de cada serviço.
No entanto, em 1976 o Estado do Arizona proibiu os advogados de anunciarem seus serviços. Foi aberto um processo disciplinar contra os sócios do escritório, o que poderia resultar na suspensão profissional deles. A defesa argumentava que a proibição da propaganda violava o Sherman Antitrust Act (a lei norte-americana antimonopólios) e a Primeira Emenda da Constituição americana (que trata da liberdade de expressão).
O caso chegou à Suprema Corte, que considerou que “o discurso comercial atende a interesses sociais significativos”. Segundo os ministros, a propaganda informa ao público a disponibilidade, a natureza e os preços dos produtos e serviços, permitindo aos consumidores atuar de forma racional.
A Suprema Corte também analisou o argumento de que a propaganda poderia incentivar o abarrotamento dos tribunais, incentivando ações judiciais desnecessárias e inúteis. Isso foi desconsiderado porque, de acordo com um estudo da época, 70% dos norte-americanos não estavam sendo atendidos ou alcançados adequadamente pelos advogados. Isto é, o acesso à justiça no país era precário e permitir a propaganda poderia ajudar a melhorar esses índices.
Outro argumento considerado pelos julgadores foi o de que proibir a propaganda era um meio ineficaz de redução dos gastos gerais dos advogados. Ao limitar a concorrência, haveria menos incentivos para melhorar a qualidade dos serviços jurídicos.
Assim, a Corte decidiu que a proibição da publicidade de advogados violava a garantia de liberdade de expressão.
No mundo
Em Portugal, que influencia muito o direito brasileiro, a regulação sobre propaganda era restritiva. A restrição, contudo, foi abrandada por influência da Comunidade Europeia.
Na maior parte da Europa a propaganda é permitida. As poucas restrições variam de país a país. Na Áustria, Finlândia e França, por exemplo, não é permitida propaganda em rádio e televisão. Já na Dinamarca há forte vedação contra informações incorretas.
A China se destaca pela legislação proibitiva em relação à propaganda.
Histórico de regulamentação da propaganda na advocacia
A propaganda na advocacia nem sempre foi proibida no Brasil. Até 1921, quando foi criado um Código de Ética Profissional do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), não havia nada semelhante na América do Sul. Ele partia da premissa de que o advogado exercia uma profissão que deveria zelar pela honra e colaboração com a justiça, não devendo realizar propagandas indiretas. “E contrário à ética profissional solicitar serviços ou causas”, constava no artigo 12.
O documento serviu de base para o que viria a ser o Código de Ética da OAB, cujas regras passaram a vigorar a partir de 1934. A regra geral para a propaganda da advocacia era do exercício profissional ser discreto e moderado. Qualquer propaganda indutiva passou a ser proibida. Só eram permitidas propagandas informativas.
A ementa de um julgamento do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP em 1998 se tornou um paradigma por valer até os dias atuais em relação às discussões sobre publicidade. Ela ajuda a entender melhor esse processo:
“A propaganda está mais vinculada à ideia de comércio ou mercantilização de produtos, e visa alcançar público maior, incentivando a demanda para maior lucro do empresário ou comerciante. A publicidade é a informação mais discreta, sem alardes, para público menor e direto, pressupondo a existência de interesse anterior, por menor que seja. O advogado não vende produto, mas presta serviço especializado”.
O advogado e diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo Ricardo Peake Braga afirma que mesmo após a entrada em vigor do Novo Código de Ética da OAB, em 2015, as vedações à publicidade se mantiveram “bastante conservadoras”.
Opinião da Gazeta do Povo
A Gazeta do Povo entende que é preciso superar o afã regulatório e focar na capacidade dos indivíduos. Assim, como regra geral, o Estado não deve impor limites à atividade profissional, sendo inadequadas as restrições que beneficiam não a comunidade como um todo, mas uma classe específica interessada em uma reserva de mercado. A maioria das regulamentações que existem e que estão sendo pleiteadas por diversas categorias é nociva à sociedade.
Para além dos argumentos em prol da liberdade profissional e da liberdade de expressão, há ainda que se considerar que o acesso à justiça se mostra bastante precário. Embora o número de processos judiciais em tramitação no Brasil seja alto, há uma enorme desproporção entre as regiões brasileiras em relação à busca do Judiciário para resolver problemas.
As regiões sudeste e sul concentram 84% de todos os processos judiciais, restando ao norte e nordeste apenas 9% dos processos. Além disso, mais da metade das ações judiciais se referem à União, estados e municípios, 38% a bancos e 6% empresas de telefonia, o que corresponde a 95% dos casos. Nas regiões em que os índices educacionais são piores, a população conhece menos seus direitos e busca menos o Judiciário.
Se, como argumenta a Suprema Corte dos Estados Unidos, permitir a propaganda na advocacia melhora o acesso à justiça, é o caso de se repensar a regulamentação da atividade no Brasil.