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Liberdade de expressão

Flow: por dentro do podcast que mais cresce no Brasil

Monark e Igor: a dupla à frente do podcast "cancelado" que conquistou a internet (Foto: Waldir Evora)

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Uma despretensiosa “conversa de bar” com influenciadores, celebridades, possíveis candidatos à presidência da República e políticos de todos os matizes ideológicos. Esta é a proposta do podcast com mais de 450 milhões de visualizações - só no canal principal do YouTube -, que figura diariamente entre os dez mais ouvidos do Spotify no Brasil. Em outubro de 2018, os nomes do carioca Igor Coelho, de 36 anos, e do paulistano Bruno Aiub, de 31 anos, eram conhecidos apenas pelo público ligado ao universo dos videogames. O vídeo de estreia, ainda disponível no canal, exibe Igor e Monark - o apelido pelo qual Aiub é conhecido desde os tempos dos gameplays - entre copos de cerveja, conversando em uma mesa pequena. Três anos depois, o Flow Podcast revolucionou um mercado que, até pouco antes da pandemia, era incipiente no país. Hoje, sua relevância extrapola os números vultosos: com frequência, os episódios despontam entre os assuntos mais comentados do Twitter - os trending topics -, fomentando debates, controvérsias e, claro, cancelamentos.

“Todo mundo falou pra gente que ia dar errado”, revelou Igor, durante a entrevista concedida pela dupla à Gazeta do Povo, via videochamada. Os dois se conheceram em uma hamburgueria de Curitiba através de um amigo em comum e, de um período de fracassos, nasceu a ideia de criar um negócio novo, do qual participa também o diretor Gianluca Eugenio e o produtor Sérgio Coelho. Foram necessários dois anos e investimentos para que o projeto vingasse. “Gastávamos 20, 30 mil reais por mês só para colocar o podcast no ar. Fomos receber nosso primeiro salário lá para o meio de 2020”, conta.

Embora seja difícil precisar quando, exatamente, o Flow deixou de ser mais uma aposta em meio à infindável safra de podcasts surgidos nos últimos anos para se tornar um fenômeno, as primeiras semanas da pandemia marcaram a história do projeto. Gravado no dia 13 de março, episódio 177, com participação do streamer Alexandre Borba Chiqueta - o Gaules -, vencedor dos prêmios de Melhor Streamer e Melhor Personalidade do eSports Brasil, é campeão absoluto de reproduções e o “ponto de inflexão” do Flow. Em três horas de conversa, o ex-jogador de Counter Strike narrou sua infância difícil, sua luta contra a depressão e o retorno ao estrelato, levando elenco e produção às lágrimas. “A gente já tinha um público legal, mas o Gaules validou nosso ponto. É o ápice do que o formato pode entregar: uma experiência humana emocionante, um papo no qual você aprende muito”, lembra Monark.

Liberdade de expressão e diversidade de ideias

Embora a descontração seja a ordem da casa, nem só de assuntos - e convidados - fáceis é feita a grade. A lista de políticos recebidos pela dupla é extensa e abarca todos os espectros ideológicos. Para ficar só entre os mais ouvidos, já marcaram presença nos estúdios Flow figuras como Eduardo Bolsonaro (PSL), Ciro Gomes (PDT), João Doria (PSDB), Fernando Haddad (PT), Eduardo Leite (PSDB), Cabo Daciolo (Avante), Guilherme Boulos (PSOL), João Amoedo (Novo) e Marcelo Freixo (PTB), além de ex-integrantes do governo Bolsonaro e deputados de diversos partidos. As portas abertas à divergência renderam toda sorte de rótulos: “Há quem nos chame de esquerdistas e de bolsominions”, explica Igor.

Mais do que a variedade de convidados recebidos, foi a defesa inegociável da liberdade de expressão, empenhada principalmente por Monark, que levou a dupla a enfrentar a mais dura onda de “cancelamentos”: no último mês de outubro, o Flow perdeu dois patrocinadores relevantes - entre eles, o Ifood - por conta de um tweet no qual o youtuber questionou se ter uma opinião racista pode ser considerado crime. Ao anúncio do rompimento do contrato, seguiu-se uma nota da empresa acusando Monark de racismo e uma enxurrada de xingamentos na internet, à qual os apresentadores reagiram energicamente (“virei pós-doutor nesse negócio de cancelamento”, brincou o apresentador).

Em uma semana, uma nota conjunta do Flow e do Ifood apaziguou os ânimos. "Ambas companhias defendem, na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual, o poder e a importância do diálogo. Concordamos que a comunicação de ambos os lados falharam nesse objetivo. (...) A empresa identificou que poderia ter sido mais clara em sua comunicação; Monark, por sua vez, afirmou categoricamente que não apoia o racismo, tampouco qualquer tipo de discriminação com base em sua aparência, crença ou sua própria visão como individuo”, diz o texto.

À Gazeta do Povo, o apresentador esclareceu a indignação com o episódio. “Se o argumento fosse ‘não quero me envolver em polêmica’, perfeito, eles têm todo o direito. O que eles não podem é me chamar de racista”, explica Monark. A semana transcorrida entre a postagem e a divulgação da nota foi de apreensão. “Tivemos medo de que a saída do Ifood fosse surtir um efeito cascata e que ninguém fosse mais querer se associar ao Flow. Aconteceu o contrário: depois que a gente se posicionou agressivamente, refutando o que estava sendo imposto, o público nos apoiou. As pessoas estão de saco cheio dessa galera lacradora e canceladora, e acho que as empresas sentiram isso. Muitas que estavam com receio de fechar patrocínio foram em frente. Ficou uma sensação de solidez da marca”, diz o youtuber. “O aspecto de não ‘arregar’ foi importante. Ninguém aqui arregou. As pessoas diziam para ‘deixar a poeira baixar’ e a nossa postura foi o oposto, porque o que aconteceu foi injusto. Eu estava disposto a ir para a briga mesmo”, concorda Igor.

No olho do furacão virtual do cancelamento, o Flow contou com a defesa enérgica de um de seus convidados mais polêmicos: o jornalista Glenn Greenwald. Entrevistado no final de outubro, pouco antes da confusão com o Ifood, o jornalista contou à reportagem sobre a experiência e justificou a defesa da dupla.

“Até então, eu só sabia que parte da esquerda odeia o Flow. Diziam que o Monark é ignorante, como descrevem todo mundo que não é de esquerda. Achei que os dois não apenas não são burros como são bastante inteligentes, só não são obcecados com os detalhes da política. Eles me fizeram perguntas interessantes e ouviram com atenção, de modo que consegui entender por que eles são tão populares: as pessoas confiam que eles estão tentando entender um argumento sem a obrigação de agradar um partido ou um campo ideológico. Ficou claro para mim que a popularidade deles remete à do podcast espetacular do Joe Rogan”, defende Greenwald, que voltou ao Flow na última segunda-feira (22), acompanhado do marido, David Miranda, deputado federal pelo PSOL.

A referência ao podcast The Joe Rogan Experience não é mera coincidência. Com um contrato de 568 milhões de dólares com o Spotify, o ex-comediante americano é a inspiração declarada da dupla brasileira: pelo programa de Rogan já passaram figuras do calibre de Elon Musk, Sam Harris, Jordan Peterson, Dave Chapelle, Mike Tyson e Neil DeGrasse Tyson - além de toda a elite de influenciadores conservadores e progressistas “cancelados” pelos guerrilheiros digitais, de Peter Boghossian a Abigail Shrier. Por ter questionado a eficácia das vacinas e demorado alguns meses para aderir à campanha, Rogan passou a ser retratado por parte da imprensa americana como “antivax” e “extrema-direita”, mesmo depois de admitir que foi imunizado. Na prática, adiantou pouco: há mais de uma década, o programa é campeão absoluto de audiência.

“Se você perguntar à esquerda o que acham do Joe Rogan, vão dizer que é burro e um extremista de direita. Acontece que Rogan apoiou Bernie Sanders nas eleições de 2020 e foi cancelado simplesmente por não concordar com todos os dogmas progressistas. Ele diz coisas que não agradam, mas atinge milhares de pessoas e está constantemente afirmando que não é inimigo”, avalia Greenwald, que também esteve com Rogan em duas ocasiões. “Penso que acontece o mesmo com Igor e Monark. Se você não está interessado em só mostrar superioridade moral, precisa conversar. Essa parte da esquerda é autodestrutiva”, diz o jornalista que, na contramão das correntes majoritárias da esquerda, defende a liberdade de expressão por “enxergar o perigoso precedente” de dar ao Estado o domínio sobre o que é dito.

O argumento é compartilhado pelos apresentadores do Flow. “Eu não gostaria que ninguém fosse racista, por exemplo. Mas você não vai apagar essa realidade através de uma lei. Você não vai acabar com o preconceito e ainda vai criar uma ferramenta que dá aos poderosos a capacidade de cercear o discurso público e punir aqueles com quem eles não concordam”, defende Monark. “Mas aí, se eu falo uma m****, se efetivamente sou racista ou discrimino alguém, a sociedade tem o direito de me punir, de não querer fazer negócios comigo ou qualquer coisa”, completa Igor.

Não deixa de ser irônico que, na mesma semana em que o contrato com o Ifood foi rompido, os estúdios Flow, que hoje abrigam gravações de nove podcasts diferentes e, em breve, devem se mudar para um espaço maior em São Paulo, tenham divulgado um projeto que celebra, precisamente, a diversidade de ideias. Apresentado pelo escritor e roteirista Ale Santos, militante da causa antirracista, e pelo professor de filosofia Paulo Cruz, colunista da Gazeta do Povo, o Noir Podcast foi lançado com a proposta de demonstrar como as diferenças podem enriquecer o debate. Em breve, um novo podcast voltado para o público do Capão Redondo, no Campo Limpo, capitaneado por moradores da comunidade, será anunciado pelo grupo. Dois outros projetos são apresentados por mulheres - o Vênus Podcast, com a comediante Criss Paiva e a youtuber Yasmin Yassine, e o Prosa Guiada, apresentado pela camgirl Emme White -, além dos canais sobre ciência, esportes e empreendedorismo.

Os planos do Flow para o ano que vem incluem entrevistas com os presidenciáveis e as negociações de agenda já estão em curso, incluindo os líderes das pesquisas: o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula. Em se tratando de convidados para o podcast, contudo, Monark e Igor já têm seus votos bem definidos: respectivamente, Elon Musk e Adriano Imperador. Em tempos nos quais a subserviência à loucura das massas em eternos rituais de expiação parece ser sinônimo de sucesso, é animador ver um projeto verdadeiramente diverso cair no gosto de quem importa: pessoas de carne e osso, dispostas a se engajar em boas conversas à moda “mesa de bar”. Que venham muitos anos de "cancelamentos".

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