Dois uigures que conseguiram fugir da China e moram nos Estados Unidos contaram, durante a terceira Cúpula Internacional de Liberdade Religiosa, o terror vivido por seus familiares em campos de concentração mantidos pelo Partido Comunista Chinês (PCCh). A escritora e advogada Jewher Ilham e o empresário Kazzat Altay participaram do evento anual, realizado no último mês em Washington D.C., e descreveram as experiências de perseguição e tortura sofridas pelas suas famílias, em entrevista ao jornal The Christian Post.
Filha do economista uigure Ilham Tohti, preso em 2013, Jewher Ilham mora em Washington e trabalha no Worker Rights Consortium, uma "organização investigativa independente de monitoramento de direitos trabalhistas sem fins lucrativos". A última vez que a advogada teve notícias do pai foi em 2017, época em que ele estava preso em Urumqi, capital da região de Xinjiang. Há dez anos, Ilham ia lecionar na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, quando foi detido pelas autoridades chinesas e impedido de embarcar para a América. O PCCh deixou Jewher embarcar, pensando que seria expulsa dos EUA, mas o governo americano a acolheu como refugiada.
Sem saber se o pai ainda está vivo, ela afirma que teve acesso a informações, por meio de outro ex-prisioneiro, de que ele foi espancado na cela, torturado e deixado sem comida. "Nos primeiros meses, quando ele foi preso, descobrimos que lhe negaram comida duas vezes, cada vez por dez dias. E então ele perdeu mais de 18 quilos em poucos meses e todo o seu cabelo ficou grisalho. Na ocasião, ele foi preso com muitos criminosos", relatou à publicação.
Embora não defina o pai como “anti-China”, Jewher diz que ele "definitivamente criticou as práticas do governo chinês antes", o que estaria lhe rendendo essas punições e retaliações. Na cela, segundo lhe contaram, “tinha uma pequena TV” que veiculava “propaganda chinesa 24 horas por dia, 7 dias por semana, com volume muito alto e luz forte, a luz não apagava”. “Então ele basicamente mora em um ambiente onde é 24 x 7 brilhante e cheio de barulho apenas para elogiar o governo chinês, toda essa propaganda [sobre] como a China é ótima, como [o] Partido Comunista é ótimo", lamenta.
De acordo com a advogada, o caso de seu pai já foi levado “várias vezes” por altos funcionários do governo americano — como o secretário de Estado, Antony Blinken — a reuniões com delegações chinesas. “Mas, infelizmente, ainda não vimos nenhum resultado positivo", diz.
Mesmo morando há quase uma década nos EUA, ela diz ter enfrentado ameaças do governo chinês, chegando a receber um envelope com uma lâmina e nada escrito, quando estudava na Universidade de Indiana. “Foi apenas colocado na minha caixa de correio, então essa pessoa definitivamente sabia onde eu morava e estava fisicamente lá."
Formada há quatro anos, seu trabalho envolve, principalmente, combater o trabalho escravo uigur. No evento sobre liberdade religiosa, ela debateu formas de desencorajar corporações americanas a depender de força de trabalho uigur para fabricar seus produtos. Desde o ano passado, a alfândega americana aplica a Lei Uigur de Prevenção ao Trabalho Forçado, proibindo a entrada de produtos da região onde vivem os uigures de entrar no país.
Para o empresário Kazzat Altay, é preciso mais esforços para diversificar a cadeia de suprimentos, “porque nossa dependência também está se tornando [uma] questão de segurança nacional para os Estados Unidos”. “Não acho que o presidente Biden esteja fazendo o suficiente. Ele não é duro com a China. Acho que está sendo brando", criticou o ativista uigur, cujo pai também está preso pelo Partido Comunista.
Falar com o exterior é crime
Após deixar a China em 2005, Altay se estabeleceu na Turquia e, três anos mais tarde, migrou para os Estados Unidos, onde mora no estado de Virgínia. Em 2018, recebeu uma mensagem do pai no WeChat: "filho, eles estão me levando". Foram dois anos sem notícias, até que viu o pai na TV nacional chinesa, dizendo que “nosso governo está me tratando bem" e instando-o a "parar o que está fazendo". O aviso era para que ele deixasse a presidência da Associação Americana Uigur, senão “"não tenho um filho como você", ameaçava o pai na televisão. Mantido atualmente em prisão domiciliar, o pai de Altay é monitorado diariamente por autoridades chinesas e é rastreado durante todo o tempo. Quem mantém o ativista atualizado sobre a situação é um irmão dele.
“Enquanto estava no campo [de concentração], eles quebraram sua perna e ele está sofrendo por causa disso. Ele não consegue andar direito”, conta. Entre as informações que Altay obteve sobre a prisão estavam as dimensões minúsculas das celas, que obrigavam um revezamento para dormir à noite: “ele não queria se levantar para ir ao banheiro porque, se ele se levantasse, não havia espaço para ele dormir". Durante o dia, os uigures ficam "sentados no concreto por 10 horas em um dia e sob o sol por cinco, seis horas" em outro dia.
Ambos os ativistas têm outros parentes com passagens pelos campos de concentração chineses, a que as autoridades comunistas chamam de “campos de reeducação”. O pai de Jewher Ilham, segundo ela soube, "ensinava dentro da prisão" e tinha a incumbência de julgar peças encenadas por grupos de presos, determinando qual elogiava mais efetivamente o governo chinês.
"Dois dos meus tios estiveram em um campo de reeducação por dois anos. Agora, eles foram libertados. Seu estado de saúde não era tão bom depois que eles foram libertados. Eu descobri todas essas informações de nossos amigos chineses Han quando eles visitaram minha família porque não consigo me comunicar com eles com muita frequência", explica a advogada, acrescentando que receber uma ligação do exterior pode constituir crime, segundo a lei chinesa.
"Meu primo foi condenado a dez anos em 2017", acrescenta ela. A prima da ativista também foi detida na região uigur depois que autoridades encontraram no celular dela uma foto e um artigo sobre o tio preso em 2013. Membros da família de Altay também acabaram detidos, reforçando a acusação de que é um crime falar com os parentes que moram nos EUA. “Eles têm medo de falar conosco", completa o empresário.
Graves violações
Estima-se que haja cerca de 12 milhões de uigures, povo majoritariamente muçulmano, na região de Xinjiang, no noroeste da China. Com língua própria (semelhante ao turco), eles representam menos da metade da população local. Durante as últimas décadas, chineses da maioria étnica Han migraram em massa para a região, o que se supõe que seja uma ação orquestrada pela ditadura chinesa para diluir a população minoritária uigur. A China também é acusada de proibir práticas religiosas na região, destruindo mesquitas, túmulos e atacando figuras muçulmanas. Uigures temem que sua cultura esteja sendo apagada pelo Partido Comunista Chinês.
Organizações independentes calculam que mais de um milhão de homens e mulheres já passaram pela extensa rede de campos de concentração, onde uigures são vigiados, torturados, doutrinados e esterilizados à força. Ex-detentos vêm relatando nos últimos anos a existência de um sistema de violência, abuso sexual e estupro em massa nesses locais. No ano passado, um relatório da ONU apontou “graves violações dos direitos humanos” em Xinjiang, mas não falou em genocídio.
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