Parlamentares e líderes políticos progressistas de nove países da América Latina, incluindo o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), se reuniram no último fim de semana em Santiago, no Chile, para criar uma espécie de Foro de São Paulo alternativo. A chamada Rede Futuro, “um espaço de coordenação política para o avanço da justiça social na América do Sul”, seria uma resposta à “necessidade de modernização do discurso das esquerdas”, já que a organização criada em 1990 por Lula e Fidel Castro tornou-se ultrapassada, segundo a assessoria de imprensa do PSOL. Apesar da tentativa de parecer moderno, o Foro ‘light’ na prática professa as mesmas velhas ideias do Foro original.
A síntese dos pontos discutidos no encontro não foi divulgada, apenas uma declaração final, intitulada “Carta ao Futuro”. O documento explica que o objetivo da Rede Futuro é fortalecer o discurso e a unidade da esquerda sul-americana, “combater o neoliberalismo e a extrema-direita em todas as suas manifestações” e contribuir "para fortalecer o sonho de uma pátria grande, livre, justa e soberana".
A Terraza Caupolicán, no Cerro Santa Lucía, uma das áreas verdes mais visitadas da capital chilena, com vista para a Cordilheira dos Andes, foi o cenário escolhido para a fundação da nova frente da esquerda latina. Assim como o Foro de São Paulo, nos anos 1990, buscava “refletir sobre os acontecimentos pós-queda do Muro de Berlim e os caminhos alternativos e autônomos pela visão da esquerda da América Latina e Caribe, para além das respostas tradicionais”, a Rede Futuro quer traçar diretrizes comuns para enfrentar os novos desafios apresentados ao continente.
Além de temas mais tradicionais da esquerda, como defesa da democracia e da justiça social, combate ao neoliberalismo e aos privilégios, a pauta da nova articulação, de acordo com os debates no evento, aponta para a defesa de pontos como política de reparação, combate à “extrema-direita fascista” por meio de uma acirrada guerra cultural, crise climática e identitarismo.
Guerra cultural
“Historicamente, as transições no Brasil foram feitas de cima para baixo e sem reparação. Por isso, somos um país com racismo estrutural, onde a cor da pele define sua classe social. Na transição da ditadura para a democracia liberal não houve a punição de um único torturador, assassino. Isso normalizou uma cultura de violência, morte, assassinato político, que levou nossa companheira Marielle faz cinco anos”, disse Boulos em uma mesa-redonda. “Quando não enfrentamos as cicatrizes do passado, isso cria um obstáculo para o futuro. Uma das nossas lutas principais é contra a anistia a Bolsonaro e aos bolsonaristas”, defendeu.
A anistia ao final da ditadura militar brasileira também se estendeu a guerrilheiros que assassinaram pessoas ou participaram de ações armadas e da morte dos próprios companheiros. A atuação de guerrilheiros no período mergulhou o país em um estado não declarado de guerra civil, com assaltos a bancos e carros-fortes, atentados a bomba, sequestros de aviões e de diplomatas. Os chamados “justiçamentos” eram tribunais sem possibilidade de defesa, em que integrantes considerados traidores ou dissidentes eram condenados à morte pelos membros. Na Comissão da Verdade, criada por Dilma Rousseff, as execuções promovidas pela esquerda armada foram consideradas crimes comuns e já prescritos.
Boulos afirmou que a polarização com uma direita “mais ou menos democrática” chegou ao fim no Brasil, dando lugar a “uma extrema-direita fascista, sem nenhum compromisso sequer formal com a aparência democrática”, o que coloca a nova esquerda “em um campo mais amplo de defesa da democracia”. “Temos que fazer alianças para derrotar o fascismo. O Lula colocou um adversário histórico como vice para derrotar Bolsonaro. Nosso desafio é o de fazer a guerra cultural ideológica, porque eles fazem. A extrema-direita ganhou as eleições aproveitando a indignação geral política, aprofundada pelo lawfare [jargão usado pela esquerda para atribuir prisão e condenação de corruptos a perseguição judicial] e por golpes institucionais que sofremos no continente. Eles disputaram pela mente e pelo coração do povo, como deixamos de fazer”, analisou.
A “capacidade de atrair as consciências” novamente é, para Boulos, uma das pautas prioritárias diante dos novos desafios. “O que mobiliza os jovens são tipos que defendem as ideias mais atrasadas, as armas, a tortura. Esse desafio é crucial para derrotar a extrema-direita e estabelecer um novo signo. A extrema-direita não deu pão ao povo, o governo Bolsonaro piorou a vida do povo e criou um movimento de massas ideológico, cultural, pela disputa de ideias”, disse.
Contrariando o teor das falas de Boulos, o Banco Mundial elogiou a redução da pobreza no Brasil durante a pandemia, apontando que o país teve uma recuperação melhor do que outros da América Latina. O estudo do BID divulgado neste mês apontou que as transferências de renda durante a gestão Bolsonaro impediram que muitos “cruzassem” o limiar para a pobreza. "O país não apenas evitou que as famílias caíssem na pobreza, mas também retirou muitas pessoas da pobreza em 2020", afirma o documento.
Com um cenário econômico mundial bastante diferente daquele existente quando a esquerda começou a ganhar força no continente, a economia é um dos pontos a serem trabalhados com atenção pela Rede, segundo Boulos. “A década ‘ganha’ foi um período de crescimento econômico internacional, com o boom das commodities, o que tornava possível avançar em direitos sem enfrentar privilégios. Essa não é mais a nossa situação. Isso põe um dilema econômico profundo das medidas que temos que tomar nesse momento”, acentuou.
Para ele, ou os progressistas “ousam mais economicamente”, com reformas tributárias e aumento de investimento público, para criar empregos e qualidade de vida, ou “vamos novamente abrir espaço para a extrema-direita, que tem base nos setores populares”.
Apesar do que afirma Boulos, a verdadeira “década perdida” para o Brasil foram os anos 2010, graças ao desastroso biênio 2015-2016. Os dois últimos anos do governo Dilma Rousseff (PT) foram piores para a economia brasileira do que a pandemia. “O Brasil passou por uma profunda recessão entre 2015 e 2016, o período com o pior biênio de crescimento econômico dos últimos 120 anos”, afirma o economista Marcel Balassiano, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), em um estudo que mostra que, na década passada, o PIB do Brasil ficou abaixo de 160 dos 196 países analisados.
Outro ponto destacado no encontro foi a governabilidade da esquerda latino-americana que, como ocorre no Brasil e no Chile, não goza de maioria no parlamento. “Temos o desafio de aprofundar o modelo popular de governabilidade, avançar em um modelo de aprofundamento da democracia, com a mobilização vindo de baixo, por meio da participação popular.”
A estratégia de solapar a democracia tirando o poder dos representantes eleitos mostra resultados ruins quando aplicada. No Chile, a tolerância da violência como um meio necessário para viabilizar protestos, defendida pela esquerda, teve um preço alto para Gabriel Boric, que enfrenta a baixa aprovação da população em seu primeiro aniversário na presidência. Entre outras decisões perigosas, pressionado a cumprir uma promessa de campanha, o líder progressista concordou em libertar treze pessoas presas durante manifestações violentas de outubro de 2019, embora a polícia tenha desaconselhado e isso custe a confiança do país.
Idealização não partidária
O encontro foi organizado pelo Rumbo Colectivo, um think thank chileno que busca tornar “as diversidades visíveis” e quer ser “reconhecido por uma perspectiva vanguardista, ecossistêmica e feminista”. Segundo o presidente do coletivo, Tomás Leighton, que também milita no partido esquerdista Revolución Democrática, o Encontro Construindo o Futuro, que deu origem à nova frente de esquerda, “consolida a relação e a cooperação de anos entre atores de esquerda de diferentes países da América do Sul”.
“O objetivo é discutir as possibilidades de integração regional e justiça social neste novo ciclo de governos de esquerda. Sem querer inventar a roda, é importante pensar no futuro de pessoas que já há algum tempo ocupam espaços na sociedade civil e no poder político”, destacou Leighton, sobre os convidados para o evento.
Ao todo, 25 líderes esquerdistas “emergentes” de nove países da América do Sul estiveram na capital do Chile no fim de semana da Páscoa. Venezuela, Nicarágua e Cuba ficaram fora do grupo. O presidente chileno, Gabriel Boric, era esperado para o encontro, mas não compareceu, de acordo com os registros nas redes sociais. O destaque da programação foi uma conferência com Álvaro García Linera, que foi vice de Evo Morales na presidência da Bolívia, sobre a “segunda onda progressista latino-americana, os desafios e alternativas no contexto mundial”.
Além de Boulos, os outros brasileiros integrantes são o presidente do PSOL, Juliano Medeiros, e a deputada do partido Célia Xakriabá (MG), além da deputada petista Ana Pimentel (MG). “O encontro não é organizado por partidos, mas por lideranças de esquerda que compartilham de visões comuns”, destaca Medeiros.
Entre os idealizadores da Rede Futuro também estão a senadora colombiana María José Pizarro, a ex-presidente do parlamento equatoriano Gabriela Rivadeneira, a ex-candidata à presidência do Peru Verónika Mendoza, o senador uruguaio Alejandro “Pacha” Sánchez e o senador boliviano Andrônico Rodríguez. Este último destacou a necessidade de “reconstituição dos governos de esquerda na região”, afirmando que “a direita populista” que tem surgido no continente é “mais perigosa que a direita tradicional”. “Temos que reescrever a história a partir de nossas identidades e triunfos, não de derrotas”, defende.
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