“As democracias liberais são uma espécie de compromisso muito difícil, muito frágil - quase antinatural - entre a ideia de que a maioria deve determinar o resultado das eleições e o elemento liberal que prevê que, independentemente da escolha da maioria, existem valores que estão acima das contingências maioritárias”.
Com uma explicação sobre a natureza limitada e necessária da democracia liberal, o cientista político João Pereira Coutinho, da Universidade Católica Portuguesa, iniciou sua resposta ao questionamento que deu nome ao primeiro painel do 34º Fórum da Liberdade: “as redes sociais vão implodir a democracia?”. Participaram também o CEO da Multilaser e criador do portal Ranking dos Políticos, Alexandre Ostrowiecki, e o cientista político e CEO da Arko Advice, Murillo de Aragão.
Para Coutinho, para medir os efeitos da tecnologia no Estado democrático, é preciso ter, antes, muita clareza acerca do que é uma democracia. “Esse equilíbrio é buscado desde a fundação dos Estados Unidos. Os americanos queriam a Independência da Inglaterra, mas não queriam ser reféns da tirania da multidão. Criaram um sistema para tentar impedir que facções pudessem conspirar contra o bem comum”.
Está aí a primeira transformação trazida pelas redes sociais: “as distâncias deixam de ser uma das barreiras para esse tipo de interferência”, explica o cientista político. O resultado é que os representantes do povo estão sujeitos a uma pressão nunca antes vista e, segundo Coutinho, “há o risco de só fazer o que a multidão quer; só que nem tudo o que a multidão quer é bom”. Há, ainda, o risco da corrosão da liberdade individual.
“A democracia só pode existir se existem democratas, e o democrata é quem pode decidir sem as câmaras de eco das redes sociais. Além da pressão gigantesca e quase tirânica sobre os representantes; as redes fomentam a erosão das virtudes necessárias para viver em uma democracia, na qual, sendo de esquerda ou direita, as pessoas sabem que, apesar de tudo, fazem parte do mesmo país”.
A respeito da pressão que as redes exercem sobre os políticos, o empresário Alexandre Ostrowieck ressaltou os bons resultados do portal Ranking dos Políticos: narrou o caso de uma mulher do Ceará que, durante um evento político, abriu o site diante de um parlamentar para cobrar todas as suas propostas. Ressaltou também o descompasso entre muitas pautas maciçamente reprovadas pelo povo e aprovadas pela Câmara, como o fundão eleitoral. “Há uma falha de design na democracia brasileira”, apontou.
Por outro lado, Ostrowieck apontou o problema das notícias falsas para incutir a desconfiança e a aversão entre os eleitores; lembrando os dados que apontam que, nos Estados Unidos, democratas e republicanos estão se separando e discordando cada vez mais.
“Também temos o problema da concentração de poder em duas, três empresas de tecnologia que não são democráticas: elas obedecem aos acionistas”, lembrou o empresário, que questiona: “será que estamos cada vez mais prósperos e saudáveis, mas também mais pessimistas e rancorosos?
Coube ao cientista político Murillo de Aragão lembrar que “o risco da democracia plebiscitária existe desde Barrabás” e que, por mais falho que seja, o Congresso já aprovou leis e reformas importantes, como a Lei da Ficha Limpa. O CEO da Arko Advice também reconheceu o papel das redes sociais nas manifestações de junho de 2013, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e nas mobilizações em prol da Operação Lava-Jato.
“Redes ameaçam mais os regimes não-democráticos do que os democráticos. Mas não tenho dúvidas de que há necessidade de regulamentação das redes, principalmente sobre questões de anonimato e responsabilidade”, disse Aragão, que defende um modelo global de combate às notícias falsas, ainda que reconheça que se trata de uma utopia.
Sobre as medidas de combate às notícias falsas, João Pereira Coutinho recordou: "existe uma outra conversa de que cabe ao poder político regular o que é dito nas redes, em nome da verdade, do combate às notícias falsas, ou mesmo pela salubridade das redes. Sempre vi isso de forma pura e simplesmente horripilante”, afirmou, lembrando que entre março e outubro do ano passado, 17 países aprovaram legislações contra as notícias falsas sob o pretexto da pandemia, mas que se transformaram em objeto de perseguição política.
Coutinho defende o fim do anonimato como uma das principais ferramentas para regular o debate público, para que os cidadãos sejam devidamente responsabilizados pelo que dizem ou escrevem. Sobre a ameaça das redes à democracia, o cientista político pediu mais cautela.
“Quando falamos de ameaças à democracia, logo imaginamos tanques nas ruas. Hoje as coisas são mais sutis, os candidatos a ditadores aprenderam muito. Há outras formas de desmantelar a democracia mantendo uma fachada democrática”, disse o cientista político.
“O maior perigo para a democracia não são as redes. É o liberalismo não democrático. São as elites políticas tecnocratas, distantes do cidadão comum, e quando isso acontece, acontece a tentação do autoritarismo”.
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