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Uma breve consulta à lista de canções mais reproduzidas no Spotify ou no YouTube basta para chegar à conclusão de que os critérios de qualidade na música popular não são lá muito elevados. A música contemporânea parece não exigir nem mesmo os três requisitos básicos de melodia, harmonia e ritmo.
Mas nem sempre foi assim. Um novo seriado da Netflix resgata um período não muito distante em que os padrões eram muito mais altos. A série documental “Sinatra: All or Nothing at All”, originalmente produzida para a HBO e agora disponível na plataforma de streaming, mostra, do começo ao fim, a trajetória da carreira do cantor que, durante décadas, foi o símbolo máximo de talento e classe na cultura popular americana.
Filho de imigrantes italianos que se instalaram em Hoboken, nos arredores de Nova York, Sinatra demonstrou habilidade para cantar desde cedo. Mas isso não bastou. Como mostra o documentário, sua voz e seu estilo inconfundíveis foram resultado de uma busca constante pela excelência. A boa aparência e o fato de estar no lugar certo, na hora certa (na Nova York da era de ouro do rádio) também ajudaram.
Dividido dois episódios e duas horas, o documentário flui com elegância e de forma suave, como é apropriado para o personagem. A série tem um tom apropriado: não se trata de hagiografia, mas também não há uma obsessão sádica por detalhes desabonadores. “Sinatra: All or Nothing at All” mostra o artista por inteiro, com suas muitas virtudes e seus nada insignificantes defeitos. Apoiado em um grande material de arquivo, incluindo depoimentos do próprio Sinatra, de familiares e de amigos, o documentário cobre a vida do cantor desde seu nascimento até sua aposentadoria.
Um dos fatos pouco conhecidos do público brasileiro é o de que a carreira de Frank Sinatra renasceu duas vezes. Depois de um começo fulminante ainda nos anos 30, ele se perdeu em meio ao sucesso no final dos anos 1940. A família (a do primeiro casamento, com Nancy Sinatra) estava em crise, e a falta de foco o atrapalhava. Para alguns, era o fim da linha. Mas Sinatra renasceu poucos anos depois, com o sucesso de cinema “From here to Eternity”, que lhe garantiria um Oscar de ator coadjuvante.
Na nova etapa na carreira de Sinatra, a gravata borboleta saiu para dar lugar à gravata longa. Ele também passou a usar o característico chapéu. É desta fase, com a voz e o temperamento mais maduros, que vieram a maioria dos clássicos de Sinatra, como as interpretações de “Fly With Me”, ”Strangers in the Night” e “My Way”.
Novos tempos
Mas os tempos mudavam rapidamente. Nos anos 1960, vieram Elvis, os Beatles e um novo modo de fazer música. Sinatra resistiu: não queria mudar o seu modo de vestir e cantar. Ao sentir que seu auge havia passado, ele agendou um emotivo show de despedida em 1971. Mas a aposentadoria durou 2 anos”. Em sua volta, o cantor também passou a fazer mais show internacionais. Infelizmente, o seriado não trata da apresentação histórica de Sinatra no Maracanã, em 1980 – o maior público de toda a carreira do cantor. Mas este é um detalhe secundário diante do grande material reunido pelo diretor Alex Gibney. E “Sinatra: All or Nothing at All” acaba sendo também uma viagem pelas mudanças culturais na segunda metade do século 20.
Sinatra era, sem dúvida, um ídolo pop – sucesso na venda de discos, mas também no rádio, no teatro e no cinema. A histeria de jovens que caracterizaria a febre pelos Beatles já existia antes, com Sinatra. Mas, como mostra o documentário, havia nele uma classe inerente, e princípios estéticos inegociáveis. Ele conseguiu passar pela indústria do entretenimento e se trasnformar em um sucesso comercial sem ceder (com raras exceções) à pressão da moda do momento.
O documentário também mostra, por meio da vida de Sinatra, as mudanças políticas nos Estados Unidos. Sinatra foi um democrata durante a maior parte de sua vida: era fã de Franklin Roosevelt e se tornou amigo pessoal de John Kennedy. Mas no fim dos anos 60, com a radicalização da esquerda americana e a ascensão da chamada contracultura, ele se aproximou dos republicanos. Tornou-se um aliado de Richard Nixon e, sobretudo, de Ronald Reagan, para quem fez campanha ativa nos anos 1980.
“Sinatra: All or Nothing at All” também tem tempo para tratar da agitada vida familiar do cantor, a amizade com a máfia e o pioneirismo na luta contra o racismo. É certamente uma biografia à altura de um dos nomes mais icônicos já produzidos pela cultura americana. E, como bônus, permite ao espectador relembrar o tempo em que os padrões da música popular eram muito mais elevados.