Em 9 de abril de 1936, uma Quinta-Feira Santa, Franz Jägerstätter, de 28 anos, se casou com Franziska Schwaninger, de 23. A cerimônia foi discreta, realizada logo ao amanhecer, e antes do meio-dia os dois já seguiam em direção a Roma. No lugar de oferecer uma festa para familiares e vizinhos, como ditava a tradição da região conhecida como Alta Áustria, próximo da divisa com o estado alemão da Bavária, eles preferiram fazer uma peregrinação ao lugares santos na capital italiana.
Franz e Franziska combinaram que retornariam para celebrar os dez anos de união matrimonial. Não foi possível: em 9 de agosto de 1943, uma guilhotina encerrava a vida do fazendeiro austríaco, que tinha então 36 anos. O motivo? Ele exerceu a objeção de consciência – ou seja, o direito a se recusar a praticar alguma ação que atingia suas crenças pessoais e seus princípios morais. Ao se negar a lutar pelo exército nazista, foi preso. Recebeu a chance de voltar atrás, mas não aceitou.
Franziska retornaria a Roma quinze anos depois, para homenagear o marido em nova peregrinação. Ela morreria apenas aos 100 anos, em 2013. Em 2007, ao lado das filhas Rosalia, Maria e Aloisia, além de Hildegard, filha de Franz de um relacionamento anterior, participaria da cerimônia de beatificação do marido – cuja história também inspiraria um filme de Terrence Mallick, lançado em 2019 com o título “Uma Vida Oculta”.
O tempo valorizou a fé e a coragem de Franz Jägerstätter. Mas, na década de 1940, sua história se mantinha pouco conhecida. Entre os familiares e vizinhos, Franziska era criticada por não ter convencido o marido a rever sua posição. Apenas nos anos 1950 ela conseguiria uma pensão como viúva – o governo austríaco do pós-guerra alegava que, como ele não havia combatido, não tinha direito a auxílio para seus descendentes, ainda que tenha sido morto pelo regime nazista que governava o país.
Casamento feliz
Franz Jägerstätter nasceu em 20 de maio de 1907, na vila de Sankt Radegund, onde a esmagadora maioria da população era católica. Era filho de Rosalia Huber e de Franz Bachmeier. Os dois não eram casados. Franz acabaria morrendo em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, e Rosalia viria a se casar com Heinrich Jägerstätter. O garoto Franz Jägerstätter era um leitor ávido, ainda que tenha estudado apenas até os 14 anos. Ficou conhecido na região por ser o primeiro morador a comprar uma moto.
Sua avó materna era católica praticante, assim como ele tinha o hábito de frequentar missas sempre que possível, antes mesmo de se casar. Reforçou ainda mais a proximidade com a igreja depois de se unir a Franziska, que vinha de família praticante e tinha chegado a considerar a possibilidade de entrar para um convento.
“Os vizinhos ficavam surpresos e eram muitas vezes críticos. A visão geral é que era normal mulheres serem devotas, mas um homem deveria dar prioridade para sua fazenda. Franz, ainda que se mostrasse um fazendeiro produtivo e eficiente, colocava a igreja em primeiro lugar”, relata o escritor americano Jim Forest na introdução do livro “Franz Jägerstätter: Letters and Writings from Prison” (“Franz Jägerstätter: Cartas e Escritos da Prisão”, sem tradução para o português). “Nunca imaginei que a vida de casado poderia ser tão maravilhosa”, ele dizia. “Nós nos ajudávamos a avançar na fé”, a esposa declararia anos depois.
Resistência aberta
Em paralelo, o casal observava com preocupação a ascensão do nazismo no país vizinho. A partir de março de 1938, quando a Alemanha anexou a Áustria, a ameaça passou a fazer parte da rotina. Como lembra Forest, “os nazistas não escondiam sua hostilidade aos ensinamentos de Cristo”. E Franz se manteve abertamente antinazista.
Ainda em 1938, recebeu do comando militar alemão uma proposta: assumir a prefeitura da cidade austríaca de Radegund. Recusou. Também foi o único morador que votou contra a anexação alemã, num plebiscito realizado na vila para simular o apoio aos alemães. A posição do fazendeiro não foi computada e os nazistas declararam que a adesão teria sido unânime. A postura de Franz, abertamente contrária aos novos líderes, incomodava alguns moradores, que temiam que ele atraísse a ira germânica contra suas vidas.
Enquanto isso, o cardeal Theodor Innitzer, o principal líder da igreja na Áustria, recomendava que os fiéis rezassem para Adolf Hitler e que as igrejas adotassem as bandeiras com a suástica do lado de fora das construções. A tentativa de agradar o novo regime não funcionou. “Muitos padres foram presos e enviados para campos de concentração, a educação para os jovens católicos dentro das igrejas foi proibida, procissões religiosas acabaram sendo banidas e, em muitas paróquias as principais celebrações, mesmo as de Natal, foram barradas”, aponta Forest.
Caminho para o martírio
Em junho de 1940, o fazendeiro foi convocado para cumprir treinamento no exército alemão, sem pegar em armas. Permaneceu até 1941, quando foi autorizado a voltar para casa – na época, ele se recusou a fazer o juramento obrigatório de obediência a Hitler. Ao voltar, viajou para Linz junto com Franziska para discutir com o bispo Josephus Calasanz Fließer os riscos representados pelo nazismo. Ele se manteria ativo entre as lideranças católicas, escrevendo cartas e solicitando reuniões em que apresentava seus temores a respeito da perseguição nazista aos católicos.
Na época, ele já estava decidido: se fosse convocado a se deslocar ao campo de batalha, recusaria, utilizando a objeção de consciência como motivação. E assumiu o compromisso de cuidar da manutenção da paróquia, o que o colocava na situação de acompanhar as missas todos os dias, assim como participar de casamentos, batizados e velórios.
Em fevereiro de 1943, Franz foi novamente chamado para o exército. As três filhas que viviam com ele eram muito novas – a mais velha tinha apenas seis anos. Em 2 de março, foi detido, interrogado e levado para a prisão preventiva de Linz. Já no dia 4 de maio, se viu reinstalado na prisão de Tegel, em Berlim.
De dentro da cela, Franz Jägerstätter escreveu:
“Não é mais cristão oferecer-se imediatamente como vítima, em vez de primeiro ter que assassinar outras pessoas, que certamente têm o direito de viver e querem viver, – apenas para prolongar um pouco a própria vida?” Ele também declararia: “Não posso e não vou jurar em favor de um governo que está lutando uma guerra injusta”.
Em 9 de julho, encontrou-se com a esposa, que chegou a pedir que ele se alistasse, em prol da família. O marido respondeu que só aceitaria atuar em uma unidade médica em campo de batalha, um pedido que seria recusado. Condenado à morte, foi executado dentro da prisão Brandenburg-Görden. Recusou-se a assinar um documento aceitando a liderança de Hitler. Suas últimas palavras foram: “Estou completamente ligado à união interior com o Senhor”.
Ele morreu sem expectativa de que seu sacrifício faria diferença, diz Jim Forrest. “Ele sabia que, para seus vizinhos, sua recusa em servir ao exército era incompreensível. Estava ciente que, para além da sua família e da sua comunidade, sua morte não seria noticiada e não teria nenhum impacto contra o movimento nazista ou para o fim da guerra. Acreditava que seria rapidamente esquecido. Quem lembraria ou prestaria atenção ao sacrifício de um fazendeiro com pouca instrução? Ainda assim, ele sabia que a única coisa que podia fazer era não trair a sua consciência, sem colocar sua alma imortal em perigo”.