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Os dois atentados falhos contra Donald Trump e a contínua polarização da campanha presidencial e da política norte-americana nos últimos anos são exemplos que ressaltam que os Estados Unidos continuam sendo aquela “casa dividida” à qual Abraham Lincoln se referiu com termos bíblicos nas eleições de 1860.
Cabe perguntar se as tensões sociais, políticas e culturais não resultarão algum dia em confrontos partidários, como os que o Ulster conheceu há mais de meio século, uma possibilidade já evocada em 2022 pelo ensaísta canadense Stephen Marche em The Next Civil War [A Próxima Guerra Civil], com um tom apocalíptico que lembra alguns romances de Cormac McCarthy. Outro exemplo é que, em 2024, estreou o filme distópico Guerra Civil, de Alex Garland, com cenas de combates entre o governo federal e movimentos secessionistas da Califórnia e do Texas.
Guerras civis em um cenário hobbesiano
Historicamente, as guerras civis não foram incompatíveis com a existência dos impérios, como é o caso do Império Romano. Mas, em um cenário globalizado, as consequências seriam de maior repercussão. Em todo caso, a violência nos Estados Unidos faz parte da vida real há muito tempo. Acima da Constituição e seu equilíbrio de poderes, existe uma perspectiva hobbesiana, uma visão pessimista do ser humano que Hobbes sintetizava nesta frase: “A vida do homem é pobre, desagradável, brutal e curta”.
Essa mentalidade tende a favorecer a submissão a um poder "protetor", o Leviatã, que promete garantir a segurança dos indivíduos. Em consequência, gera-se uma obsessão por combater o mal, sem se querer dar conta de que o mal pode estar presente no coração de qualquer homem, inclusive no daqueles que se autoproclamaram "cruzados" da verdade e da justiça.
Cormac McCarthy, em seu romance Meridiano de sangue (1985), que em breve terá uma adaptação cinematográfica, recriou essa mentalidade hobbesiana no cenário da fronteira entre os Estados Unidos e o México em meados do século XIX. O personagem do juiz Holden, considerado o mais aterrorizante da literatura norte-americana pelo crítico Harold Bloom, é capaz de empregar frases como “pode-se encontrar maldade até no menor dos animais, mas quando Deus criou o homem, o diabo estava ao seu lado” ou “a lei moral é uma invenção da humanidade para privar de seus direitos o poderoso e favorecer o fraco. A lei da história a altera a cada passo”.
Todo um darwinismo social que está longe de ter desaparecido e que não deixa de ser uma manifestação do populismo predominante em muitas latitudes, substituindo o logos pelo mito e convencido de que o ser humano não deve ser guiado pela razão, mas pelas paixões.
Na realidade, não é provável uma guerra civil em sentido estrito, com uma rebelião armada contra o presidente autoritário a que alguns relatos de ficção distópica se referem. Em vez disso, pode haver um aumento da radicalização, traduzida em violência física ou verbal, que aprofunde a divisão da sociedade norte-americana, independentemente de quem seja o vencedor das eleições presidenciais. No entanto, essa divisão não tem tanto origem política, mas sim social e cultural, considerando a evolução da sociedade nas últimas décadas.
O triunfo do individualismo e da religião do mercado
Durante a presidência de George W. Bush, os atentados terroristas de 11 de setembro provocaram uma onda de patriotismo que sacudiu o país, mas, com o passar do tempo, a política externa intervencionista no Afeganistão e no Iraque, entendida como uma missão nacional que aumentaria a segurança doméstica e a hegemonia norte-americana no mundo, demonstrou ser um fracasso e trouxe um descrédito, tanto interno quanto externo, que se somou à crise financeira de 2008, com suas notáveis repercussões sociais e econômicas.
A presidência de Barack Obama (2009-2017), premiado com um inesperado Prêmio Nobel da Paz poucos meses após assumir, inaugurou uma época de grandes expectativas e poucos conteúdos. De fato, a divisão da sociedade norte-americana se acentuou durante seu mandato.
Em 2011, o historiador das ideias e da cultura norte-americana, Daniel Rodgers, publicou Age of Fracture [A Era da Divisão], onde afirmava que o excepcionalismo dos Estados Unidos estava chegando ao fim. O país deixava de ser “a cidade sobre a colina”, segundo um discurso de Reagan, um farol da liberdade para o mundo, pois no discurso social estavam prevalecendo outros termos e outras metáforas. Até a década de 1970, esses termos enfatizavam as instituições, a história e a sociedade, mas foram progressivamente substituídos por livre escolha, autonomia, flexibilidade e espírito empresarial.
Além disso, Rodgers ressalta que os grandes dados macroeconômicos deixaram de ser um ponto de referência, dando-se mais importância à análise microeconômica dos preços e opções. Desde então, cada elemento da vida humana podia ser explicado como resultado das preferências individuais e das ações estratégicas.
Essa atitude, mais libertária do que liberal, encontrou grande difusão em romances de sucesso como A Revolta de Atlas (1957), da escritora Ayn Rand, cuja trama retratava a revolta dos grandes empresários contra o governo e os políticos dos Estados Unidos. Rand considerava o capitalismo um meio de garantir a liberdade para todos, embora não admitisse nenhum tipo de sacrifício individual para servir ao bem comum. O egoísmo, dessa forma, poderia ser uma virtude. O homem de negócios era, para a escritora, o símbolo de uma sociedade livre, e o direito à propriedade era o mais indispensável dos direitos.
Não é coincidência que Ayn Rand tenha servido de inspiração para Donald Trump, um homem de poucas leituras, mas identificado, nas palavras da historiadora Jennifer Burns, com “a heroína dos inovadores, dos empreendedores, dos investidores de risco, daqueles que se veem como pessoas que moldam o futuro, confiam em seus instintos e conhecimentos e vão contra a corrente”.
Essa paixão pela "religião do mercado" também foi compartilhada por alguns magnatas digitais do Vale do Silício, geralmente próximos ao Partido Democrata, mas fascinados pela ideia de ver o mundo a partir de sua visão pessoal, sem se preocupar com as consequências de seus atos. Seguem a regra de ouro de Rand de que os visionários não devem se sacrificar pelos outros. Por exemplo, Steve Wozniak, cofundador da Apple, assegura que Steve Jobs comentou certa vez que A Revolta de Atlas era um de seus “livros de cabeceira”.
A consequência desse aumento do individualismo foi um retrocesso da liberdade no sentido coletivo e sua posterior reafirmação como uma posse individual, mutável e sem vínculos. Ainda assim, em uma recente entrevista de Daniel Rodgers à revista francesa Philosophie Magazine (verão-outono de 2024), o historiador assegura que, apesar de tudo, a perspectiva social não desapareceu, mas adquiriu os tons negativos do identitarismo, das guerras culturais que opõem o “nós” ao “eles”. Elas são um exemplo de integração negativa, diferente do que acontecia no passado. As guerras culturais são guerras internas, pois não se aponta um inimigo externo como acontecia com o anticomunismo na Guerra Fria. Agora, o inimigo interno é considerado responsável pela imigração em massa, pela perda dos valores sociais tradicionais, pela falta de perspectivas econômicas e profissionais, pela manipulação das redes sociais... Em resumo, para Rodgers, o novo mundo da divisão norte-americana tem pouco de pacífico.
Muitas maneiras de ser norte-americano
Uma postura contrária ao identitarismo, que frequentemente vem acompanhado do individualismo, é a do filósofo e professor da Universidade de Princeton, Kwame Anthony Appiah, que se opõe claramente ao supremacismo branco e protestante, com o qual alguns continuam identificando o que consideram a verdadeira sociedade norte-americana. O filósofo acredita que esse supremacismo ignora a Constituição para impor objetivos políticos, uma visão identitária dos Estados Unidos.
Seu livro The Lies That Bind: Rethinking Identity [As mentiras que unem: repensando a identidade] (2018) é um manifesto contra o identitarismo, pois Appiah defende os direitos das identidades plurais que compõem a população dos Estados Unidos e assegura que há muitas maneiras de ser norte-americano. Ele segue assim a doutrina do “pluralismo cultural”, difundida pelo filósofo Horace Kallen (1882-1974), que afirma que a diversidade cultural e o orgulho nacional não são incompatíveis. Portanto, as diferenças raciais e étnicas constituem uma riqueza para os Estados Unidos, que Kallen compara a uma orquestra sinfônica, onde cada um toca um instrumento diferente.
Ainda assim, Appiah não acredita na existência do tradicional melting pot, uma cultura comum capaz de fundir todas as diferenças, embora seus argumentos se baseiem na história do país, nas sucessivas correntes imigratórias de britânicos, holandeses, alemães, irlandeses, italianos e poloneses, entre outros. Todos eles, assim como os latinos, os asiáticos ou os muçulmanos nas últimas décadas do século XX, se tornaram norte-americanos, cada um a seu modo, sem se fundirem em um conjunto homogêneo. Na opinião do filósofo, nem sequer é necessário que os norte-americanos tenham uma visão histórica comum, pois são possíveis diferentes interpretações históricas. O elemento comum deve ser uma cultura cívica, um compromisso com as instituições e o marco constitucional.
A visão de Appiah não deixa de ser idealista, um tanto semelhante ao patriotismo constitucional de Jürgen Habermas na Europa, com a adesão a valores comuns de caráter democrático, refletidos na Constituição; o oposto de um nacionalismo étnico-cultural. Mas esse nacionalismo consideraria tais posições demasiado inclusivas, pois seus partidários temem se tornar uma minoria em seu próprio país.
A divisão da sociedade dos Estados Unidos está marcada pela oposição entre um nacionalismo étnico-cultural e uma cultura cívica integradora, entre a democracia populista, construída sobre as emoções, e o Estado de direito com seu equilíbrio de poderes. No entanto, o individualismo e o culto à “religião do mercado”, em ascensão nas últimas décadas, são um terreno fértil para o populismo.
Copyright 2024 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: La fractura de la sociedad norteamericana