Enquanto você estava aproveitando o feriado de 4 de julho, eu estava numa conferência nacional sobre socialismo. Por quê? Porque o socialismo está em alta entre a esquerda.
Como as pessoas não entendem direito o que o socialismo significa, achei melhor ir à conferência Socialismo 2019, realizada no feriado do dia 4 de julho no Hyatt de Chicago.
A conferência tinha como slogan “Sem Fronteiras, Sem Patrões, Sem Binários” e reuniu o que havia de mais radical no pensamento esquerdista norte-americano. Entre os patrocinadores do evento estavam os Democratas Socialistas da América e a Jacobin, uma revista socialista trimestral.
As paredes das várias salas da conferência foram decoradas com cartazes de Karl Marx e vários retratos de pensadores socialistas e suas causas.
A maioria dos frequentadores parecia ser branca e as políticas identitárias foram o principal assunto do evento – sobretudo as que diziam respeito ao gênero.
Na mesa de registro, os frequentadores podiam usar o “pronome de preferência” em seus crachás.
Além disso, os banheiros coletivos masculinos e femininos traziam a inscrição “gênero neutro”, e homens e mulheres usavam ambos. O interessante é que os cartazes em cima das portas ainda traziam os dizeres tradicionais – “homem” e “mulher” – cobertos por cartazes improvisados.
Num desses cartazes, lia-se: “Este banheiro foi liberado da binaridade de gênero!”
Apesar de os palestrantes e frequentadores serem radicais e geralmente demonstrarem desprezo pelo Partido Democrata, estava claro que eles misturavam o pensamento marxista tradicional à agenda daquilo em que a esquerda está se transformando.
Eles faziam isso misturando suas opiniões à política identitária que agora predomina nas universidades, na imprensa e na cultura popular. A guerra cultural está sendo usada como ponto de partida para a promoção de ideias verdadeiramente socialistas, muitas das quais estão ressurgindo no século XXI.
Eis aqui seis coisas que aprendi com a conferência:
1. Socialismo é coisa séria
Uma fala comum da esquerda contemporânea é que eles são adeptos do “socialismo democrático”, e não do socialismo totalitário e brutal da ex-União Soviética ou da Coreia do Norte e Venezuela. A Suécia costuma ser mencionada como o norte deles para o que isso significa na prática, ainda que, na realidade, os países nórdicos mostrem os limites do socialismo, não seu sucesso.
Também é estranho que aqueles que insistem no lema “a diversidade é nossa força” citem os países nórdicos, culturalmente homogêneos, como modelos do ideal socialista.
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Mas está claro que, apesar de muitos socialistas insistirem que suas ideias não estão alinhadas às sociedades autoritárias, a ideologia deles – ao menos daqueles que palestraram na conferência – não é nada diferente.
Nos debates a que assisti, todos traziam palestrantes que teciam loas às teorias comunistas e as associavam à ideologia que formava a base daqueles regimes.
Os políticos podem dançar em torno do significado da palavra “socialista”, mas os intelectuais e ativistas que foram à conferência "Socialismo 2019" não tinham muitas dúvidas de que o marxismo estava na essência de suas crenças.
Alguns tentaram se desviar do assunto. Um deles foi David Duhalde, ex-diretor político do Our Revolution [Nossa revolução], grupo ativista que apoia o senador Bernie Sanders e que nasceu da campanha presidencial de Sanders em 2016.
Duhalde disse que Sanders é uma criação do movimento socialista – diretamente associado ao Partido Socialista dos Estados Unidos na juventude – mas que ele não manteve conexões oficiais com as organizações políticas socialistas ao longo de sua carreira.
A posição de Sanders, de acordo com Duhalde, é “antitotalitária”, e ele defende um modelo que não se baseia “nem em Moscou nem nos Estados Unidos, ao menos na configuração atual”.
É uma forma conveniente de condenar as sociedades capitalistas e ao mesmo tempo evitar conexões com as sociedades obviamente tirânicas.
Também era difícil não associar o mar de camisetas vermelhas e cartazes de Marx nas paredes da conferência – ou o uso, aqui e ali, da palavra “camarada” – a outra coisa que não a adesão ao socialismo genuíno, mas com um quê de modernidade.
2. A ideologia de gênero e a política identitária estão em ascensão
O transgenerismo, a não-conformidade de gênero e a abolição das estruturas familiares tradicionais foram temas importantes na "Socialismo 2019".
Um dos painéis, “Teoria da Reprodução Social e Liberação do Gênero”, falava de como a estrutura familiar tradicional reforça o capitalismo e sugeria que a solução era simplesmente abolir as famílias.
Corrie Westing, que se autodescreve como “ativista feminista socialista queer morando em Chicago e trabalhando como parteira”, argumentou que as estruturas familiares tradicionais estimulam a opressão e que o movimento transgênero contemporâneo exerce um papel fundamental para que a sociedade alcance a verdadeira “justiça reprodutiva”.
A sociedade está num momento de “profunda crise política”, crise que “realmente exige um marxismo que seja capaz de explicar por que nosso projeto socialista promoverá o fim da opressão”, disse ela, “e precisamos de um marxismo que possa conquistar as gerações que estão sendo radicalizadas neste momento”.
Isso tem amplas implicações para o feminismo, de acordo com Westing, que disse ainda que é importante defender os direitos dos transgêneros como algo essencial para o projeto feminista como um todo — aparentemente em contradição com as feministas radicais antitransgenerismo que, no evento da Heritage Foundation realizado em janeiro, argumentaram que o sexo é biológico, não uma construção social, e que o transgenerismo é algo que vai contra o feminismo real.
Ela defendeu também que a economia serve de base para o que ela chamava de “heteronormatividade”.
A gravidez se torna um instrumento de opressão, disse ela, já que a mulher que engravida e depois cuida dos filhos é tirada da força de trabalho no auge de sua idade produtiva, ficando sob os cuidados de um provedor.
Assim, o binarismo de gênero é reforçado, disse Westing.
Ela insistiu que a solução para tais problema é “abolir a família”. Para tanto, disse ela, o caminho é “se livrar do capitalismo” e reorganizar a sociedade em torno do que ela chamava de “reprodução social queer”.
“Quando falamos em revolução, estamos falando de justiça de gênero como algo fundamental para a justiça social e econômica”, disse Westing.
Ela, então, citou uma escritora, Sophie Lewis, que em seu novo livro, “Full Surrogacy Now: Feminism Against Family” [Maternidade alternativa completa: o feminismo contra a família] adotou a ideia de “gestação colaborativa e aberta”.
3. As fronteiras abertas estão se tornando uma prova de afirmação política
Não é de se surpreender que os socialistas sejam adeptos da ideia de um mundo sem fronteiras. Afinal, essa ideia está cada vez mais presente na esquerda em geral.
A Federação Norte-americana do Trabalho e o Congresso das Organizações Industriais (AFL-CIO) apoiavam as restrições à imigração até 2000, quando passaram a pedir que os imigrantes ilegais recebessem a cidadania norte-americana.
Em 2015, Sanders rejeitou a ideia da abertura das fronteiras como uma trama para empobrecer os norte-americanos.
Justin Akers-Chacon, ativista socialista, argumentou, num painel intitulado “Uma Defesa Socialista das Fronteiras Abertas”, que, embora não tenha origem socialista, essa ideia é essencial para o movimento.
Akers-Chacon disse que, enquanto o capital transita livremente entre os Estados Unidos e as Américas Central e do Sul, o trabalho se mantem isolado e restrito.
Ele disse ainda que, enquanto os operários têm dificuldade para passar pelas fronteiras, os trabalhadores mais qualificados e “o 1%” conseguem transitar livremente.
Ao sul da fronteira norte-americana, sobretudo no México e em Honduras, disse Akers-Chacon, a “consciência de classe é mais sólida, como parte da memória cultural e histórica existente na classe operária”.
“De acordo com a minha experiência no México e trabalhando com imigrantes, além da minha experiência com pessoas de diferentes regiões, as políticas socialistas têm raízes mais profundas por lá”, disse ele.
Isso tem implicações para o movimento trabalhista.
Apesar das tentativas de se excluir imigrantes, disse Akers-Chacon, é importante que o movimento trabalhista organizado os adotem. Ele não fazia distinção ente imigrantes legais e ilegais.
Ele disse, por exemplo, que um dos maiores benefícios da Lei de Imigração de 1986 foi o aumento dos trabalhadores associados a sindicatos, em meio a um sindicalismo em declínio.
Além de impulsionar sindicatos, a entrada de imigrantes “mudou todo o posicionamento da AFL-CIO sobre imigração, [que era] ainda retrógrado, restritivo e anti-imigração”, disse Akers-Chacon.
“Então, há uma correlação entre a ampliação dos direitos dos imigrantes e o crescimento, confiança e militância do movimento trabalhista como um todo”, disse ele.
4. O “Comunismo clickbait” está sendo usado para atrair jovens norte-americanos
Recentemente, a revista Teen Vogue enfrentou ataques por ter publicado perfis lisongeiros de Karl Marx e por ter promovido a prostituição como uma opção de carreira, entre outros textos controversos.
Seria fácil desprezar esses textos e considerá-los apenas “clickbaits”, mas o caráter esquerdista deles – assim como sua tentativa de alcançar uma audiência jovem – é sincero.
A Teen Vogue organizou um debate da "Socialismo 2019", intitulado “Mudança do Sistema, Não Mudança Climática: Ativistas Ecológicos Jovens Numa Conversa com a Teen Vogue”.
A moderadora do debate era Lucy Diavolo, editora da publicação, que por sinal é transgênero.
“Sei que pode parecer uma contradição convidar a Teen Vogue para uma conferência sobre socialismo (...) sobretudo porque a marca-mãe da revista está associada justamente aos excessos do capitalismo”, disse Diavolo. “Mas, se vocês não conhecem nosso trabalho, sugiro que leiam a cobertura que a Teen Vogue faz das questões de justiça social, capitalismo, teoria revolucionária e Karl Marx, ou podem ler os artigos de opinião da direita que me acusam de fazer 'comunismo clickbait' ou de ensinar marxismo e revolução às filhas deles”.
Os participantes aplaudiram entusiasmadamente.
“Basta dizer que os bárbaros estão do lado de fora. Nós estamos numa torre”, orgulhava-se ela.
5. O movimento verde é vermelho
Não é de se surpreender que um membro explicitamente socialista do Congresso esteja fazendo pressão pela aprovação do New Deal Verde — que em essência transformaria os Estados Unidos numa economia controlada semelhante à da União Soviética.
De acordo com o jornal The Washington Post, a chefe de gabinete da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, Saikat Chakrabarti, recentemente disse: “O mais interessante sobre o New Deal Verde é que originalmente ele não tinha nada a ver com o clima”.
“Vocês acham que é algo que tem a ver com o clima?”, perguntou Chakrabarti a Sam Ricketts, diretor de assuntos climáticos de Jay Inslee, governador de Washington que está concorrendo nas primárias democratas à Presidência. “Porque nós estamos pensando nele como uma coisa capaz de mudar toda a economia do país”.
A transformação econômica mal disfarçada como uma maneira de tratar de preocupações econômicas parece ser o ponto principal do projeto.
Uma das debatedoras do painel sobre o clima da Teen Vogue, Sally Taylor, pertence ao Sunrise Movement, grupo ecológico juvenil que apareceu nas manchetes em fevereiro, quando vários membros do grupo, estudantes do ensino fundamental, confrontaram a senadora Dianne Feinstein por sua falta de apoio ao New Deal Verde.
A outra debatedora do painel sobre o clima da Teen Vogue era Haven Coleman, ativista de 13 anos de idade que foi tema de uma cobertura favorável por liderar a greve nacional dos estudantes pelo clima em março. Ela foi explícita quanto à mudança de sistema que buscapara resolver o problema do clima.
Durante sua fala, ela afirmou que estava recebendo ajuda da mãe, que estava na plateia.
Haven disse que a solução para o problema das mudanças climáticas estava em trocar nossa “sociedade capitalista” por “outra que não seja capitalista”.
O mais interessante é que nenhum dos perfis de Haven ou das matérias sobre a greve mencionou sua associação ao socialismo ou sua ideia de abolir o capitalismo.
6. O socialismo não pode ser ignorado
De acordo com uma pesquisa Gallup recente, 4 em cada 10 norte-americanos têm uma visão positiva do socialismo. O apoio entre os democratas é ainda maior do que entre a população em geral, sendo que a maioria dos democratas diz que prefere o socialismo ao capitalismo.
Mas muitos dos que dizem que querem o socialismo e não o capitalismo têm dificuldade para definir os termos e mudam de opinião quando perguntados sobre políticas específicas.
Como outra pesquisa Gallup realizada em 2018 indicou, muitas pessoas associam o socialismo a uma ideia vaga de “igualdade”, e não ao controle governamental dos meios de produção.
De acordo com o que vi na "Socialismo 2019", o que ficou claro é que os marxistas tradicionais conseguiram misturar sua ideologia aos temas da política identitária e guerra cultural que animam o progressismo contemporâneo – temas que ainda estão bem longe das crenças do cidadão médio.
Os socialistas da conferência se ativeram mais às mudanças sociais, e não à política eleitoral, mas ainda há muitos temas da política pública que os deixam animados, principalmente a “Saúde para Todos” e um sistema governamental de saúde, uma espécie de New Deal Verde para impedir o aquecimento global (e, mais importante, abolir o capitalismo), fronteiras abertas para aumentar a consciência de classe e promover a solidariedade transnacional, a eliminação de todas as restrições ao aborto, bem como a seu financiamento público e o fim das diferenças sociais e jurídicas entre os sexos.
Eles são capazes sobretudo de entrelaçar esses temas, usando a velha ideia do conflito de classes entre o “opressor e o oprimido” – apoiar o sistema público de saúde, por exemplo, significa também apoiar irrestritamente e o aborto e os direitos dos transgêneros.
Apesar de as análises deles tenderem mais à luta de classes e ao determinismo do que se espera dos progressistas já consagrados, não havia muita diferença entre o que era discutido na Socialismo 2019 e as ideias de uma parcela cada vez maior da esquerda norte-americana.
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