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Trabalho e religião

“Fui impedido de exercer minha profissão por causa da minha fé”

Carlos Vitor da Costa Ressurreição, ex-goleiro que agora dá palestras e participa de projetos sociais (Foto: Acervo pessoal / Carlos Vitor da Costa Ressurreição)

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A análise de dois recursos extraordinários pelo Supremo Tribunal Federal pode ajudar a dar contornos mais definidos a uma situação cuja prática ainda encontra restrições: a guarda do dia santo como expressão de liberdade de crença religiosa.

Os recursos foram impetrados por uma professora exonerada do cargo na rede municipal de ensino de São Bernardo do Campo (SP) por faltas consideradas injustificadas ao trabalho, e um homem que alega ter tido prejuízo financeiro e emocional durante o processo de seleção em um concurso público no qual ele foi aprovado em primeiro lugar e ainda não tomou posse do cargo. Nos dois casos, uma semelhança: ambos são Adventistas do Sétimo Dia, e guardam o sábado como dia santo.

Os julgamentos estavam previstos para a sessão de 14 de outubro, mas foram adiados por conta da análise sobre a libertação do traficante André do Rap, que ocupou toda a sessão do STF - ainda não há previsão para os julgamentos retornarem à pauta da corte.

Assim como em outras religiões e denominações, a guarda do sábado como dia santo, de descanso e adoração a Deus é um dos pilares da fé dos Adventistas do Sétimo Dia. No site oficial da igreja, uma breve descrição explica a importância deste ato de fé para os sabatistas de forma bastante enfática: “O sábado é um dia de deleitosa comunhão com Deus e uns com os outros. É um símbolo de nossa redenção em Cristo, um sinal de nossa santificação, uma prova de nossa lealdade e um antegozo de nosso futuro eterno no reino de Deus. O sábado é o sinal perpétuo do eterno concerto de Deus com seu povo. A prazerosa observância deste tempo sagrado duma tarde a outra tarde, do pôr do sol ao pôr do sol, é uma celebração dos atos criadores e redentores de Deus”, afirma o texto. Entre o início da noite de sexta-feira e o início da noite de sábado, os fiéis não podem realizar atividades criativas, como trabalhar, estudar ou fazer festividades.

E é com base nesses preceitos que a professora Margarete da Silva Mateus contesta a decisão tomada pela Prefeitura de São Bernardo do Campo, de exonerá-la após 90 faltas ao trabalho às sextas-feiras à noite, período em que começa o dia de guarda dos adventistas. Ela ainda estava em estágio probatório, e pelas ausências consideradas injustificadas pela administração municipal foi exonerada antes que pudesse ser efetivada no cargo que conquistou em um concurso público.

As regras do processo seletivo, alega a defesa da professora, não eram claras quanto ao horário de trabalho. De acordo com a ação movida por ela, a carga horária seria de 24 horas semanais distribuídas de segunda a sexta-feira “consoante a conveniência da distribuição da grade horária e dos serviços por ordem da Administração Pública” – sem nenhum detalhe sobre o trabalho nas sextas à noite.

Para a prefeitura o entendimento é outro, já que “as condições de trabalho foram de conhecimento antecipado da recorrente, sendo que à ela caberia fazer a escolha, assumir suas obrigações funcionais nos termos das condições previamente estabelecidas, ou não, preservando sua profissão de fé.”

No caso de Geismário Silva dos Santos, o empecilho causado, segundo ele, pelo desrespeito à sua crença religiosa veio antes mesmo de exercer qualquer função como técnico judiciário do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ele fez a primeira etapa do processo seletivo, uma prova objetiva, em Belém (PA). Aprovado em primeiro lugar, já começou a se preparar para a segunda etapa, uma prova de aptidões físicas, que seria realizada em dois dias: parte dos aprovados iria até Rio Branco (AC) para os testes em um sábado; a outra parte iria fazer a seleção em Manaus (AM) em um domingo.

Como parte de uma escolha aleatória, Geismário foi designado para realizar o exame físico na capital do Acre, no sábado. Ele entrou com um pedido de liminar, e com a decisão favorável, foi fazer a prova no Amazonas, no domingo. Para a União, a decisão que favoreceu Geismário com a troca do dia da prova não encontra lastro legal.

“Não existe lei ou qualquer outra jornada jurídica, ainda que geral e abstrata, que autorize ou que determine a aplicação de provas em horário diferenciado para beneficiar adeptos de religião, seita religiosa, grupos ou associações de qualquer natureza. (...) Não se admite alteração da lei do concurso, com o propósito de favorecer competidor ou grupo determinado, constituindo-se este ato em flagrante ofensa ao critério da igualdade, da impessoalidade, da seriedade das normas administrativas e da moralidade administrativa”, alega.

A defesa de Geismário garante que “apenas requereu que lhe fosse autorizado a fazer seu exame no domingo na cidade de Manaus/AM”, e que “em nenhum momento o impetrante foi favorecido na realização da prova prática de resistência física, ao contrário, competiu de igual para igual com os candidatos que foram designados para participar da prova, no domingo, dia 30/09/2007, em Manaus. (...) Tal autorização não prejudicou nenhum outro candidato, muito menos causou qualquer transtorno à organização do concurso.” Nem ele nem os outros aprovados tomaram posse dos cargos conquistados no processo seletivo realizado naquele ano.

Para o diretor de Liberdade Religiosa da Igreja Adventista na América do Sul, pastor Hélio Carnassale, uma decisão favorável do STF nos dois casos representaria uma vitória para quem defende a liberdade religiosa no país.

“Precisamos entender que, por trás de um direito como este, há vidas de pessoas respeitadas e que podem seguir seu trabalho sem medo, sem constrangimentos, e não mais vítimas de intolerância. O que se busca é, acima de tudo, fazer valer este princípio da liberdade religiosa para todas as crenças e até para quem não crê”, afirmou, em entrevista publicada no site oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil.

Sabatistas

Entre os cristãos, os Batistas do Sétimo Dia também guardam o sábado como dia santo. Eles acreditam que “em obediência a Deus e em resposta amorosa à sua graça em Cristo, o sábado sagrado deve ser observado fielmente como um dia de descanso, adoração e celebração.”

Já os católicos guardam o domingo como dia santo. A explicação, segundo o Padre Evaldo César de Souza, se encontra no dia da ressurreição de Jesus Cristo, um domingo. “Esse mistério insondável de amor, o maior de todos, fez com que a atenção cristã se voltasse para o primeiro dia da semana como o mais santo de todos, afinal era o primeiro dia da semana (domingo) quando as mulheres foram ao túmulo e o encontraram vazio. Nenhum outro dia é mais santo do que este, no qual Jesus venceu a morte e nos libertou definitivamente do pecado. Santificar esse dia foi decisão unânime da comunidade cristã, que desde o começo passou a se reunir para rezar sempre aos domingos”, afirmou o padre, em publicação feita no portal oficial do Santuário de Nossa Senhora em Aparecida.

Além dos cristãos, os judeus também guardam o sábado como dia santo. No shabat, segundo a Confederação Israelita do Brasil (Conib), estão proibidos quaisquer tipos de trabalho pelo meio do qual se cria algo que não existia antes. “Isso porque, de acordo com a tradição judaica, assim como D’us cessou sua criação em seis dias e ‘descansou’ no sétimo, as pessoas que se espelham em D’us se privam de criar no Shabat, como demonstração de que só Ele está por trás de todas as criações”, define a Conib.

Há um detalhamento bastante preciso sobre as atividades que não podem ser realizadas durante o shabat, a maioria delas ligada ao trato rural, como arar e preparar o terreno para plantio, debulhar e moer grãos ou tosquiar, fiar e tingir a lã. Outros, como as restrições sobre criar faíscas e acender ou apagar o fogo, atingem diretamente outra tradição ligada ao shabat, que são as refeições que devem ser tomadas durante o período. Para tanto, podem ser adotadas estratégias para manter a comida aquecida e garantir assim o caráter de “deleite” que o sábado sagrado dos judeus tanto pede.

As restrições são muitas, e algumas podem soar até mesmo exageradas para quem não segue os mesmos preceitos de fé, como a necessidade de se desligar as lâmpadas das geladeiras durante o shabat ou mesmo a contratação, por parte do governo de Israel, de fiscais “seculares” para multarem donos de estabelecimentos comerciais por abrirem no dia sagrado – alguns comerciantes, porém, questionaram a possível presença de fiscais judeus trabalhando no shabat para multar quem também trabalhava no sétimo dia.

O que diz a lei

No Brasil, a Constituição Federal em vigor desde 1988, em seu artigo 5º. estabelece os preceitos da liberdade religiosa ao garantir no inciso VI a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e assegurar no inciso VIII que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa. Os recursos em análise no STF tangenciam esses incisos ao buscar “saber se é dever do administrador público de disponibilizar obrigação alternativa para servidor em estágio probatório cumprir deveres funcionais a que está impossibilitado em virtude de sua crença religiosa” no caso da professora Margarete, e “saber se é possível a realização de etapas de concurso público em datas e locais diferentes dos previstos em edital por motivos de crença religiosa do candidato”, no caso de Geismário.

Na Inglaterra o cenário é mais bem organizado, principalmente no tocante aos judeus e o respeito destes ao shabat. Existe um comitê de representantes dos judeus britânicos, e deste comitê saiu um guia com dicas para os empregadores que querem contratar trabalhadores judeus. Por lá, no inverno o shabat pode começar por volta das 15h30, o que pode ser um problema para os empregadores não preparados.

Nos EUA cada estado tem suas próprias leis trabalhistas. O equivalente local do Ministério do Trabalho sugere que os empregadores façam certas acomodações de horário para os empregados que seguem crenças religiosas que demandem adaptações. Essas acomodações vão desde providenciar tempo e espaços adequados para orações até mesmo permitir o uso de trajes religiosos ou mudanças nas escalas de trabalho para garantir que os empregados fiéis a determinadas religiões possam ter seu direito ao dia sagrado.

Por outro lado, se dessas acomodações resultarem prejuízos ao empregador, diminuição da eficiência no trabalho realizado ou sobrecarga aos outros trabalhadores, o contratante fica dispensado dessas adequações.

Goleiro de fé

O goleiro Carlos Vitor da Costa Ressurreição, ou simplesmente Vitor, foi ídolo no Londrina Esporte Clube entre os anos de 2014 e 2016. Com ele sob as traves, o time conquistou o Campeonato Estadual e subiu da quarta divisão do futebol nacional para a Série B. Mas a carreira em pouco tempo teria mais passado do que futuro, e isso, garante Vitor, por conta da decisão dele de se batizar na Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Em entrevista por telefone à Gazeta do Povo, Vitor contou que tinha um acordo com o time do Londrina para renovar seu contrato por mais dois anos. Ele havia sido escolhido o melhor goleiro da Série C em 2015, tinha despertado o interesse de outros clubes, mas resolveu ficar com as cores alvicelestes. Só que por causa do batismo na fé as coisas tomaram outro rumo. Ele fala que sua decisão foi, de certa forma, respeitada pelo treinador e pelo gestor do time. Mas esse respeito, afirmou o goleiro, não se mostrou verdadeiro.

“Assim que eu voltei das férias, a gente tinha subido para a Série B e eu me batizei nas férias, eu já voltei explicando ao técnico e ao gestor sobre a guarda do sábado. Eu tinha contrato até maio, e eu fiquei guardando o sábado até terminar o contrato, mas assim, foi um respeito em partes. A gente tinha um acordo para renovar meu contrato por mais dois anos, e não foi renovado. E ficou claro, inclusive em entrevistas, que eles não renovaram meu contrato por questões religiosas. Eu fiquei lá, mas perdi muitas coisas, fui para o banco de reserva. Ficou claro que eu fui impedido de exercer minha profissão por causa da minha fé”, desabafou.

Vitor disse que tentou argumentar, sem sucesso, com os dirigentes do clube, garantindo que mesmo com as restrições por causa da religião ainda assim poderia ser muito útil ao time. Nas suas contas, seriam cerca de 50 jogos no ano, todos no meio da semana. “Eu questionei o presidente: tem jogador que recebe mais que eu e não joga nem 10 jogos na temporada. Você vai me pagar para jogar 50 jogos e está reclamando? Tem muito jogador que se machuca, fica seis meses parado, um ano parado, não está rendendo, não vai para o jogo, não é convocado, mas está lá treinando. Não está rendendo o que deveria dentro de campo para o clube. E, no final das contas, quem traria um custo/benefício maior para o time: eu com 50 jogos, sem histórico de lesão, com mais de 90 partidas seguidas no Londrina, com conquistas e acessos de divisão, no auge da carreira, ou um cara por exemplo que joga 10, 5, 3 jogos na temporada inteira? Quem rende mais para o clube?”, questionou o atleta.

Entre os clubes que sondaram o jogador estava a Chapecoense. No fim de 2015 o atleta foi procurado para ser um substituto direto do goleiro Danilo. Seria a terceira vez que isso aconteceria. A primeira foi quando Danilo saiu do Arapongas para o Londrina, com Vitor assumindo a posição. Depois, quando Danilo trocou o Londrina pelo time catarinense, Vitor também assumiu seu lugar. Mas a terceira troca ficou mesmo no quase, o que para Vitor pode ter sido um livramento em sua vida. Danilo foi um dos 71 mortos no acidente do voo que levava o time de Chapecó para disputar a final da Copa Sulamericana na Colômbia em novembro de 2016. “A ida para a Chapecoense ficou condicionada a isso, ficou bem explícito, o contrato só não foi firmado porque não aceitaram minha crença religiosa”, lembrou o goleiro.

A Gazeta do Povo entrou em contato com o gestor do Londrina Esporte Clube, Sérgio Malucelli, e com a assessoria de imprensa da Chapecoense, mas não obteve retorno de nenhuma das partes sobre as afirmações feitas pelo atleta.

Depois da tragédia, Vitor só voltou a jogar quando foi contratado pelo PSTC para a disputa do Campeonato Paranaense de 2017. Mas o longo período afastado dos gramados cobrou um preço alto do goleiro, que teve uma lesão séria em um dos tríceps e não fez mais que dois jogos pelo novo time. Depois de abril, sem contrato e lesionado, Vitor voltou para Salvador. Só dois anos depois, em 2019, surgiu uma oportunidade para voltar a jogar como profissional.

O Olímpia, time que disputava a segunda divisão do Campeonato Baiano, entendeu e respeitou a decisão de Vitor em guardar os sábados como dia santo. Para o goleiro, foi uma experiência que se mostrou bastante acertada. “Treinava de segunda a sexta e tinha jogo no domingo. Na sexta pela manhã tinha o treino, depois eu ia para a minha guarda. E foi curioso, porque eu treinava a semana inteira, o corpo descansava no sábado, chegava para o jogo no domingo inteirão, a ponto de bala. Consegui jogar o campeonato inteiro, e foi muito legal”, lembrou o goleiro.

Ironia das ironias, o time que se classificou às finais com duas rodadas de antecedência, marcou mais pontos que todos os adversários, dono do melhor ataque e da defesa menos vazada, só encontrou a derrota no único jogo que não poderia perder. O time chegou invicto à final do campeonato, ganhando do rival fora de casa no jogo de ida, mas no jogo da volta perdeu de um a zero. A derrota custou a vaga do Olímpia na divisão de elite do futebol baiano, mesmo assim serviu de aprendizado para Vitor, que pouco tempo depois assinou o contrato que ele define como sendo o mais curto da carreira.

“Quando acabou a segundona do Baiano, um mês depois recebi um convite da Jacuipense, ia disputar o mata-mata na série D contra o Floresta-CE. O goleiro titular deles tinha dois amarelos, e tinham mais dois goleiros jovens no banco que estavam sem ritmo. Me chamaram para participar só desse jogo, que poderia dar o acesso à Série C. O primeiro jogo era fora, e se o goleiro tomasse amarelo estaria fora do jogo da volta, em casa, o mais importante da história do time. Me chamaram para ficar em stand by, para se acontecesse alguma coisa e fosse preciso jogar. É mole? Eles me chamaram para ficar de prontidão para jogar no jogo mais importante da história do clube. Tinha acabado de jogar fazia um mês, e eu fiz o contrato mais curto da minha vida. Avisei que tinha compromissos, que estaria disponível só para aquele jogo mesmo. Treinei três dias e fui para o jogo. E não é que ganhamos de um a zero? O time subiu, eles comemoraram comigo, uma festa enorme como se eu já jogasse lá há muito tempo”, disse Vitor.

Depois da passagem relâmpago pela Jacuipense, o goleiro até foi chamado para seguir no time, mas ele já estava comprometido com um projeto de ajuda a famílias refugiadas no Líbano. Em dezembro de 2019 ele embarcou com a esposa e os dois filhos – uma menina de 5 anos e um garoto de 14 – para o Oriente Médio. O projeto usa o futebol como forma de integrar as famílias sírias que moram em acampamentos de refugiados. Mas o susto provocado pela explosão de material usado na fabricação de fertilizantes que destruiu parcialmente o porto de Beirute fez com que a família encurtasse a estadia em terras estrangeiras e voltasse para o Brasil.

Fiel

Para o goleiro Vitor, os empregadores que deixam de contratar funcionários por conta de sua religião podem estar sendo “burros”. “Se eu fosse um empregador, um empresário, pensaria assim: ‘Vou contratar um cara que é capacitado, que está cumprindo os requisitos da vaga, e o cara é fiel à Deus e não abre mão disso. Você acha que o cara não vai ser um bom empregado, não vai obedecer às ordens do patrão? Ele obedece a um Deus que ele não vê, você acha que ele não vai obedecer ao patrão, que está ali junto com ele, trabalhando para prover o sustento?’. Acho que são pessoas que poderiam ser até melhores empregados, que demonstram esse comprometimento com a fé, com a crença. Imagina com a empresa que lhe paga o salário e bota comida na mesa dele?”, questionou o atleta.

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