Resumo da reportagem
- "Wagner: Por dentro do exército privado de Putin" explora a formação e ações do Grupo Wagner, uma organização paramilitar privada russa.
- Revela a relação próxima do grupo com o Kremlin, apesar das negativas oficiais, mostrando seu papel em conflitos internacionais.
- O documentário traz entrevistas exclusivas, imagens de drones e um olhar detalhado sobre como este grupo impacta a política global.
Um ex-assaltante de São Petersburgo recém-saído da prisão, ao testemunhar a queda do maior bloco socialista que já existiu, vê uma oportunidade. Ele abre um restaurante, o presidente do país (Vladimir Putin) logo se torna um cliente, realizando ali mesmo jantares cerimoniais com a presença de líderes como o ex-presidente francês Jacques Chirac e o americano George W. Bush. Aproveitando a nova amizade com Putin, o ex-assaltante logo passa a ser o principal fornecedor de merenda para as escolas da capital do país, além da ração militar para soldados. O dinheiro é fácil e volumoso, cerca de US$ 3 bilhões (R$ 18 bi na cotação atual, com inflação) só entre 2011 e 2019, segundo o jornal Current Time. O monopólio em contratos de licitações se expande para construção, a organização lembra a máfia.
Com o passar das décadas, o ex-presidiário continua farejando oportunidades, até se tornar a principal cabeça por trás de um grupo de mercenários empregado no conflito da Síria e na Guerra da Ucrânia. Em um país sem liberdade de expressão, ele critica abertamente o Ministro da Defesa e até arquiteta uma ameaça de tomada militar do governo, tudo para dar meia volta, sem sofrer retaliação dos ameaçados e insultados.
Como ainda usa um linguajar de um rapaz comum das ruas de São Petersburgo, com piadas chulas, insultos abertos aos adversários, além de um tino afiado para o marketing, ele tem um apelo popular comparável ao de Donald Trump. É possível até que aquele velho amigo do restaurante, Vladimir Putin, hoje estremeça ao pensar do que mais ele é capaz.
Essa é a história real de Yevgeny Prigozhin, 62 anos, contada no documentário “Wagner: Por dentro do exército privado de Putin” (Java Films, 2023 — ainda não disponível em plataformas de streaming). É um filme com apenas uma hora de duração, mas denso em detalhes. A direção de Raphaël Pellegrino se permite alguns poucos floreios, como a alternância de tempo na narrativa, mas não tem tempo para gorduras: especialistas franceses e testemunhas oculares dão uma sensação de nutrição informacional ao espectador, que termina saciado e, se sensível, profundamente perturbado.
A origem do Grupo Wagner
Três ex-empregados como mercenários de Prigozhin são entrevistados: dois grisalhos, que estavam lá no começo, Aleksandr e Marat Gabidoulline, exilados na França; e Viktor, um mais jovem que esconde o rosto e foi filmado na Crimeia.
O grupo de mercenários começou a se formar em 2014, quando separatistas de língua russa do Donbas, no leste da Ucrânia, tentavam a secessão. O Kremlin ajudava, fazendo propaganda que alegava que pessoas seriam mortas na região só por falar a língua russa. Aleksandr estava entre os seduzidos e recrutados entre os separatistas. Duas regiões declararam independência, e Putin viu a oportunidade para anexar a Crimeia.
A principal conexão do governo russo com o Grupo Wagner é a Diretoria Central de Pessoal das Forças Armadas da Federação Russa, antes chamada de Diretoria Central de Inteligência, conhecida pela sigla GRU. A unidade, que é parte do Ministério da Defesa, tem como principal elo comprobatório com os mercenários o fundador do grupo, Dmitri Utkin, que ela recrutou como um primeiro líder.
Utkin é, nas palavras dos entrevistados, um “valentão útil” de 1,90m. Após a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, circularam entre simpatizantes de Putin tentativas de associar os ucranianos ao neonazismo. Quem tem foto na companhia de um neonazista, contudo, é Putin: o comandante Utkin tem tatuagens em homenagem aos genocidas alemães. Uma delas, acima da clavícula direita, é o logo da SS — organização paramilitar do Partido Nazista. Ele escolheu a alcunha “Wagner” para o grupo de mercenários porque é o nome do compositor favorito de Adolf Hitler.
A fundação do Wagner veio em 2015, na região de Krasnodar, sudoeste da Rússia, perto da Ucrânia. Com os mercenários, a GRU conquistou algo caro às suas atividades de inteligência militar: negabilidade plausível, caso quisessem executar ações como golpe militar na Ucrânia. Os uniformes eram russos, o treinamento era feito na base de Molkino, do Ministério da Defesa, mas nada disso era oficial.
A não-oficialidade do Wagner também em outras funções: o ex-mercenário Marat Gabidoulline conta que ele foi dispensado da carreira militar depois de assassinar um mafioso em 1993 e cumprir pena de três anos. A ficha criminal é problema nas Forças Armadas oficiais, mas não no grupo de mercenários — o recrutamento de fichas-sujas é um “jeitinho russo” para driblar leis e práticas do próprio país. Gabidoulline foi lutar na Síria em 2015, a favor de Bashar al-Assad contra os insurgentes jihadistas. Na época, eram 1500 mercenários ao todo.
Ele não é exceção: em setembro de 2022, Prigozhin, que até então negava ser o cabeça do grupo, foi às prisões recrutar mais mercenários para o front da Ucrânia e abriu o jogo: imagens o mostram cercado de presidiários, dizendo que é o chefe do Wagner, do qual eles já tinham ouvido falar. “Queremos os que gostam de lutar e precisam lutar”, diz ele. “O uniforme lhes permitirá fazer isso”. A campanha publicitária funcionou: em poucos meses, 40 mil presos se juntaram aos mercenários.
Como surgiu a rivalidade do Grupo Wagner com o Ministério da Defesa
Foi a negabilidade plausível a semente da discórdia entre Prigozhin e Sergei Shoigu, ministro da Defesa russo. Em 2018, na Síria, os americanos avistaram por satélite mercenários do Wagner que tinham como missão retomar campos de petróleo das mãos dos jihadistas para al-Assad. Em troca da defesa, al-Assad cedeu 25% dos lucros do petróleo para o grupo.
Os americanos ligaram para o Ministério da Defesa, perguntando se aqueles eram seus homens. O ministério negou. Assim, Washington sentiu-se livre para bombardeá-los. Cem deles morreram, 23 do grupo de Gabidoulline, que foi atingido por estilhaços e ficou com sequelas na perna esquerda. O ex-combatente se sente traído. “Sou mercenário, sim. Fui para lá por contrato. Não significa que a minha vida, o meu direito à vida, pode ser ignorado”, diz ele. Foi assim que o ex-oficial descobriu que ele e seus colegas eram bucha de canhão para o Ministério da Defesa e o Exército.
Os mercenários são 20% do contingente russo no conflito da Ucrânia. Mais motivados, são proibidos de bater em retirada. Em cada enfrentamento, cerca de 80% deles terminam mortos. E seus corpos são utilizados por Prigozhin em sua guerra de propaganda contra Shoigu e seu ministério. O empresário também aparece de capacete e colete à prova de balas, lançando petardos verbais contra o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky a cada cidade conquistada, para realçar o contraste entre a sua atitude e a dos líderes no Kremlin confortáveis em seus escritórios. Um mestre da propaganda.
Atrocidades na África
Enquanto Prigozhin coloca seus homens no moedor de carne na Ucrânia e participa de aventuras como ameaçar tomar Moscou e desistir a 200km da capital, sem grandes retaliações de Putin, que o deixou partir para Belarus; é na África que o Wagner cresce de verdade.
A República Centro-Africana (RCA) e seu presidente, Faustin-Archange Touadéra, comem na mão dos mercenários. O documentário mostra os membros do Wagner andando pelas ruas sem pavimentação da capital Bangui. A câmera é escondida, pois três repórteres russos morreram por lá em circunstâncias suspeitas, em 2018.
O parlamentar Joseph Bendounga é taxativo: diz que o grupo Wagner é terrorista e que Touadéra “vendeu a alma para sentar na cadeira de presidente”, “um mero lacaio da Rússia”. Outro entrevistado mostra documentos que revelam os interesses de Prigozhin na região: em 2019, o presidente da RCA rescindiu misteriosamente um contrato com uma empresa canadense que operava em uma mina de ouro da região, na jazida de Ndassima. Três dias antes da reabertura das licitações, foi criada uma empresa chamada Midas Ressources, que fechou contrato. Em seu site, a empresa alega genericamente ter uma longa tradição ao redor do mundo. Mas um documento do Ministério de Minas endereçado a Touadéra deixa escapar um detalhe: “empresa russa”. O Departamento de Tesouro americano afirma que a Midas tem ligação direta a Prigozhin.
O Wagner também tem interesse em minas mais artesanais. Uma testemunha ocular entrevistada descreve uma atrocidade em uma mina de ouro de Aïgbado, vila no Leste da RCA. Helicópteros apareceram e começaram a alvejar civis (os únicos presentes no local). “Vi coisas terríveis. Pessoas cortadas ao meio por morteiros e projéteis. Mulheres e crianças perderam a vida. Outros morreram na minha frente com os ferimentos”, relata o homem, que agora se esconde na capital. “Nunca esquecerei”. Entre 65 e 70 pessoas morreram. O relato é corroborado por reportagem do jornal The Daily Beast.
O documentário também ouviu uma organização de apoio a mulheres vítimas de abuso, a Omica. O líder da ONG acusa os mercenários de dezenas de casos de estupro, inclusive estupro coletivo de 16 homens contra uma única mulher. Uma vítima que teve parentes e o marido morto e foi estuprada por quatro presta depoimento frente às câmeras. Com os laços do governo da RCA com o Wagner, é improvável que obtenham justiça.
O magnata hoje tem um grande conglomerado, o Concord Group, com cerca de 400 empresas em mineração, hotelaria e até mídia. Uma iniciativa midiática é a Internet Research Agency, que faz propaganda contra o Ocidente. Uma das mais notórias das campanhas de propaganda contra a França foi feita no Mali, também uma ex-colônia francesa. Tropas francesas estão no país, com a justificativa de combate ao terrorismo, desde 2013. Em abril de 2022, uma conta anônima no Twitter postou fotos e vídeos acusando os militares franceses de executar malianos e jogá-los em uma cova coletiva. Os franceses agiram rápido: mandaram um drone para fazer imagens aéreas. Nas imagens, homens de uniforme russo usam pás para montar a cena com cadáveres que obtiveram de outro local.
A marreta
Um objeto que se tornou símbolo do grupo Wagner é a marreta de demolição. Um dos primeiros registros de seu uso foi contra um desertor do exército de al-Assad na Síria, em 2017. As imagens mostram os mercenários esmagando os pés do homem, que tem identidade conhecida. Ele foi esquartejado, seus restos foram içados em um gancho e incinerados.
A marreta também foi usada contra um desertor do próprio grupo, Yevgeny Anatolyevich, que se identifica assim em um vídeo que circulou nas redes sociais no final de 2022. Logo após dar seu nome, dizer que nasceu em 1967 e fazer uma breve declaração, ele é esmagado.
Após a repercussão, Prigozhin publicou uma nota oficial comentando o caso: “Eles o mataram como o cão que ele era. Parabéns ao realizador. Belo trabalho. Dá para assistir numa sentada. Espero que nenhum animal tenha sido ferido na filmagem.” Em janeiro de 2023, mesmo mês em que acusou o Ministério da Defesa russo de traição, usando fotos de dezenas de mercenários mortos, ele presenteou os combatentes com uma marreta decorada com o logo do Wagner.
O documentário vai até logo antes da intentona abortada de Prigozhin contra o Ministério da Defesa. Desde então, Putin reconheceu que era o governo russo quem financiava o grupo Wagner.