O cenário internacional parece estar atravessando período de transformações geoestratégicas, no âmbito do qual transcorre a mais significativa mudança nas relações de poder entre as grandes potências desde 1945, que corresponde, grosso modo, ao desmantelamento da ordem pós-II Guerra Mundial. A complexidade de tal circunstância reside tanto na impossibilidade de se aquilatar adequadamente o alcance e as consequências dessas mudanças quanto na dificuldade de se vislumbrar claramente a natureza da ordem ora em gestação.
A definição de Antonio Gramsci, autor que não inspira nossas visões de mundo, muito pelo contrário, mas que deve ter sua importância intelectual reconhecida, bem serve para ilustrar este momento: “o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer, e nesse interregno surge uma grande variedade de monstros”.
Se não parece possível precisar como a nova ordem se apresentará, convém apontar o que está claro que ela não será. A começar com a questão do futuro das relações entre Europa e Rússia à luz do relativo desengajamento dos Estados Unidos do ambiente securitário europeu a partir do início do segundo mandato de Donald Trump: há hoje no Velho Continente segmentos não desprezíveis de decisores e formadores que advogam a cantilena apocalíptica segundo a qual, após eventual consolidação das conquistas territoriais na Ucrânia, os russos tencionariam ocupar os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), talvez parte da Polônia e marchar sobre a Alemanha.
Apesar do caráter fantasioso dessas conjecturas, trabalhemos com as seguintes premissas:
- a Rússia não tem planos de ocupar a Europa, possivelmente pela prosaica razão de que não dispõe de meios materiais e humanos para ocupar sequer a totalidade da Ucrânia;
- Em 2025, diferentemente de 1925, Moscou não tem uma plataforma ideológica para exportar à Europa e ao resto do mundo;
- sem ingresso no mérito da legitimidade (ou falta dela) do conflito na Ucrânia, a principal razão que informou a decisão russa de ir à guerra foi a inegociabilidade da segurança de sua fronteira sudoeste (a única da Rússia europeia que ainda não faz limite com um estado-membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN) por meio da conversão do leste da Ucrânia em uma zona tampão e do impedimento (ainda não garantido materialmente) do ingresso de Kiev na aliança atlântica; e
- a liderança russa tem consciência do fato de que a preeminência estratégica do país no contexto europeu decorre muito mais da debilidade continental de longo prazo em matéria de defesa e segurança que de uma façanha militar da Rússia, o que pode ser atestado, entre outros elementos, pelo fato de que conquanto a população russa seja 72% superior à da Alemanha, o PIB do país eurasiático corresponde a meros 44% do alemão (cujo desempenho ao longo do primeiro quartel do século ora em curso foi, aliás, medíocre).
Passemos à questão do “rearmamento europeu”, visando à contenção do que se entende por ameaça russa ao continente, e sua espécie de superpoder infantil, o “rearmamento alemão”. A ideia de “rearmar a Europa” só faz sentido se colocada em perspectiva: atualmente, os 23 países da União Europeia que também integram a OTAN têm despesas médias com defesa correspondentes a 1,99% do Produto Interno Bruto (PIB). Para fins comparativos, em 1975, a Alemanha Ocidental, a França e o Reino Unido – as três maiores economias europeias, à época e hodiernamente, tendo a Alemanha reunificada assumido a dianteira no início da década de 1990 – tinham, respectivamente, gastos com defesa equivalentes a 3,13%, 5% e 7,2% do PIB.
Em 2024, Berlim, Paris e Londres dedicaram 1,5%, 2,1% e 2,3% do PIB à defesa nacional, respectivamente. Cumpre registrar, ademais, que a base absoluta dos valores a serem investidos em defesa nos próximos anos tende a se expandir modestamente, já que o PIB dos países da zona do euro, que em 2008 montou a US$ 14,2 trilhões (R$ 81,5 trilhões na cotação atual), registrou, em 2024, cifra de USD 15 trilhões (R$ 86 trilhões) – ou seja, crescimento acumulado de 5,6% ao longo de 16 anos.
O problema não se limita aos recursos dedicados à defesa: a idade média do europeu em 1975 era de 27 anos; em 2024, correspondia a 44,7 anos – quase três anos, portanto, além do limite de idade observado no continente para o serviço militar, de 42 anos. Já a taxa de fertilidade média europeia era, em 1975, de 2,07 crianças/mulher; em 2024, foi de 1,38 criança/mulher.
A não ser que se divise um aparato militar integralmente desprovido do elemento humano, inclusive no que se refere à sua cadeia de comando – algo inaudito na história humana –, é um exercício no mínimo fabuloso imaginar uma força de combate gerida por homens e mulheres maduros no curto prazo, idosos no médio prazo e insuficientemente substituídos no longo prazo.
Cumpre, por fim, destacar que, ainda que ausentes os obstáculos acima relacionados, as principais economias europeias (e também os países de menor expressão econômica e demográfica) são atualmente sociedades de orientação axiomática sobremaneira menos masculina do que eram meio século atrás, circunstância que afeta a capacidade social de organização e mobilização para fins de defesa nacional, haja vista o fato de que o preparo e principalmente a execução de uma estratégia de defesa são, perdoem-nos os progressistas, domínios fundamentalmente masculinos nos campos teórico e prático.
O rearmamento da Alemanha é a bala de prata euroatlanticista que, desde pelo menos 2022, sustenta a crença de que as Forças Armadas do país (Bundeswehr) seriam capazes de recuperar os níveis de prontidão e capacidade de combate que mantiveram entre 1955 (ano da integração da Alemanha Ocidental à OTAN e de início do rearmamento do país após a II Guerra Mundial) e o fim da década de 1980, durante a Guerra Fria.
Há aqui uma miríade de dificuldades, as principais das quais talvez sejam a descontinuidade da experiência de combate no âmbito do oficialato alemão, a realidade de que uma guerra atual (convencional ou termonuclear) entre a OTAN e a Rússia muito dificilmente terá a Alemanha como principal teatro de operações (o que era o caso até o fim da década de 1980) e os crescentes custos energéticos que recaem sobre a indústria pesada alemã.
Os níveis de prontidão e capacidade de combate da Bundeswehr durante a Guerra Fria não eram um número de preciosismo germânico ou indício de recrudescimento da tradição militar prussiana: a título de exemplo, os cenários de guerra ampla contra a OTAN elaborados pelo Pacto de Varsóvia no fim da década de 1970 contemplavam mais de 1200 detonações nucleares (táticas e estratégicas) sobre o território da Alemanha Ocidental nas primeiras 72 horas de hostilidades; num tal contexto, a militarização das instituições sociais do país era um expediente de sobrevivência.
Com a dissolução da União Soviética a integração dos países da Cortina de Ferro à aliança atlântica (sobretudo Polônia e países bálticos), a (agora unificada) Alemanha deixara de ser o principal campo de batalha de uma guerra europeia (convencional ou nuclear).
Essa centralidade que outrora coube à Alemanha Ocidental como teatro de operações de um conflito armado entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia atualmente corresponde, na eventualidade de uma guerra entre a aliança e a Rússia, aos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), à Finlândia, à Polônia (a partir tanto da Rússia quanto de Belarus) e ao Mar Báltico (assim ensejando o engajamento da Suécia, sobretudo tendo em vista a importância da ilha de Gotland para a consecução dos objetivos russos no Báltico em caso de conflito, conforme assinalado pelo Comandante do Exército Sueco, major-general Jonny Lindfors, em maio de 2024). Os países bálticos aderiram à OTAN em 2004, enquanto Finlândia e Suécia ingressaram na aliança em 2023 e 2024, respectivamente, na esteira da invasão russa da Ucrânia.
Desse modo, os cerca de 25 anos transcorridos entre o fim da década de 1990 e 2022 corresponderam, no que diz respeito à Bundeswehr, a cortes orçamentários, de pessoal e em outras searas que integravam a urdidura do sistema defensivo que fez da força, até o fim da década de 1980, a de melhor preparo na Europa continental.
Trata-se de defasagem que não pode ser corrigida a toque de caixa, mesmo que a indústria alemã possa produzir equipamentos militares capazes de conduzir o país a um nível de prontidão material relativamente próximo àquele de que dispunha a Alemanha Ocidental em 1975. O que decerto tem pouquíssimas chances de acontecer, já que nem os progressistas mais inflexíveis defendem a viabilidade de uma economia de “quase guerra” baseada em fontes energéticas intermitentes como eólica e solar (que juntas respondem por aproximadamente 34% da eletricidade gerada na Alemanha).
Às premissas lançadas sobre as relações da Rússia com a Europa convém acrescentar as seguintes:
- o “rearmamento europeu” visando a conter suposto “expansionismo russo” é, além de desnecessário, porque os russos não pretendem ocupar a Europa, fantasioso em razão da ausência de elementos capazes de viabilizá-lo sustentadamente. Trocando em miúdos: é uma solução inviável para um problema que não existe;
- o “rearmamento alemão”, por sua vez, é uma fantasia subsidiária que padece das mesmas inconsistências da principal; e
- Europa e Rússia deverão estabelecer um modus vivendi mais construtivo que o ora vigente, ainda que esse modus vivendi crie pouco mais que uma détente baseada em antagonismo estratégico real e percebido, no âmbito do qual os europeus não poderão depender do guarda-chuva militar norte-americano na mesma medida que dele se valeram nos últimos 80 anos. Entenderão, por interesse ou por necessidade, que o primeiro-ministro polonês Donald Tusk tinha razão quando afirmou, em fevereiro deste ano, que “somos 500 milhões de europeus pedindo a 300 milhões de americanos que nos protejam de 140 milhões de russos”.
No mesmo ensejo, a rivalidade estratégica global entre Moscou e Washington arrefeceu, dando lugar a antagonismos pontuais de relevância e intensidade variadas, oscilando entre altos no Ártico e em relação ao Irã, moderados no Oriente médio e baixos na América Latina, excluindo-se a questão venezuelana, sem prejuízo de outros contextos.
Por outro lado, o degelo das relações russo-americanas, motivado por questões econômicas, comerciais, energéticas, geopolíticas e ideológicas, também é pilar importante desse processo de conformação de uma nova arquitetura internacional que se desvencilha das amarras impostas pela Guerra Fria e das armadilhas impostas pelo triunfalismo do Fim da História, do Liberalismo e da Globalização inevitável, mas reforça as considerações de natureza econômica e as linhas de fratura entre culturas, religiões e civilizações. Mas isso é assunto para outro artigo...
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.
Lindolpho Cademartori é diplomata de carreira desde 2006 e Mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (IRBr), do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Suas opiniões são estritamente pessoais e não necessariamente refletem as do MRE.