O "Acordo pela Paz a pela Nova Constituição", assinado pela maioria das forças políticas chilenas em novembro de 2019, foi visto como a única saída para a complexa situação então vivida no país. Meses depois, começou o processo constituinte, e no último 4 de julho foi apresentada a proposta de texto constitucional, que em setembro será aprovada ou rechaçada mediante um referendo.
Nesse ínterim, houve uma mudança de presidente, renovaram-se a Câmara de Deputados e parte do Senado, ganharam esteio democrático muitas das demandas dos cidadãos. No entanto, a paz social – prometida no acordo de 2019 – continua sendo a grande ausência na sociedade chilena.
Os 100 dias de governo de Gabriel Boric e a apresentação da proposta da nova Constituição são uma ocasião oportuna para fazer um balanço dos últimos anos do devir político chileno.
Começo acidentado
“Um arranque com turbulências”. Com estas palavras, Boric definiu o começo do seu governo. Teve problemas na formação do seu gabinete; ele e alguns dos seus sus ministros fizeram declarações que suscitaram polêmicas azedas; viu-se pouco controle da agenda legislativa e existe pouca coesão entre os partidos de sua própria coalizão, conformada – entre outros – por comunistas, socialistas e frenteamplistas (um partido similar ao Podemos espanhol). [O Podemos espanhol, a seu turno, é tipo o PSOL brasileiro. Na verdade, o Frente Amplio é uma coalizão de partidos à qual pertence Boric, filiado ao partido Convergencia Social. (N. t.)]
A seu turno, o trabalho da Assembleia Constituinte se viu obscurecido desde o começo. O ato inaugural se iniciou com buchichos embaraçados durante o hino nacional e, semanas mais tarde, Rodrigo Rojas, um dos vice-presidentes do órgão e integrante do coletivo "A Lista do Povo", renunciou ao reconhecer que cometera uma grave fraude. Depois de ser desmascarado por uma investigação jornalística, Rojas admitiu ter inventado que tinha um câncer para se destacar na vida pública.
As esperanças suscitadas pelo novo governo e pelo trabalho da Assembleia Constituinte geraram expectativas muito altas, que logo se tornaram contrárias. Segundo a pesquisa Cadem, Boric chegou ao Palacio de La Moneda com uma aprovação de 50%, mas na quinta semana de trabalho sua desaprovação era majoritária, e no começo de julho chegou a 60%. Nunca se havia visto uma queda popularidade tão abrupta nos últimos governantes do Chile.
Algo similar ocorre com o processo constitucional. Iniciou-se com um plebiscito histórico, com a aprovação de quase 80% dos votos; no entanto, o panorama é totalmente distinto quanto ao plebiscito de saída: várias pequisas do final de junho mostram que tem mais rechaço do que apoio, e os chilenos veem o trabalho dos constituintes com desconfiança e preocupação.
Malabarismo impossível
Muitas das promessas de campanha de Boric giraram em torno de uma nova forma de fazer política, pois buscava recuperar a confiança dos cidadãos na classe dirigente. Seu ethos logo se viu amaldiçoado por alguns fatos concretos que desvelaram uma realidade mais obscura.
Talvez a mais simbólica das suas mudanças de postura seja aquela relativa ao cargo de primeira dama, instituição que acompanhou a figura do presidente desde os primórdios da República. Trata-se de um cargo protocolar e honorífico que dispõe de um gabinete remunerado para realizar projetos sociais. Durante a campanha, Boric havia afirmado expressamente que ia abolir tal instituição; porém, ao começar seu governo, mudou de ideia e sua companheira assumiu o cargo. Mas a polêmica não acabou aí. Na mesma semana em que completava 100 dias de governo, publicou-se uma resolução que mudava o nome da função, passando de "primeira dama" a "Irina Karamanos", o nome da namorada do presidente. Logo após as críticas transversais, o governo justificou a situação assinalando que se tratou de um mero erro administrativo e revogou a mudança de nome, ainda que a namorada do presidente continue cumprindo essa função.
Outra mudança de posição que lhe causou muito desgaste político foi a possibilidade de sacar as poupanças dos fundos de pensões. Durante seu período como deputado, Boric foi um acérrimo defensor de garantir aos cidadãos essa possibilidade, mas, ao chegar ao governo e dimensionar o impacto macroeconômico que essas medidas traziam, mudou de ideia. Isto lhe gerou problemas com parlamentares de sua coalizão; ele perdeu credibilidade e popularidade perante os cidadãos, embora tenha ganho o reconhecimento dos economistas entendidos no assunto.
Outro assunto de grande complexidade é a situação vivida em Araucanía, um território do sul do país onde comunidades mapuches exigem a restituição de terras que consideram suas e alguns grupos realizam atos terroristas. Quando era deputado, durante sua campanha e nas primeiras semanas de governo, Boric se mostrou contrário a manter a presença de forças militares na zona para resguardar a segurança. No entanto, sua política de diálogo foi muito insuficiente para conter a violência daqueles grupos, e ao cabo teve de declarar um estado de exceção constitucional para seguir contando com o apoio militar na zona.
Também se viu essa ambiguidade na condenação das ações violentas de outubro de 2019. Boric costuma se referir aos detidos nas queimas de igrejas, estações de metrô, saques e outros vandalismos como "os tomados pela revolta", e uma de suas primeira medidas foi retirar as acusações contra eles. Embora recentemente tenha declarado que a violência não é o caminho para impulsionar mudanças sociais, o certo é que a falta de coerência do governo o impediu de deter o aumento das situações de violência, assunto que se converteu na principal preocupação dos cidadãos.
Regras impostas pela esquerda
No início do caminho constitucional, havia a ilusão de construir um grande pacto social e uma recuperação da deliberação política. A mudança da Constituição originada no governo de Pinochet foi apresentada como a única forma de solucionar os problemas do país e de realizar as mudanças que os cidadãos pediam.
Apesar do desejo de alcançar esses consensos, um setor da esquerda rapidamente tomou uma atitude de revanchismo. Se a direita havia imposto seu modelo desde 1980, seriam eles que agora estabeleceriam as regras do jogo sem contrapeso, já que tinham a maioria necessária. Assim, pouco a pouco foram se impondo lógicas identitárias, reivindicando agendas particulares e estendendo a presença do Estado em todas as esferas da vida.
No texto proposto para substituir a Constituição, modifica-se a função do Estado, passando de um modelo subsidiário a um social. Essa mudança de paradigma permitiria garantir direitos sociais e ir rumo a um Estado de Bem-Estar. Embora exista bastante consenso na conveniência de avançar rumo a um aparato público que outorgue mais proteção social, são preocupantes a falta de limitações ao exercício do poder e a eliminação, para mencionar um exemplo, do direito de abrir, organizar e manter estabelecimentos educacionais.
Na configuração do sistema de governo, propõe-se passar de um Estado unitário a um regional; de um presidencialismo forte a um atenuado; a um bicameralismo assimétrico no qual o Senado deixe de existir e se crie uma Câmara das regiões com poucas atribuições. Sem o contrapeso do Senado, que hoje se renova parcialmente a cada quatro anos, a nova distribuição de poderes poderia levar a que um presidente governe sem contrapeso caso conte com uma maioria simples na Câmara dos Deputados.
Outro assunto muito discutido foi a nova configuração do Estado como entidade plurinacional. Seguindo modelos como os da Bolívia e Equador, com populações indígenas muitíssimo maiores que as do Chile, propõe-se potenciar as políticas de restituição de terras e reservar cotas no Parlamento para as comunidades indígenas, bem como dar-lhes maior autonomia e um sistema de justiça próprio, o que daria lugar a um pluralismo jurídico.
Garantem-se também os direitos sexuais e reprodutivos da mulher: a proposta assinala que o Estado deve assegurar, "a todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar, as condições para uma gravidez, uma interrupção voluntária da gravidez, um parto e uma maternidade voluntários e protegidos", remetendo logo à lei para sua regulamentação. Esta inédita consagração em nível constitucional do direito ao aborto limita toda discussão futura unicamente ao estabelecimento de prazos e causas, e restringe também a objeção de consciência ao buscar garantir o exercício desse direito "livre de violências e de interferências por parte de terceiros, sejam indivíduos ou instituições".
A deliberação constitucional continuará
Um fenômeno interessante que surgiu na polarizada situação política chilena é o dos "Amarillos por Chile" [Amarelos pelo Chile]. Esse grupo de cidadãos de centro e centro-esquerda, identificados com uma cor que passou a significar moderação, apoiou o início do processo constituinte; no entanto, ao ver o seu desenrolar, começou a alertar sobre os pontos que considerava prejudiciais para o país, e há algumas semanas se declarou contrário à proposta de nova Constituição.
Outra declaração importante foi a do ex-presidente Ricardo Lagos. Durante o governo do mandatário socialista (2000-2006), realizou-se uma das maiores modificações na Constituição vigente: tanto é que ele substituiu a assinatura de Augusto Pinochet pela sua. Em 5 de julho afirmou, perante a pouca representatividade da nova proposta constitucional, estar "convencido de que o desafio político relevante é encontrar a maneira de abordar a continuidade do debate constitucional até alcançar um texto capaz de concitar um alto grau de aceitação pelos cidadãos”.
No próximo 4 de setembro os chilenos irão às urnas para aprovar ou rechaçar a nova Constituição. Em quaisquer dos casos, ainda deverá demorar muito para sair um pacto que una verdadeiramente os chilenos e que permita a tão desejada paz social.
©2022 ACEPRENSA. Publicado com permissão. Original em espanhol.
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