Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, o mundo questionou como as democracias ocidentais permitiram que Vladimir Putin acumulasse tanto poder para realizar a ofensiva. Em "O Grande Confronto" (selo Vestígio), o político e ensaísta francês Raphaël Glucksmann responde com um diagnóstico contundente: a corrupção sistêmica das elites europeias.
Membro do Parlamento Europeu, Glucksmann combina denúncia e esperança em seu livro. Ao mesmo tempo em que denuncia os responsáveis pela crise atual, aponta antídotos contra a tirania.
No recorte a seguir, o autor mostra como Vladimir Putin, o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder e o ex-espião da Stasi Matthias Warnig firmaram um pacto que amarrou a Europa ao gás russo e financiou o expansionismo do Kremlin.
Uma fotografia é tirada às 22h30 do dia 28 de abril de 2014, na frente das portas do palácio Yusupov, de São Petersburgo. Um mês depois da anexação russa da Crimeia, quando tem início a guerra no Donbass ucraniano, três homens se encontram para festejar um aniversário.
O primeiro sai de um sedan preto com passo decidido, o segundo o recebe e o abraça com entusiasmo, o terceiro se mantém à distância e acompanha a cena sorrindo. Os dois primeiros são famosos: o presidente russo Vladimir Putin e o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder, cujos 70 anos são comemorados naquela noite.
O terceiro não é conhecido pelo grande público. Seu nome é Matthias Warnig.
No momento da foto, Warnig é — nada menos que — membro da diretoria do banco Rossiya (chamado de “banco dos amigos de Putin”), da diretoria do VTB Bank, da diretoria da Rosneft (5% da produção mundial de petróleo), da diretoria da Transneft (70 mil quilômetros de oleodutos), presidente da gigante do alumínio Rusal e CEO do consórcio Nord Stream, gasoduto que liga a Rússia à Alemanha por baixo do Mar Báltico.
A lista chama a atenção: como um cidadão alemão pode ocupar um lugar desses no sistema russo? A resposta é simples: Matthias Warnig não é um cidadão alemão qualquer.
Nascido do outro lado da Cortina de Ferro, aos 18 anos ele se torna membro da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. No Departamento de Operações Especiais encarregado das infiltrações ocidentais, ele integra a brigada Félix Dzerjinski, nome do fundador da Tcheka (precursora da KGB).
Na vida civil, ele faz estudos de Economia em Berlim-Leste, por isso seu primeiro codinome: “Ökonom”, “o economista”. Diplomado, ele trabalha no Ministério do Comércio Exterior da Alemanha Oriental.
Enviado a Düsseldorf para espionar o ambiente de negócios da Alemanha Ocidental, em poucos anos ele consegue penetrar nas maiores empresas alemãs, da Krupp à Thyssen, passando pela BASF e pelo Dresdner Bank. Seu sucesso o faz subir rapidamente na hierarquia da Stasi: ele recebe um novo codinome, “Arthur”, e é promovido a gerente e depois a diretor, colecionando condecorações, prometido a um futuro glorioso.
Seu perfil só podia interessar ao então “residente” do número 4 da Rua Angelika, em Dresden, cidade abastada às margens do Elba que servia à KGB como centro de recrutamento de espiões alemães orientais a serem enviados para o Ocidente. O nome desse “residente”? Vladimir Vladimirovich Putin.
A jornalista do Financial Times Catherine Belton investigou os anos alemães de Putin e afirma que os dois homens trabalhavam em estreita colaboração: “Warnig fazia parte da célula da KGB montada em Dresden por Putin sob a cobertura de uma agência de conselho empresarial”.
O ex-espião alemão nega formalmente ter colaborado com o futuro presidente russo à época. Tudo leva a crer que está mentindo, pois sabemos que os dois homens foram condecorados juntos durante um evento da Stasi, em fevereiro de 1988, mas isso, no fundo, tem apenas uma importância relativa no restante de suas aventuras.
“Novas realidades”
Depois da queda do Muro de Berlim, ainda funcionário do Ministério do Comércio Exterior da Alemanha Oriental, Warnig participa das negociações a respeito dos aspectos econômicos da reunificação alemã. Ele impressiona seus interlocutores por seu conhecimento profundo dos segredos do capitalismo germânico e destoa entre os burocratas ultrapassados e depressivos que então povoam as instituições comunistas.
Essa capacidade de adaptação às “novas realidades” é característica dos agentes secretos de segurança externa, tanto na Alemanha Oriental quanto na URSS. Warnig, como seus colegas da KGB, havia muito tempo diagnosticara a superioridade do modelo econômico ocidental e conhecia as engrenagens do sistema capitalista melhor que a maioria dos economistas franceses e ingleses.
Consciente das oportunidades que se abrem para ele, Warnig retoma o contato com seus antigos alvos ocidentais e se faz contratar por um gigante das finanças alemãs, antigamente espionado por ele: o Dresdner Bank. Ele sugere um plano simples à direção do banco: lançar-se à conquista do Leste, ser o primeiro banco a se estabelecer no promissor mercado russo.
Seus novos chefes ficam entusiasmados e, alguns meses depois de sua contratação, ele abre um escritório do Dresdner Bank em São Petersburgo, na antiga sede da embaixada alemã junto aos czares. Warnig assume a direção da filial local, que logo se tornará uma das principais portas de entrada para os investidores alemães na Rússia.
É nesse momento que ele conhece oficialmente Vladimir Putin. O “residente” de Dresden se tornou chefe do comitê de assuntos internacionais da prefeitura de São Petersburgo.
Ele detém o controle sobre os investimentos estrangeiros na cidade, e todas as implantações locais de empresas ocidentais passam por seu gabinete. Putin autoriza Warnig a abrir a primeira instituição financeira europeia em solo russo, e os dois homens logo “se tornam” muito próximos.
Quando a mulher de Putin sofre um grave acidente de carro, em 1993, é Warnig quem organiza sua transferência para a Alemanha à custa do Dresdner Bank. A partir de agora, ele faz parte da família. E do clã.
Vladimir Putin constitui ao seu redor um grupo de “antigos” agentes da KGB reorientados para os negócios ou para a administração pública. Warnig fornece uma caução europeia e capitais legítimos a seus projetos e, em contrapartida, eles oferecem proteção aos investidores ocidentais apresentados pelo alemão.
Gigantesco faroeste
A Rússia da época é um gigantesco faroeste: tudo é possível para quem tem as boas conexões. Graças a Putin e seus homens, Warnig garante aos grandes grupos europeus a segurança e a tranquilidade necessárias aos negócios.
Ele se impõe como um personagem central das relações comerciais germano-russas em pleno desenvolvimento, e sua lista de contatos na Alemanha não para de crescer. Mas é a chegada de seu amigo Putin ao Kremlin, em 31 de dezembro de 1999, que faz sua carreira mudar de natureza e dimensão.
Quando o clã putiniano decide se apropriar da economia russa como um todo, o Dresdner Bank fornece seu apoio. E participa de um dos maiores roubos da história contemporânea: o ataque dos novos mestres da Rússia contra a gigante petrolífera Yukos e seu dono, Mikhail Khodorkovski, culpado de ser independente demais em relação a eles.
Khodorkovski é preso, e a Yukos é desmantelada, depois absorvida palmo a palmo pela Rosneft, empresa dirigida por Igor Sechin, ex-secretário de Putin na prefeitura de São Petersburgo. Warnig está tão integrado ao clã que é logo nomeado diretor do banco Rossiya, instituição que tem um lugar à parte no mundo putiniano.
Três homens próximos a Putin — Vladimir Yakunin, Andrei Fursenko e Yuri Kovalchuk — o haviam comprado no início dos anos 1990, quando o Rossiya não era grande coisa, e o transformado no fundo comum — o obschak — do clã. Com a chegada de Putin ao poder, o Rossiya se torna o caixa dois do regime.
Ele absorve o Gazprombank — o terceiro banco do país — por um preço irrisório e multiplica as aquisições “miraculosas” de ativos cedidos por seus proprietários por um valor baixíssimo em troca de sua liberdade ou simplesmente de sua sobrevivência.
O obschak Rossiya se dissemina por toda a economia russa como um tumor cancerígeno e financia tanto as atividades secretas do regime quanto as despesas pessoais dos membros do clã. Controlando todos os cargos de comando político, energético e financeiro russos, Putin lança a maior operação de ingerência da história recente: penetrar e corromper as democracias europeias.
Warnig é um dos personagens-chave dessa operação. Ele já não é o homem que abre as portas da Rússia para os capitalistas europeus, mas o homem que abre as portas da Europa para a cleptocracia russa.
Ele participa da direção das maiores empresas do país — todas a serviço do Kremlin — e articula a compra de nossas elites políticas e econômicas. Dezenas de ex-chefes de governo, ministros e diretores de indústria são recrutados para seus conselhos administrativos.
Os fundos à disposição são ilimitados, e a missão de Warnig é clara: comprar tudo o que pode ser comprado. Seu campo de ação é continental, mas é na Alemanha que ele desempenha seu papel mais importante.
O gás de Putin
A principal economia europeia também é a primeira parceira comercial da Rússia e o alvo número um do Kremlin. O plano é simples: lançar uma OPA (Oferta Pública de Aquisição) sobre o sistema energético alemão.
A Alemanha Oriental importava muitos hidrocarbonetos soviéticos nos anos 1970, mas dessa vez se trata de outra coisa: tornar a Alemanha totalmente dependente do gás russo. Putin e Warnig dispõem, para esse fim, de um trunfo fundamental: o chanceler social-democrata Gerhard Schröder.
À frente da coalizão vermelho-verde, Schröder impõe um acordo de abandono da energia nuclear a um patronato recalcitrante. Para convencer os industriais a cessar as oposições, ele promete uma energia estável e pouco cara para substituí-la: o gás. Exatamente o que Putin e Warnig lhe oferecem, em quantidade ilimitada.
A parceria firmada entre esses três homens atrelará o crescimento alemão à consolidação das ambições estratégicas russas. Schröder não se contenta em planejar o abandono da energia nuclear, ele também se recusa a dotar seu país de terminais de gás e, portanto, metodicamente constrói a dependência alemã do gás de Putin.
Para que esse pacto energético se transforme em revolução geopolítica, é preciso abolir os intermediários, em primeiro lugar a Ucrânia e a Polônia, nações pelas quais passam os gasodutos que abastecem a Europa de hidrocarbonetos russos. O Kremlin considera Varsóvia uma adversária e já se preocupa com as pretensões emancipatórias de Kiev: é preciso privá-las de ter um papel no abastecimento energético de nosso continente, isolá-las e abandoná-las.
O chanceler Schröder inescrupulosamente sacrifica os interesses vitais poloneses e ucranianos e instaura o maior gasoduto submarino do mundo (1.224 quilômetros), que liga Portovaia, na Rússia, diretamente a Lubmin, na Alemanha. Esse projeto é a obra-prima dos três homens da fotografia tirada no palácio Yusupov. Ele será chamado de Nord Stream.
Em 8 de setembro de 2005, dez dias antes de uma derrota cada vez mais provável nas eleições, Gerhard Schröder organiza às pressas a cerimônia oficial de lançamento do projeto Nord Stream, com a presença de Vladimir Putin. O objetivo é torná-lo irreversível, enquanto se delineia no horizonte a vitória do CDU [União Democrata-Cristã], de Angela Merkel, sabidamente menos sensível às sereias russas.
Nesse projeto decisivo para os equilíbrios estratégicos do continente, a União Europeia não existe: Berlim e Moscou (para ser mais exato: Schröder e Putin, pessoalmente) negociam bilateralmente e decidem tudo sem jamais informar Bruxelas. O imperativo europeu que estruturava a política alemã, de Konrad Adenauer a Helmut Kohl, passando por Helmut Schmidt e Willy Brandt, é dispensado sem debate ou comoção.
A “schröderização” das elites
Gerhard Schröder perde as eleições dez dias depois da cerimônia, como previsto. Longe de entrar em depressão, ele declara querer “finalmente fazer dinheiro”.
Algumas semanas depois, ele é catapultado à liderança do conselho do Nord Stream, cujo CEO é ninguém menos que... Matthias Warnig. A rapidez com que ele passa da condição de chanceler à de funcionário da Gazprom (acionária majoritária do consórcio) provoca rangeres de dentes na Alemanha.
Mas não surgem questionamentos em torno do Nord Stream nem comissões para investigar a maneira como ele foi lançado. Apenas alguns artigos críticos, alguns ataques públicos e só.
Um chanceler, portanto, pode comprometer seu país num projeto explosivo e, assim que seu mandato chega ao fim, trabalhar para os principais beneficiários de suas controversas decisões sem despertar qualquer reação institucional importante na exemplar democracia que a Alemanha deveria ser. Fazendo isso, Gerhard Schröder abre uma porta pela qual se precipitam dezenas de dirigentes do Velho Continente.
Uma palavra é criada na Rússia: schrödenrizatsiya, a “schröderização” das elites europeias, isto é, a transformação de nossa classe política em supermercado, no qual o Kremlin e seus mastodontes energéticos, industriais e bancários podem fazer suas compras com total tranquilidade.
Garantidos na lei, suspeição e impedimento viram letra morta no STF
Manifestação no Rio reforça vínculo da pauta da anistia com Bolsonaro
Mobilização permanente e cooptação de veteranos de guerra: Putin tenta evitar nova “Síndrome do Afeganistão”
Apesar de pressão do governo, BC tende a subir os juros nesta semana. E depois?