Os bandeirantes não eram flor que se cheire. Como nos conta Eduardo Bueno em seu livro “Brasil: Uma História”, apenas nas três primeiras décadas do século XVII, eles mataram ou escravizaram 500 mil indígenas. A alcunha de “maiores criminosos de seu tempo” é mais do que merecida: assassinaram crianças, mulheres e idosos, arrasaram vilas e as famosas missões jesuíticas, o que lhes rendeu a antipatia de Roma — o papa os excomungou no atacado e varejo. Mas, curiosamente, o alvo de tantos ataques de radicais de extrema-esquerda, que chegaram a incendiar sua estátua no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, acusado de ser um genocida e escravizador de indígenas, Manuel de Borba Gato é um dos poucos bandeirantes que nunca fez nada disso.
Muito de sua fama deve-se às crueldades praticadas por outros bandeirantes famosos, como Antônio Raposo Tavares e Fernão Dias Pais. Foi Raposo Tavares, Manuel Preto e sua tropa de dois mil índios, 900 mamelucos e 69 paulistas que pela primeira vez atacaram uma redução jesuítica, em 1629. Em apenas uma missão, escravizaram dois mil índios e mataram quem não se rendeu ou tentou fugir.
Os paulistas “com espadas, machetes e alfanjes lhes derribavam as cabeças, truncavam braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Provavam os aços de seus alfanjes em rachar os meninos em duas partes, abrir-lhes as cabeças e despedaçar-lhes os membros”, conforme descreveu um jesuíta. Ao voltar para São Paulo, os bandeirantes matavam velhos, crianças e doentes que atrasassem a viagem, e davam seus restos mortais de comer aos cães. Raposo Tavares afirmava ser cristão, mas por seus crimes foi excomungado. Morreu pobre e abandonado.
Fernão Dias Pais foi atrás da lenda indígena de Sabarabuçu, uma mítica serra cheias de pedras preciosas. Para perseguir esse sonho, abandonou a mulher doente e vendeu as joias das seis filhas para financiar a viagem, deixando-as na miséria. Não hesitou em enforcar o próprio filho, José Dias Pais, quando este se rebelou e liderou um motim. Morreu vitimado pela malária, acreditando piamente que tinha encontrado esmeraldas na lagoa de Vupabuçu, em Minas Gerais — eram apenas turmalinas.
Borba Gato foi um assassino. Mas não de índios
O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), grupo radical de extrema-esquerda, publicou um tuíte afirmando que “Borba Gato foi um assassino que entrou para a história por dizimar e escravizar a população indígena originária do Brasil.” Assassino, sim, mas não de indígenas.
Borba Gato era casado com Maria Leite, filha de Fernão Dias, e, após a morte do sogro, em 1681, decidiu continuar à procura de esmeraldas e ouro na região do rio das Velhas, em Minas Gerais. De olho no possível tesouro, a Coroa Portuguesa enviou à região Dom Rodrigo Castelo Branco, que ocupava o cargo de Superintendente Geral das Minas. Castelo Branco não foi exatamente bem recebido por Borba Gato, que se sentiu ameaçado pela presença do cobrador de impostos vindo de Portugal. O resultado da arenga foi desastroso para ambos.
“Por ocasião da ida do administrador-geral das minas d. Rodrigo de Castelo Branco àquele sertão, teve desinteligências com êsse delegado régio, resultando assassiná-lo de emboscada, numa estrada que ia ter à feitoria do Sumidouro, em 28 de agosto de 1682”, escreveu o historiador Francisco de Assis Carvalho Franco em seu clássico “Dicionário de Bandeirantes e sertanistas do Brasil”. O historiador paulista Pedro Taques deu mais detalhes sobre o acontecido: Borba Gato, “arrebatado de furor”, deu “um violento empuxão” em Dom Rodrigo, lançando-o da beira de um buraco “ao fundo do qual caiu morto”.
No livro “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes na Origem de São Paulo”, o americano John Manuel Monteiro, especialista em história indígena, afirma que é “bastante provável que esta expedição tenha descoberto ouro, o que explica em parte o assassinato de D. Rodrigo Castelo Branco pela mão de Manuel da Borba Gato.”
Após o assassinato, Borba Gato passou nada menos que 18 anos escondido entre indígenas — estes que ele dizimou e escravizou, de acordo com o MTST. Ele se refugiou entre a tribo dos Mapaxós (atualmente denominados Botocudos) “vivendo entre eles, respeitado como um cacique”.
Diferentes versões sobre a data na qual ele voltou a São Paulo circulam entre os historiadores, mas todas se situam entre 1697 e 1700, quando o assassinato de d. Rodrigo foi perdoado pelo governador Arthur de Sá e Meneses, em troca, é claro, da localização das minas de ouro. Além do perdão, Borba Gato recebeu dois anos mais tarde o título que antes pertencia ao assassinado, e se tornou superintendente geral das minas do rio das Velhas. Sá e Meneses fundamentou o perdão afirmando que foram desconhecidos que mataram D. Rodrigo. Em 1834, o historiador baiano Baltazar da Silva Lisboa colocou a culpa do assassinato em um criado de Borba Gato.
Borba Gato faleceu em 1718, quando ocupava o posto de juiz ordinário da Vila de Sabará.