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Em março de 1921, um sujeito de meia idade e corpulento saía de casa no distrito de Charlottenburg, em Berlim, quando um jovem se aproximou e o matou com um único tiro. Era o início da Operação Nêmesis: a execução orquestrada de sete dos grandes responsáveis por arquitetar o genocídio do povo armênio. Era a versão armênia da Operação Ira de Deus israelense, retratada por Steven Spielberg no filme “Munique”.
A primeira vítima foi Talat Paxá, um dos chamados Três Paxás, principais figuras do Império Otomano na época. O assassino, Soghomon Tehlirian, foi inocentado pela corte alemã em um julgamento rápido, sob a alegação de insanidade temporária, devido ao que tinha sofrido durante o genocídio. Foi exatamente depois de estar presente neste julgamento, aliás, que um advogado judeu polonês ali presente, chamado Raphael Lemkin, acabou por cunhar o termo “genocídio”.
Importância geopolítica e diáspora
Para boa parte das pessoas, a Armênia é apenas um pequeno país isolado numa região montanhosa do Cáucaso. Um país que nem sequer tem dentro de suas fronteiras seu símbolo nacional maior, o Monte Ararat, onde Noé teria aportado depois do Dilúvio Universal. Mas nem sempre foi assim.
Na realidade, desde a Antiguidade a Armênia é um dos países mais importantes não só do Cáucaso, como de todo o Oriente Médio, já que seu território abrangia parte do que hoje chamamos de Turquia. Os reis armênios foram aliados – e, ocasionalmente, rivais – importantes do Império Romano. A Armênia foi o primeiro país a adotar o cristianismo oficialmente como religião nacional, em 301 d.C., quando a Igreja Apostólica Armênia, tradicionalmente fundada pelo apóstolo Bartolomeu, foi adotada oficialmente pelo rei Tiridates III, da dinastia arsácida.
Desde então, é difícil subestimar a importância geopolítica desempenhada por esse povo profundamente cristão nos rumos do Oriente Médio, ao longo de incessantes ondas de invasores das mais diversas etnias e religiões. Historicamente, os armênios se reuniram em comunidades espalhadas por diversos países. No Líbano e na Síria, essas comunidades sobrevivem. Mas foi o genocídio cometido pelos turcos que motivou, em 1915, a chamada “diáspora armênia” – spyurk – levando-os a lugares tão improváveis quanto o Brasil, onde estima-se que vivam cerca de 100 mil descendentes.
Ao longo de séculos, os turcos mantiveram com pulso firme todo o território anteriormente dominado pelos armênios, sem, no entanto, conseguir suprimir sua cultura e sua religião. Embora fossem muçulmanos fervorosos, governados por um sultão que se dizia “califa”, isto é, um representante direto do profeta Maomé, os otomanos concediam às diversas minorias conquistadas por seu império certo grau de autonomia – desde que, claro, essas minorias se submetessem a algumas condições, como o pagamento de um imposto ou a obrigação de cada família enviar um de seus filhos para o serviço militar. Mas foi graças a esta autonomia que os armênios puderam preservar de maneira tão forte o laço cultural e religioso que até hoje supera a distância física imposta pela diáspora.
Questão Armênia
Boa parte dessa população de armênios era formada por camponeses pobres, indefesos contra abusos cometidos por seus vizinhos islâmicos, especialmente os curdos, maioria étnica na região. Casos de violência contra a propriedade e até mesmo contra as mulheres armênias era algo corriqueiro, e dificilmente as autoridades de algum tribunal otomano davam ganho de causa a cristãos em disputas contra outros muçulmanos.
Mas muitos armênios conseguiram se destacar como comerciantes, o que fez com que diversas famílias atingissem um status elevado dentro da sociedade otomana e se infiltrassem na cena cultural e política de grandes cidades como a capital, Istanbul. Assim como ocorreu com os alemães do fim do século XIX e começo do século XX em relação aos judeus, os turcos começaram a ver essa posição de crescente destaque dos armênios com receio e ressentimento. O surgimento de movimentos e partidos revolucionários fundados por imigrantes armênios vindos da região do Cáucaso não ajudava a demover o público otomano dessa imagem.
Na primeira metade do século XIX, o governo otomano, desejoso de se igualar em importância geopolítica às outras monarquias da Europa, iniciou um processo de reformas modernizantes, o chamado Tanzimat. A ideia era transformar o país, visto pelo resto do mundo como uma teocracia atrasada, num Estado moderno. Uma das reformas foi eliminar o sistema dos millet, que concedia às minorias do império este tal grau de autonomia para se autogovernar.
A medida, no entanto, não teve o efeito desejado, pois acabou expondo de vez estas minorias às fúrias e abusos cometidos pelos seus vizinhos muçulmanos. Depois de um período de perseguição particularmente violenta aos cristãos das províncias europeias do Império Otomano, nos Bálcãs, as principais potências europeias da época se reuniram e decidiram pressionar o governo turco a estabelecer algum tipo de igualdade e proteção às suas minorias étnicas.
Foi neste período que surgiu a chamada “Questão Armênia”. À medida que o czar Nicolau conquistava para a Rússia terras vizinhas ao Império Otomano, milhares de armênios cruzavam a fronteira para a chamada Armênia russa, fugindo da perseguição religiosa e em busca de um grau maior de liberdade. O sultão Abdul Hamid II, sentindo-se enfraquecido e pressionado pelas potências europeias, rapidamente reverteu o processo de modernização do país, aumentou a repressão contra as minorias e reforçou a importância do islã como fator unificador nacional.
Ao mesmo tempo em que garantia às autoridades externas estar lidando com a Questão Armênia, ele aumentou os impostos sobre essas minorias e conferiu um status de semilegalidade a uma série de milícias que percorriam o interior do país para, sob a alegação de cobrar impostos, saquear e massacrar comunidades de não-muçulmanos, principalmente os armênios e algumas outras minorias cristãs, como os assírios.
As atrocidades eram terríveis. De acordo com um dos relatos, dezenas de mulheres foram fechadas dentro de uma igreja junto com soldados, com autorização para que fizessem com elas o que bem entendessem. Enquanto isso, seus filhos eram executados, alguns degolados por baionetas, outros colocados em fileiras e fuzilados para ver quantos podiam ser mortos com apenas uma bala. O número de vítimas desses massacres, que culminou com o incêndio da Catedral de Urfa, em 1895, com 3 mil armênios dentro dela, pode ter atingido até 300 mil pessoas.
Alguns atos de resistência de militantes armênios, como a tomada do Banco Otomano, em Istanbul, no ano seguinte, aliados à velocidade com que as notícias se espalhavam pelo mundo, graças à imprensa e ao telégrafo, atraíram cada vez mais a atenção do mundo para a causa armênia. Interesses financeiros e geopolíticos, no entanto, impediam que qualquer potência mundial se mobilizasse contra o governo otomano.
Esperança e desilusão
Em 1908, uma esperança surgiu para os armênios quando um grupo de estudantes de medicina descontentes com o governo otomano formaram o revolucionário Comitê para a União e o Progresso. Liderados por três oficiais, conhecidos como “Os Três Paxás” (Talat, Enver e Cemal), eles conseguiram ser bem-sucedidos num golpe de Estado e assumir o poder.
O grupo fazia parte de um movimento mais amplo, chamado de Jovens Turcos, que se opunha às decisões desastradas do sultão. Eles queriam recolocar o país no caminho da modernização, em pé de igualdade com as potências europeias. O golpe foi celebrado por todas as minorias. Por um breve momento, gregos, assírios e eslavos se esqueceram (ou fizeram vistas grossas) do nacionalismo turco exacerbado inerente ao movimento e sonharam com um futuro em que tivessem uma vida de igual para igual com seus vizinhos. Mas uma série de acontecimentos logo minou esses sonhos.
No ano seguinte, o sultão deposto organizou uma “contrarrevolta” contra os Jovens Turcos. Apesar de fracassar no seu intento, ele conseguiu direcionar parte da ira dos derrotados para os cristãos. A contrarrevolta culminou no massacre de Adana, no qual até 30 mil armênios, que estavam entre a camada mais próspera da cidade, foram mortos como bode expiatório.
Em 1912, o Império entrou em guerra contra os povos eslavos dos Bálcãs, que declararam independência, infligindo aos turcos uma derrota humilhante que lhes custou quase a totalidade de seu território no continente europeu. Isso provocou uma onda migratória de muçulmanos expulsos destes territórios e que foram acomodados nos bairros onde vivam os armênios. O ressentimento natural experimentado por estes refugiados, aliado a táticas como panfletos insuflando as massas a “não esperar que o sangue arrefecesse para se vingar”, acabou tendo um papel significativo nos acontecimentos que se seguiriam.
Início “não-oficial” do genocídio
Em 1914, eclodiu a Primeira Guerra Mundial. O governo dos Jovens Turcos resolveu se aliar à Alemanha e ao Império Austro-Húngaro contra a dita Tríplice Entente, formada por Reino Unido, França e Rússia. O exército otomano imediatamente se voltou para o leste, em especial para o Cáucaso, visando retomar os territórios perdidos para a Rússia.
Como os armênios habitavam os dois lados da disputada, representantes dos Jovens Turcos apelaram ao principal partido armênio da época, o Dashnaktsutyun, para que ele convencesse os armênios do lado russo a atuar a favor do Império Otomano. A resposta dos Dashnaks, como eram conhecidos os militantes do partido, contudo, foi a de que armênios manteriam fidelidade aos seus respectivos impérios. A “traição” serviu como estopim para uma campanha na qual os nacionalistas armênios eram retratados como uma espécie de guerrilha atuando a favor do Império Russo.
Depois da primeira grande derrota turca no conflito, em Sarikamish –talvez a pior em toda a Primeira Guerra – um dos Três Paxás, Enver, o Ministro da Guerra, usou os armênios mais uma vez como bode expiatório, acusando-os de colaborar com os russos. Ao mesmo tempo, Urgüplü Mustafa Hayri Efendi, o Şeyh'ül-İslam, autoridade religiosa máxima otomana, declarou uma jihad contra todos os cristãos do império.
Todos os soldados que não eram muçulmanos foram imediatamente retirados de suas tropas e agrupados em “batalhões de trabalho”, onde, desarmados, viraram vítimas fáceis de seus colegas muçulmanos e de gangues e milícias armadas. Muitos acreditam que essa medida, planejada antecipadamente, teria sido o início “não-oficial” do genocídio.
Começo “oficial” do genocídio
O começo “oficial” do genocídio, no entanto, tem uma data precisa, cujos 100 anos foram lembrados recentemente: 24 de abril de 1915. No início daquele mês, o governador otomano da província de Van, uma das regiões de maior população armênia na época, exigiu que 4 mil homens locais se alistassem no exército otomano. Os habitantes locais, que já vinham se revoltando contra os abusos cometidos pelo governo e suas milícias desde o ano anterior, sabiam a real intenção do governador: tirar da região todos os homens capazes de resistir, para que a população local ficasse vulnerável e pudesse ser massacrada.
Os homens se negaram a obedecer à ordem do governador, dando início a um conflito sangrento. Era o pretexto que o governo otomano precisava. No infame 24 de abril, que entrou para a história como Domingo Vermelho, outro dos Paxás, Talat, o Ministro do Interior, deu a ordem para que cerca de 250 intelectuais, políticos e líderes comunitários armênios de Istanbul fossem presos e, depois de alguns dias, transferidos para centros de detenção em Ancara, onde podiam ser assassinados com menos estardalhaço.
Em 29 de ano, o Comitê aprovou a Lei de Deportação (“Tehcir”), dando autorização para que membros do governo e das forças armadas deportassem qualquer um que fosse considerado uma ameaça à segurança nacional. Uma lei subsequente autorizou o confisco de toda e qualquer propriedade de armênios. Todo armênio que tivesse uma arma estava obrigado a entregá-la às autoridades.
Muitas crianças foram tiradas da família e forçadas a se converter ao islã. Ao longo de todo o ano, as populações armênias foram removidas de suas terras natais e forçadas a percorrer verdadeiras “marchas da morte” para campos de concentração situados no meio do nada, inicialmente em regiões ermas no meio da Anatólia e, posteriormente, no meio dos desertos da atual Síria, então território otomano.
Aqueles que não morriam de fome e sede no caminho, e sobreviviam aos ataques cometidos por milícias turcas e gangues de bandidos turcos e circassianos, acabavam morrendo de fome e sede nos próprios campos mesmo. Autoridades turcas faziam questão de impedir que mantimentos chegassem aos refugiados. O desespero era tanto que, segundo relatos de um dos guardas, a população chegava a revirar fezes de cavalo em busca de algum grão para comer.
Correspondências e documentos das autoridades otomanas indicam que a intenção era mesmo a de cometer um genocídio. a meta era manter a população armênia num patamar de no máximo 10% da população local. De acordo com o Centro de Estudos do Holocausto e Genocídio da Universidade de Minnesota, o Império Otomano tinha 2.133.190 armênios em 1914. Em 1922, eles eram apenas 387.800.
Sem pudores
Diplomatas, missionários e jornalistas ocidentais presenciaram os abusos e tentaram intervir, sem sucesso. Os apelos foram transmitidos às potências estrangeiras que, apesar de condenar publicamente o governo turco, não conseguiram pôr um fim ao massacre. Apesar de a Alemanha ser aliada da Turquia, até mesmo os diplomatas e militares alemães expressavam sua repulsa diante do que acontecia.
O Genocídio Armênio nunca foi desconhecido pela imprensa ocidental. O The New York Times, por exemplo, publicou, só em 1915, 145 artigos sobre o assunto, com manchetes que diziam “Apelo à Turquia para que Pare com os Massacres” e chamando o ocorrido de um ataque sistemático e organizado do governo turco.
O governo otomano, contudo, parecia não ter qualquer pudor. O embaixador americano em Istanbul, Henry Morganthau Sr., menciona em suas memórias que nenhuma autoridade turca jamais fez questão de esconder o fato de que “estavam dando autorização para a execução completa de toda uma raça”. Pelo contrário, ele menciona um chefe de polícia que conta como seus subordinados passavam noites em claro pensando em novas maneiras de torturar seus prisioneiros.
O apelo de Morganthau ao presidente Woodrow Wilson motivou uma campanha filantrópica nos Estados Unidos que mobilizou até celebridades de Hollywood e obteve US$ 100 milhões para ajudar órfãos e refugiados. O esforço conseguiu salvar algumas vidas.
Carnificina e estupro
O cenário no território que ia da Anatólia e do rio Eufrates até os desertos da Síria era de completa desolação e carnificina. Valas e fileiras de corpos ao longo das estradas eram uma visão comum. O governo otomano autorizou a soltura de criminosos, criando unidades conhecidas como “Organização Especial” (Teshkilâti Mahsusa), uma espécie de SS otomana. Esses criminosos atacavam com uma ferocidade ainda maior as caravanas de refugiados no deserto.
Como em todas as guerras, o estupro era uma das formas mais utilizadas e eficazes de aterrorizar uma população subjugada. Os homens eram separados das mulheres (e crianças). Algumas recebiam a opção de se converter ao islã e serem poupadas (levadas para algum harém ou forçadas à prostituição), enquanto outras eram submetidas a torturas. De acordo com o depoimento de uma mulher armênia da cidade de Bitlis, “todas as mulheres velhas e fracas foram mortas. Cerca de cem guardas curdos nos vigiavam, (...) e era comum que estuprassem as garotas diante de nós. Frequentemente estupravam meninas de oito ou dez anos e, por consequência, muitas não conseguiam andar depois, e eram executadas. (...) A maioria de nós estava praticamente nua. (...) Quando um curdo queria uma garota, nada o impedia de pegá-la para si. Os bebês que elas carregavam eram mortos diante de nós.”
Assim como ocorreu durante a Guerra Civil Síria, com membros do Estado Islâmico escravizando mulheres yazidis e assírias, as armênias seminuas eram levadas para mercados de escravos em diversas cidades, incluindo Damasco e Mosul, onde acabavam vendidas e se tornavam uma importante fonte de renda para os soldados.
Alguns armênios se mobilizavam para resistir, mas qualquer esforço era infrutífero diante da máquina militar otomana. Cidades do interior que abrigavam resistentes eram impiedosamente bombardeadas, como Urfa, praticamente varridas do mapa pela artilharia turca. Já nas cidades do litoral do Mar Negro a tática era outra. Aqueles que resistiam eram colocados como gado dentro de gigantescos barcos, que eram então afundados em alto mar. O jornalista britânico Robert Fisk menciona que o número de corpos de armênios afogados no rio Eufrates foi tamanho que o rio mudou seu percurso ao longo de algumas centenas de metros.
Autoridades turcas discutiam quais eram os métodos mais eficientes para se livrar dos armênios. Incêndios coletivos foram uma alternativa. Um oficial otomano mencionou ter presenciado cerca de 5 mil armênios queimados vivos, e testemunhas contavam que o cheiro de carne humana queimada permaneceu no local durante dias a fio. Nas cidades, celeiros e palheiros eram usados para práticas semelhantes. Em cenas que mais uma vez ofereciam uma curiosa antevisão do que seria praticado pelos nazistas contra os judeus, médicos foram usados para projetar métodos de execução, incluindo gases tóxicos e experimentos com pacientes vivos. Muitos envenenavam crianças, sob o pretexto de vaciná-las.
Entre os envolvidos estavam algumas das principais autoridades médicas do país, como o dr. Tevfik Rusdu, Inspetor-Geral dos Serviços Sanitários do Império, responsável por obter a cal necessária para cobrir centenas de milhares de corpos de armênios ao longo de seis meses. Incontáveis profissionais de medicina armênios foram mortos, com a cumplicidade de seus colegas turcos, embora alguns poucos tenham, num lampejo de heroísmo, tentado proteger seus colegas de profissão.
Fim da guerra
A Guerra, no entanto, tomou um rumo inesperado para o governo turco. Em 2 de novembro de 1918, os Três Paxás, diante da derrota iminente, resolveram fugir para a Alemanha, largando um país em frangalhos. O sucessor, Mehmed VI, o último sultão do Império Otomano, representou o país durante a Conferência de Paz de Paris, organizada pelas quatro grandes potências vencedoras do conflito, e foi encarregado de julgar os membros de seu governo acusados de serem responsáveis pelas atrocidades contra os armênios.
Cerca de 130 suspeitos, incluindo alguns dos principais oficiais, foram formalmente acusados. Os Aliados, no entanto, desconfiados da disposição das autoridades otomanas em julgar seus pares, resolveram transferir a maior parte dos prisioneiros de guerra para a ilha de Malta, então ainda uma colônia britânica no Mediterrâneo.
O governo otomano e as potências vencedoras assinaram o Tratado de Sèvres, que determinava que os responsáveis pelos “métodos bárbaros e ilegítimos de guerra (...) [como] ofensas contra as leis e costumes de guerra e os princípios de humanidade” deveriam ser responsabilizados pelos massacres cometidos durante o conflito. Mas as cláusulas do tratado provocaram um caos interno que culminou com a queda do império e a ascensão do movimento nacionalista turco.
Liderados por Mustafa Kemal, futuro Atatürk, os nacionalistas proclamaram a República da Turquia e fizeram pressão para que o Tratado de Sèvres fosse substituído pelo de Lausanne, que anulava as decisões anteriores e dava imunidade a todos que tinham cometido crimes entre agosto de 1914 e novembro de 1922.
Negação e consequências
Para o governo turco, até os dias de hoje, no entanto, não houve qualquer genocídio porque não houve qualquer tipo de premeditação nas mortes ocorridas. Os turcos atribuem essas mortes às circunstâncias de um processo de deportação necessário diante de uma situação que ameaçava a segurança nacional. Behaeddin Shakir, chefe da temível Organização Especial e considerado por muitos o arquiteto do Genocídio Armênio, teria até mesmo declarado ser ele o responsável pelas “deportações”. “Não me arrependo em absoluto do que fiz”, disse.
Durante as negociações do Tratado de Lausanne, em 1923, o chefe da delegação turca, dr. Riza Nur, que se notabilizou por ter ameaçado exterminar todos os armênios de seu país e orientado um de seus comandantes que ocupava uma igreja medieval armênia da cidade de Ati a “eliminar da face da terra todas as relíquias e qualquer rastro dos monumentos” do local, negou que qualquer armênio tivesse sido morto por tropas turcas, culpando “epidemias, fome e emigração” pelas mortes.
A recém-criada República da Turquia ganhou um novo ímpeto e, liderada por Atatürk, conseguiu expulsar de vez de seu território todas as minorias não-muçulmanas que ainda restavam, como os gregos, e recuperou boa parte do território perdido para russos e armênios durante a guerra, aniquilando de vez as últimas comunidades armênias intactas na Anatólia em 1922.
Na Turquia, até os dias de hoje, discutir o assunto é considerado um crime de insulto à pátria. No dia em que o mundo lembrou o centenário do Genocídio Armênio, em 2015, os turcos comemoraram os 100 anos do desembarque dos aliados em Gallipoli – uma vitória otomana inesperada contra as tropas das grandes potências mundiais.
Em 2014, o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan ofereceu suas condolências aos armênios, naquele que pode ser visto como o maior gesto entre as duas nações desde o genocídio. Em seguida, porém, ele acrescentou que “a diáspora armênia está tentando instilar o ódio contra a Turquia por meio de uma campanha mundial de alegações de genocídio. (...) Mas se examinarmos o que nossa nação passou ao longo dos últimos 100 a 150 anos, descobriremos muito mais sofrimento do que o que os armênios passaram”.
De acordo com um estudo recente, apenas 9% dos turcos acham que seu governo deve denominar o ocorrido de “genocídio” e se desculpar por ele. Mas é impossível negar as consequências do genocídio para a população armênia. A maioria dos armênios que viviam na Turquia foram mortos ou expulsos do país. Todo um povo foi obrigado a abandonar o leste da península da Anatólia para se refugiar num pequeno canto montanhoso que acabou em seguida conquistado pelos soviéticos, enquanto dezenas de milhares de armênios acabaram forçados a se espalhar pelo mundo afora.