Qualquer que seja sua posição, nenhuma pessoa honesta e inteligente pode negar que o debate público aceitável tendeu drasticamente à esquerda nas últimas décadas. Menos óbvia é uma das implicações dessa mudança – isto é, que vários personagens amados de antigamente defendiam opiniões e princípios hoje associados ao extremismo de direita, mesmo que antes essas pessoas fossem consideradas de esquerda. Uma coisa é observar que um regime politicamente correto que só tolera progressistas não fará sentido para, digamos, Cristóvão Colombo, o confederado Raphael Semmes ou até para figuras meio santas como Luís IX. Outra é perceber que a único motivo para um ícone progressista como George Orwell não ter sido cancelado ainda é uma dissonância cognitiva radical, uma inconsistência temporânea por parte daqueles que policiam a opinião pública.
Para demonstrar essa tese, temos, primeiro, de considerar o prefácio que Orwell escreveu para seu popular A Revolução dos Bichos. Nesse prefácio, Orwell refletia sobre a dificuldade de conseguir publicar o livro e notava que ao menos uma carta de rejeição tinha sido explicitamente motivada pelo temer de que a sátira da Revolução Bolchevique pudesse ser considerada ofensiva em alguns rincões. “Neste momento, o que se quer da ortodoxia reinante é uma admiração acrítica da União Soviética”, concluía ele. “Todos sabem disso, mas quase ninguém faz nada a respeito. […] O que incomoda é saber que, no que diz respeito à URSS e suas políticas, não se pode esperar qualquer crítica inteligente nem, em muitos casos, honestidade por parte de escritores e jornalistas progressistas que não sofrem pressão direta para falsificar suas opiniões”.
Ainda que o politicamente correto da época de Orwell estivesse direcionado sobretudo à omissão em relação aos aspectos mais brutais e totalitários do regime soviético, as observações dele sobre as tendências inerentemente manipuladoras da cultura de massa continuam pertinentes hoje em dia. Certos “aspectos sensacionais do noticiário”, escreveu ele, eram
mantidos fora da imprensa britânica, não porque o governo estivesse intervindo, e sim por causa de um acordo tácito de que “não seria útil” mencionar um fato específico [...]. A imprensa britânica é extremamente centralizada e de propriedade de homens ricos que têm todos os motivos do mundo para serem desonestos quanto aos assuntos importantes. Mas o mesmo tipo de censura velada ocorre em livros e periódicos, assim como em peças, filmes e programas de rádio. A tal ponto que passa a vigorar uma ortodoxia, um corpo de ideias que todos os bem-pensantes aceitarão sem questionar.
Claro que não é possível haver uma comunidade funcional se todos se considerarem no direito de dizer absolutamente tudo o que lhes veem à mente, quando bem entenderem, e Orwell sabia disso. “De haver sempre, e sempre há, algum tipo de censura, ao menos enquanto houver sociedades organizadas”, dizia ele. Ao mesmo tempo, porém, Orwell dizia que “se a liberdade intelectual, que sem dúvida é uma das marcas da civilização ocidental, tem algum sentido, o sentido é o de que todos têm o direito a dizer e publicar o que acreditam ser a verdade, desde que isso não cause prejuízo ao restante da comunidade”.
Quanto a essa doutrina da liberdade intelectual, Orwell chega a mencionar o populismo. “As pessoas comuns ainda adotam vagamente essa doutrina e agem de acordo com ela”, mesmo que “sejam os progressistas os que temem a liberdade e os intelectuais os que querem subjugar o intelecto”. Você é capaz de imaginar esse mesmo sentimento num editorial do Washington Post ou do New York Times? Lembremos, pois, que o inglês comum que Orwell preferia à elite era tão (se é que não mais) “misógino”, “homofóbico” e “supremacista branco” do que os norte-americanos de hoje. Para que notemos o contraste ainda maior e mais marcante entre Orwell e os que pedem mais censura na Internet e mais restrições jurídicas à expressão, temos que perceber que Orwell defendia que se desse um habeas corpus ao fascista Sir Oswald Mosley, ainda que, naquela época, o Reino Unido estivesse lutando contra nazistas de verdade, na maior destrutiva guerra já travada. Temos também de refletir sobre como a expressão “civilização ocidental” hoje provoca hostilidade entre acadêmicos e jornalistas, sem falar que a ideia de que essa civilização se distingue das demais em seu zero pelo questionamento franco.
Lido com atenção, o ensaio “Notes on Nationalism” [Notas sobre o nacionalismo], de Orwell, mostra a posição do escritor, assim como o prefácio de A Revolução dos Bichos, por mais que Orwell comece com um lugar-comum de que “nacionalismo não deve ser confundido com patriotismo”. A parte reveladora surge quando ele leva essa ideia numa direção oposta da permitida pelo debate público de 2021:
As duas palavras são usadas de uma forma tão vaga que qualquer definição está sujeita a questionamentos, mas é preciso estabelecer uma distinção entre elas, já que há duas ideias diferentes e opostas envolvidas. Por “patriotismo” quero dizer “devoção a um lugar e um estilo de vida específico”, que se acredita ser o melhor do mundo, mas não deseja impor aos outros povos. Patriotismo é por natureza defensivo, tanto militar quanto culturalmente.
O mais interessante é que Orwell acreditava que “as piores tolices [do nacionalismo] surgiram do colapso do patriotismo e da fé”, chegando até a imaginar se o patriotismo tradicional é, em si, “um antídoto ao nacionalismo”. De qualquer forma, o nacionalista deve ser identificado, uma vez que “o objetivo de todo nacionalista é garantir mais poder e prestígio, não para si, mas para a nação ou unidade na qual optou por afogar sua individualidade”.
Então, sim, Orwell concorda com a maior parte dos analistas, que dizem que o patriotismo é bom e o nacionalismo é ruim. Mas o que Orwell condena como nacionalismo é justamente o que eles hoje celebram, sobretudo os neoconservadores e neoprogressistas que buscam impor a revolução democrática mundial – isto é, o globalismo – no mundo. Da mesma forma, a mesma devoção que Orwell chama de patriotismo é o que os âncoras da CNN e alguns conservadores chamam de xenofobia ou isolacionismo. A diferença é que Orwell vê o patriotismo como uma atitude defensiva de uma cultura específica, um “estilo de vida” específico, enquanto o projeto ideológico invasivo que ele vê no nacionalismo não precisa ter nada a ver com a nacionalidade do nacionalista. A “outra unidade” na qual o nacionalista opta por “afogar sua individualidade” pode ser o Partido Comunista, o movimento Black Lives Matter ou os imigrantes.
Quando Orwell declara que “é incomum que um intelectual sinta um apego especial a seu país”, isso não é um elogio. Para ele, tudo o que os intelectuais corrompidos fizeram foi substituir os afetos humanos pela ideologia. Quando um homem transfere um afeto que normalmente estaria direcionado à sua história e cultura a um povo estrangeiro ou uma abstração política, a transferência “permite que ele seja mais nacionalista – mais vulgar, mais tolo, mais maquiavélico, mais desonesto – do que seria se gostasse de seu país ou qualquer coisa que conhecesse a fundo”.
Orwell dissecava vários desses nacionalismos artificiais, e uma de suas análises parece assustadoramente profética:
O antigo desprezo em relação aos “nativos” perdeu força na Inglaterra, e várias teorias pseudocientíficas sobre a superioridade dos brancos foram abandonadas. Entre a intelligentsia, a cor só tem relevância na ordem inversa, isto é, como crença na superioridade inata das outras raças. Hoje isso é cada vez mais comum entre os intelectuais ingleses [...]. Até mesmo entre os que não têm uma opinião consolidada sobre a raça, a arrogância e a imitação têm influência. Quase todo intelectual inglês ficaria escandalizado diante da ideia de que os brancos são superiores às demais raças, mas a ideia de que as outras raças são superiores aos brancos lhe pareceria inatacável, por mais que ele discordasse dela.
A relevância dessas análises em nossa época é inequívoca, porque elas mostram como a ideia de que os brancos são moral e espiritualmente inferiores pode estar fervilhando sob a anglosfera há algum tempo. De qualquer forma, é melhor apostar que os slogans do antirracismo e antifascismo – isto é, antiocidentalismo – não teriam despertado tanto o interesse de Orwell quanto o nazismo e o stalismo. Nas palavras dele, o “ismo” mental é, em si, o problema. “O inimigo é a mente-gramofone, não se a pessoa concorda ou não com o disco que está sendo tocado”.
Convenhamos que Orwell não tinha nada de criptocristão conservador. Essa imagem é equivocada, já que ele criticava abertamente conservadores religiosos como G.K. Chesterton. Mas Orwell acreditava mesmo no objetivo da Verdade com “v” maiúsculo, o que o tornava inimigo de todos os que consideravam a Verdade opressora em princípio. Se as bizarras modas teóricas da academia e as narrativas instáveis da imprensa lembram o desprezo do Grande Irmão pela realidade, talvez haja um motivo para isso. Os cristãos respeitam Orwell, apesar de não nos apropriarmos totalmente dele. Já os progressistas têm de rejeitá-lo no todo. Não há como ficar em cima do muro nisso. Podemos ou aceitar que os dissidentes, céticos do igualitarismo, globalismo ou politicamente correto, sejam banidos do debate público, ou podemos celebrar o autor de 1984 como um pensador inteligente. Tentar as duas coisas é como dizer que dois e dois são cinco.
Jerry Salyer é veterano da Marinha norte-americana, além de mestre em artes pela St. John’s College.