Himmelfarb foi uma mulher de convicções antigas, mas ela não se importava. Para ela, ter princípios e estar certa não era demérito; era uma virtude.| Foto: Divulgação
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Gertrude Himmellfarb (1922-2019), uma das historiadoras mais competentes e sofisticadas que os EUA produziram no século XX, é mais uma grande pensadora conservadora negligenciada pelos brasileiros ao longo de décadas, ignorada tanto pela academia quanto pela imprensa.

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A história de Himmelfarb começou em 8 de agosto de 1922, data de seu nascimento em Nova York, mais especificamente no Brooklyn. Filha de Max e Bertha Himmelfarb ― judeus russos que fugiram das taras quase satânicas de Lênin e sua trupe comunista ― , aos 17 anos Gertrude entrou para a Brooklyn College, antro da esquerda trotskista americana, ou, como define José Luiz Bueno em "Gertrude Himmelfarb: modernidade, iluminismo e as virtudes sociais", a Harvard dos socialistas. Da Brooklyn College ela saiu graduada em história, filosofia e economia. Três competências que fizeram dela uma analista política de primeira ordem.

Foi lá também, aos 18 anos, que ela conheceu o marido e companheiro de reflexões e escritos, o icônico pai do neoconservadorismo americano, Irving Kristol (1920-2009). Kristol conta, em "Neoconservatism: The Autobiography of an Idea" [Neoconservadorismo: autobiografia de uma ideia], que se apaixonou à primeira vista pela estudante Himmelfarb e que logo soube que não demoraria muito para pedi-la em casamento. Ambos trotskistas convictos, eles assumiram o relacionamento e, de fato, logo se casaram, em 1942. Apesar de casados, Gertrude afirmou para a revista New Yorker que não assumiu o nome do marido porque não queria enfrentar a papelada exigida para isso. O casal teve dois filhos, William Kristol e Elizabeth Nelson, cinco netos e cinco bisnetos.

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Conversão ao "neoconservadorismo"

O processo de abandono do esquerdismo trotskista começou gradualmente pela percepção de engano autoconsentido dos adeptos do comunismo escolar. As teorias comunistas se mostravam cada vez mais falhas quando colocadas em prática, enquanto a ideologia se tornava cada vez mais dura e autoritária, e ainda assim os ideólogos e demais entusiastas insistiam em manter um discurso de liberdade e altruísmo no qual, de fato, a liberdade e o indivíduo consciente não eram sequer brevemente apreciados.

Não demorou muito para que, aliados a uma comunidade crescente de judeus conservadores em Nova York, tanto Himmelfarb como Kristol abandonassem as crenças universitárias de um trotskismo americanizado e abraçassem paulatinamente um conservadorismo intelectualizado que começava dar as suas caras exatamente naquele instante histórico.

Em 1944 ― para ajudar nesse processo acima exposto e já convictamente convertidos ao que se convencionou chamar de “neoconservadorismo” ―, o casal se mudou para Chicago depois que Himmelfarb conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade de Chicago. Lá, a novata e talentosa historiadora estudou com intelectuais já consagrados do mundo liberal-conservador, como Hannah Arendt (1906-1975), Leo Strauss (1899-1973) e Friedrich August von Hayek (1899-1992).

Lord Acton

Foi também na Universidade de Chicago que ela elaborou seu estudo sobre o revolucionário francês Maximilien de Robespierre (1758-1794) e, já em processo de doutoramento, escreveu amplamente sobre a vida e obra de Lord Acton (1834-1902). Esse trabalho a colocaria em outro patamar de importância acadêmica nos EUA e no Reino Unido.

Por causa de seu trabalho sobre Lord Acton, Gertrude ganhou uma bolsa para pesquisa em Cambridge e, depois que seu marido conseguiu dar baixa em sua participação no exército americano, em 1946, partiram para a Inglaterra, onde permaneceram durante quatro anos. Na terra da rainha, ela ampliou consideravelmente sua pesquisa e editou os ensaios de Acton. Ao voltar para Chicago, em 1950, ela defendeu sua tese sobre Lord Acton, intitulada "Lord Acton: A Study in Conscience and Politics" [Lord Acton: um estudo sobre consciência e política].

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O trabalho marcaria profundamente a sua carreira intelectual. A tese proposta trata da correspondência entre as virtudes sociais e a liberdade consciente dos indivíduos como esteios da ordem comunitária do Ocidente. Tal percepção, como veremos adiante, seria o grande farol e trilho intelectual de Gertrude até o fim da sua vida.

Homenagens

Apesar de suas pesquisas cada vez mais profundas e de excelência, de 1950 a 1965 quase não se vê atuação alguma da historiadora no ramo acadêmico. Segundo o já citado José Luiz Bueno, a historiadora se descrevia como “uma mãe que trabalhava e que, enquanto mantinha interesse pela pesquisa acadêmica, dividia o tempo com as tarefas e a responsabilidade de cuidar dos dois filhos do casal”. O que pode explicar esse intervalo de 15 anos de uma atuação mais significativa da historiadora na universidade e revistas especializadas.

Mas isso mudou em 1965, quando ela entrou para o quadro de professores da Brooklyn College ― universidade que a projetou. Em 1978, lecionou história na City University of New York até se aposentar, em 1988. Recebeu inúmeros títulos e homenagens pelos serviços prestados ao estudo de história nos EUA e no Reino Unido, entre eles: membro da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, conselheira da Scholars of the Library of Congress, de 1984 a 2008, e, em 2004, recebeu das mãos do então presidente George W. Bush a National Humanities Medal. Essa última é um dos maiores prêmios no ramo dos estudos humanísticos nos EUA.

Em 30 de dezembro de 2019, aos 97 anos de idade, durante a madrugada, Gertrude Himmelfarb faleceu vítima de “insuficiência cardíaca”. O intelectual português João Carlos Espada, amigo pessoal da família Kristol-Himmelfarb, assim descreveu o evento no jornal Observador: "Na passada terça-feira, 31 de dezembro, recebi às 14h06 um e-mail de William Kristol [filho de Gertrude] intitulado “sad news”. Abri com hesitação, e os meus receios foram infelizmente confirmados. Bill informava os amigos de que sua mãe, Gertrude Himmelfarb, morrera na noite anterior, aos 97 anos, em casa e pacificamente".

Com dezesseis livros assinados como seus, mais oito como editora e/ou organizadora, além de vários ensaios e artigos, Himmelfarb se inclui naquele conjunto de intelectuais que ― ao contrário de seu marido, combativo e apaixonado defensor das causas políticas conservadoras ― convenceu e colocou seu nome na história americana devido à sua capacidade de apresentar as razões profundas de suas teses, de defender de maneira elegante e sofisticada seus pontos de vista.

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Reabilitação da Era Vitoriana

Após estudar Lord Acton, a historiadora encarou o conceito de virtude social (princípios e valores práticos de origem judaico-cristão) como o arrimo que cimenta a coesão civilizacional que tanto nos diferenciou das demais sociedades. Ao estudar a Era Vitoriana, Himmelfarb encontrou no conceito de dever o combustível dos avanços sociais que depois iriam aflorar principalmente na Inglaterra. Himmelfarb destaca que a tão denegrida imagem da Era Vitoriana é fruto de uma propaganda ideológica dos iluministas franceses que, sem demora, foi absorvida pelos intelectuais e revolucionários de cepa progressista no mundo todo. Para ela, a Inglaterra vitoriana se destaca socialmente pela redução da bastardia, analfabetismo, criminalidade, fome, pobreza, etc., tudo isso por meio de um processo moral, e não político.

Para a historiadora americana, a Era Vitoriana, por meio da assimilação das virtudes cristãs e tradicionais, aliada ao sentido de dever individual, criou uma espécie de mão social invisível que tinha o poder de minorar os problemas sociais enquanto elevava naturalmente a condição de vida daqueles que viviam aquela era. Himmelfarb entendia que o Estado assistencialista e os seus princípios de bem social humanista que hoje ostentamos como o ponto alto do século XX e XXI eram algo natural, decentralizado e extremamente comum no cotidiano inglês e americano (após este último ter sido efetivamente fundado e ter importado as tradições e costumes do velho continente). O sentido de dever e a assimilação das virtudes como imperativo de vida dos indivíduos formavam um imaginário social eficaz, estimulando nos indivíduos a autonomia e a soberania sobre seu próprio destino, em vez de depositarem as suas sortes e subsistências em programas de assistência do Estado.

O paradoxo histórico-político que Himmelfarb expunha em seus escritos, e que talvez a contemporaneidade progressista ainda não esteja pronta para assimilar, era que quanto mais a força moral da sociedade vitoriana apontava para uma autonomia individual e responsabilização pessoal sobre o seu próprio destino, mais os indivíduos naturalmente se tornavam participativos e empáticos nas causas públicas, minorando naturalmente aqueles problemas sociais que hoje o centralismo político tenta resolver através de engenhocas filosóficas e ajustes políticos autoritários.

Gertrude Himmelfarb compreendia que o brio que as virtudes sociais vitorianas colocavam no caráter do homem impedia que ele encontrasse no Estado a sua primeira parada de ajuda ― o que é o novo normal dos dias atuais ―, e sim a última via, quando todas as tentativas de autossustento foram esgotadas. O indivíduo, quando resiliente e forjado na dificuldade da autonomia, espontaneamente seguirá um caminho de independência e maturidade psicológica e social, encontrando na sociedade um elo cultural que unirá naturalmente a comunidade aos seus princípios, e não uma maca moral no qual nos deitamos voluntariamente para vegetar e/ou parasitar.

O sentido de virtude e dever é, para Gertrude, é a própria ligação entre a cultura e o indivíduo, e, quando desvinculamos um do outro, acabamos ou criando um conjunto de normas coercitivas, caducas e autoritárias, estranhas aos homens da Pólis, ou uma anarquia de sanatório, onde cada cabeça é a própria ética encarnada. Em ambos os casos, temos a morte da vida social. Himmelfarb antes entende que o indivíduo e sua cultura devem estar intimamente conectados, tal como um filho a seu pai e, quando um ou outro indispensavelmente tem que passar pelo enfrentamento da contestação, deve adotar uma postura madura para avançar sem precisar destruir o passado, ou reafirmar as raízes sem que isso signifique estacionar no tempo.

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Valores tradicionais

Talvez um filósofo que entendeu bem aonde Gertrude queria chegar ― apesar de não constar que ambos se conheciam ― foi o padre Battista Mondin. No livro "Os valores fundamentais", ele afirma:

"Há muitas pessoas que pensam que é possível superar facilmente essa crise trocando o painel tradicional dos valores (os valores morais, religiosos, espirituais, transcendentais) por um novo painel feito simplesmente de valores históricos, econômicos, políticos, culturais. A meu ver, isso é um enorme erro, gravíssimo e colossal que não leva em conta uma verdade simples: assim como o homem tem necessidade de determinadas coisas para a vida biológica e de certos valores espirituais e absolutos para a vida espiritual, também a sociedade, pelo seu próprio ser, tem necessidade da cultura e esta, para poder realmente atuar como forma unificante da sociedade, não pode se limitar ao cultivo de valores econômicos, materiais e instrumentais. Ela deve, também e sobretudo, atender à promoção e à assimilação de valores absolutos, transcendentais e perenes".

O homem contemporâneo, quando decide abandonar os valores que foram bons o suficiente para transportá-lo até aqui, adota abertamente uma atitude desconexa e irracional e, em última instância, completamente incivil e egoísta. Não à toa, aponta Himmelfarb, assistimos estupefatos ao avanço da cultura relativista, do identitarismo e do progressismo que resolveu abandonar qualquer arrimo lógico e sustentação ética em troca de uma engenharia social tosca e sem fundamento. Aqueles que conseguem vislumbrar esse processo de morte dos valores perenes no Ocidente não se sentem completamente desavisados ou assustados diante das barbáries aqui construídas no século XX.

Abdicando dos valores tradicionais e daqueles princípios perenes, tais como a justiça, verdade e liberdade, o progressismo tornou a política mais do que “o melhor ajuste” comunitário para uma vida em comum ordeira e satisfatória, e sim uma religião política pura e simples. Diz Himmelfarb em "Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, francês e americano":

"Mas a ideia de uma religião civil, com todas solenidades, e as censuras ligadas a ela, era tudo menos inocente, pois era o meio para a realização do propósito do novo regime, como Rousseau o entendia, que não era nada menos que a reformulação radical não apenas da sociedade, mas da própria humanidade".

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Nas palavras de José Luiz Bueno, nessa repulsa pela religião civil, Himmelfarb se une a Michael Oakeshott (1901-1990): “A possibilidade de a política assumir o papel de produtora de redenção e da moral era uma ideia que, para Oakeshott, bem como para Himmelfarb, configurava-se, simplesmente, como repulsiva”.

A historiadora via no abandono da imaginação moral o principal receituário da decadência da sociedade como um todo, mas via isso com maior volúpia na universidade, nas humanidades como um todo. Como velha historiadora, filha do método histórico tradicional, ela combateu fortemente as tendências neomarxistas de revisionismo do método investigativo do historiador. Revisionismo que iria da romantização do discurso, livre adoção e inclusão de aspectos ideológicos dos autores em biografias e descrições até ao ato de afirmar que a narrativa histórica não corresponde a fatos, e sim à mera interpretação alheia às autoritárias e fascistas ideias de verdade e realidade.

Diz Himmelfarb em "Ao sondar o abismo: pensamentos intempestivos sobre cultura e sociedade": “A história pós-modernista, poderíamos dizer, não reconhece nenhum princípio de realidade, somente o princípio do prazer ― a história ao prazer do historiador”.

Conclusão

Com certeza Himmelfarb adotou a missão de apresentar aos homens de seu tempo, e agora para a posteridade com as suas obras já consagradas, aqueles espólios civilizacionais mantidos e nutridos por meio da tradição e da prática das virtudes sociais inculcadas no imaginário moral dos homens. Mas, nas palavras de Douglas Martin, que assina um texto sobre a vida de Himmelfarb após a sua morte no The New York Times, Gertrude encontrou na construção cultural do Ocidente a sustentação de um modelo de vida que todos na contemporaneidade amam e dizem defender, ao mesmo tempo que o golpeiam a machadadas de invencionices e disparam sobre ele enxames de ideologias perniciosas.

Segundo João Carlos Espada, Himmelfarb via um milagre na herança inglesa e, posteriormente, americana, que tratava da absorção da evolução científica e das várias revoluções e mudanças que a história nos apresentou, sem se entregar às convulsões e aos morticínios que as sociedades progressistas afoitamente realizaram sem pensar duas vezes.

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Himmelfarb, no início de suas investigações, se perguntava quais eram os elementos de maturidade civilizacional que permitiam evoluir sem destruir o passado, que permitiam construir prédios e foguetes sem precisar destruir as catedrais e as carroças. “São as virtudes sociais”, respondia, por fim, a historiadora judia. Valores esses tão bem incorporados pelo iluminismo inglês e tão bem apreendidos pelo seu parceiro americano. Mas, antes de serem ingleses e americanos, eles são a herança da civilização, que pode e deve ser praticada e incorporada pela humanidade como um todo. A virtude não é elitista ou setorista, é antes participativa e gratuita, depende apenas do reconhecimento individual e de sua prática livre.

Himmelfarb, por fim, abraçou para si a ferrenha e pouco louvada missão de destacar na modernidade aqueles parâmetros antigos sem os quais a modernidade sequer existiria ― pelo menos não como a conhecemos. Gertrude deliberadamente, tal como uma mãe amorosa e eloquente, esfrega em nossas faces os erros e os vícios que trazemos para as nossas varandas, o fedor de morte que carregamos em nossas solas e as pirotecnias ideológicas de mundinhos perfeitos que usamos para tentar acalmar nossas culpas e ansiedades.

Himmelfarb foi a mãe acadêmica que contava a moral da história de nossos avós e que, por isso, era vista como pouco importante pelos doutos progressistas que a ombreavam. Ela depreendia as regras das grandes sociedades para mostrar os defeitos da nossa e, por isso, também não cultivou grandes louvores entre aqueles que acreditam que o materialismo histórico e os axiomas sociológicos de nosso tempo são as únicas verdades relativas, promulgadas ― obviamente ― sob uma autoridade tolerante e ex-cathedra. Himmelfarb, por fim, foi uma mulher de convicções antigas, sim, mas a verdade é que ela pouco se importava com isso, pois ter princípios antigos e estar certa ― parecia dizer a cada linha de seus escritos ― não é demérito algum; é antes uma virtude.

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