Nísia Trindade Lima, a recém-empossada nova ministra da saúde, antes foi presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das principais instituições públicas de pesquisa médica do país, por cinco anos — incluindo, portanto, todo o período da pandemia de Covid-19. Apesar da natureza biomédica da entidade, a formação de Nísia é em sociologia (doutorado em 1997, graduação em 1980) e ciência política (mestrado em 1989). Mas foi atuando na própria área de ciências sociais que ela se aproximou da instituição, presidindo entre 1998 e 2005 a Casa Oswaldo Cruz. Atuou também na editora da instituição, entre 2006 e 2011.
Sob a gestão de Nísia Trindade durante a pandemia, a Fiocruz criou um Centro Hospitalar em Manguinhos (bairro do Rio em que é sediada) e chefiou a participação do Brasil no estudo clínico “Solidarity”, da Organização Mundial da Saúde (OMS) — a OMS fez da Fiocruz um laboratório de referência em Covid. Também realizou iniciativas educacionais e de treinamento para os testes do vírus para todos os laboratórios centrais das unidades da federação e até outros países da América Latina.
A Fiocruz foi um dos principais atores do país quanto às vacinas contra Covid-19. Recebeu a tecnologia da farmacêutica AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford (Reino Unido), para produzir sua vacina no Brasil. Em setembro de 2021, foi selecionada pela OMS como centro de vacinas de mRNA. Centenas de milhões de doses foram produzidas pela fundação.
Nem todas as ações da Fiocruz no período sob a presidência de Nísia, no entanto, tiveram uma firme base científica.
Promoção do lockdown, máscaras, vacinação generalizada e passaporte vacinal
A postura institucional da Fiocruz, bem como de muitos dos seus pesquisadores afiliados, foi de promover medidas de confinamento. Em maio de 2020, por exemplo, a fundação instou o estado do Rio de Janeiro a adotar “medidas rígidas de isolamento” consideradas “urgentes” com base em “análises técnico-científicas”. A Fiocruz também clamou pelo fechamento das escolas em março de 2021.
Em março de 2020, a maioria dos especialistas em epidemiologia procurados pela Gazeta do Povo (inclusive da Fiocruz) diziam que o então presidente Jair Bolsonaro deveria fazer confinamento no país todo. Bolsonaro se recusou. Governos locais, no entanto, implementaram medidas de lockdown em graus variáveis, com resultados incertos ou até contraproducentes. Um país fez diferente: a Suécia, que não fechou suas escolas, não fez lockdown e sequer exigiu máscaras obrigatórias, não tendo perdas educacionais no período — em comparação, um estudo sobre o estado de São Paulo descobriu que a evasão escolar aumentou 365% e os alunos aprenderam menos de 30% do conteúdo com o ensino remoto. No fim, a taxa sueca de excesso de mortalidade durante a pandemia foi melhor que a média da Europa.
Pesquisadores mostraram que, entre os estados americanos, não houve correlação entre o esforço empregado nos lockdowns e redução de mortes por Covid-19. Algum elemento dos lockdowns, como diminuição de número de pessoas aglomeradas em locais fechados, pode ter ajudado em algum momento. Mas ainda não há consenso na literatura especializada, o que seria um pré-requisito para recomendar lockdown como política pública.
Em nota de novembro de 2022, a Fiocruz reforçou recomendação de máscaras em locais fechados e “a segunda dose de reforço (...) para todos os maiores de 18 anos”. A recomendação é duplamente falha quanto ao estado atual das evidências científicas. Os estudos mais rigorosos não dão apoio à eficácia das máscaras — o que não significa que apoiam recomendação de não-uso, mas significa que pessoas com comorbidades que pensam que estão protegidas com as máscaras podem estar recebendo uma falsa sensação de segurança. Além disso, uma análise custo-benefício de doses de reforço propôs, com base nas evidências, que é antiético recomendar ou forçar homens jovens a tomar o reforço, pois neles o risco de complicações como a miocardite podem superar os benefícios. Portanto, as recomendações de mais doses das vacinas de mRNA deveriam no mínimo levar em conta idade e sexo.
A Fiocruz também defendeu passaportes vacinais, que ignoram quem adquiriu proteção contra a Covid por infecção prévia: “é fundamental que o Brasil adote o passaporte vacinal como uma política pública de estímulo à vacinação e proteção coletiva, além de reforçar para a população a importância da manutenção de outras medidas, como o uso de máscaras, higienização das mãos e o distanciamento físico e social”, disse a instituição em outubro de 2021. Na época, a Dinamarca estava utilizando passaportes de imunidade que reconheciam a proteção conferida pela infecção prévia. No mesmo mês, a Gazeta do Povo criticou o relatório final da CPI da Covid por ter dito erroneamente que a imunidade natural era instável.
Influência dos americanos
Muitas das políticas recomendadas na pandemia pela Fiocruz sob a batuta de Nísia Trindade lembram as recomendadas por instituições americanas como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e Administração de Alimentos e Drogas (FDA). Para Vinay Prasad, médico e professor de epidemiologia e bioestatística na Universidade da Califórnia em São Francisco, “alguma hora os políticos vão remover os poderes dos CDC e outras agências públicas de saúde” porque essas instituições “abusaram de seus poderes”.
O médico não está sozinho. Ross Douthat, colunista do New York Times, publicou no jornal em abril do ano passado que “a resposta dos EUA à Covid-19 foi ruim não apenas por razões relacionadas a Trump”, mas por causa de problemas na estrutura de saúde pública, inclusive “captura ideológica de instituições supostamente neutras”. Para Ross, os CDC “consistentemente ficaram para trás” em conhecimento científico e acompanhamento da Covid. Ele também estranha o modo politicamente correto (que evidencia a captura ideológica) como as autoridades de saúde trataram a varíola de macaco.
Em publicação própria, Vinay faz uma longa lista de exemplos que, na opinião dele, mostram claramente o abuso de poder. Entre os itens da lista estão fechar praias (como aconteceu em Niterói), desestimular atividades ao ar livre, “mentir” sobre as evidências para a eficácia de máscaras de tecido (“até hoje”), não fazer estudos adequados das máscaras, recomendar máscaras para crianças de dois anos (contra até recomendações da OMS), usar um “Estado policial” para impor lockdown, não deixar as pessoas segurarem a mão de familiares no leito de morte, restringir acesso aos doentes, fechar escolas, enriquecer fabricantes de testes pela recomendação de testes infundados, inventar o distanciamento de dois metros (para um vírus que se transmite pelo ar), baixar os critérios de aprovação para vacinas, “mentir” sobre a miocardite depois do alerta inicial de Israel, “mentir” a respeito da imunidade natural ou nunca aceitá-la, forçar doses de reforço em pessoas que já tiveram Covid apesar da falta de evidências ou razão biológica para tal, continuar o estado de emergência para além da necessidade, continuar exercendo poderes emergenciais quando a emergência já tinha passado, implantar passaportes vacinais, discriminar pessoas com base em status vacinal, demitir profissionais de saúde com imunidade natural que não queriam tomar a vacina (pois não havia evidência que fosse necessária para eles), desestimular as pessoas a fazer check-up de rotina por medo do vírus nos hospitais, gastar bilhões de dólares no Paxlovid sem dados suficientes de ação nas pessoas vacinadas e no Remdesivir (sem evidência de ação contra Covid), inventar políticas de quarentena infundadas para manter as crianças fora da escola, entre outros.
O cientista, que se diz alguém que defendeu por muito tempo o valor da regulação do Estado e de mais verbas para a saúde pública (em seu podcast, chega a dizer que é de “extrema esquerda”), imagina que “se os políticos me perguntarem se devemos destruir os CDC, eu teria que dizer ‘sim, por favor, e deixe-me ajudar’”. “Nunca dá para seguir a ciência”, acrescenta Vinay Prasad, fazendo referência a uma expressão que ficou tão popular nos Estados Unidos quanto “acredite na ciência” ficou no Brasil. “A ciência só pode articular compensações [trade-offs], mas todas as compensações devem ser decididas pelos cidadãos. Cientistas aconselham, cidadãos decidem. Esse foi o mantra ao qual as autoridades de saúde pública não aderiram”.
Resposta do Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde informa que a reportagem publicada na Gazeta do Povo se baseia em notícias que contrariam as orientações e as políticas da Organização Mundial Saúde (OMS).
As ações e o posicionamento da Fiocruz - instituição vinculada ao Ministério da Saúde - em relação ao distanciamento social, máscaras, vacinação e passaporte vacinal seguem orientações sanitárias e tem base científica. A instituição é referência internacional, com 122 anos de história e de contribuição para a saúde pública.
A nova gestão do Ministério da Saúde tem como diretriz a ciência e o diálogo com a comunidade científica e com a sociedade.
Resposta do editor Eli Vieira
O Ministério da Saúde se equivoca ao creditar a "notícias que contrariam as orientações e políticas da OMS" como fonte das informações citadas na reportagem sobre a Fiocruz sob a direção de Nísia Trindade. Na verdade, todas as fontes últimas das informações são publicações científicas. A informação sobre ser antiético recomendar doses de reforço para homens jovens, por exemplo, vem do Journal of Medical Ethics, pertencente à tradicional editora médica britânica BMJ. A informação sobre a falta de evidência de eficácia das máscaras vem de mais de um estudo.
Desde cedo na pandemia, ficou claro que havia uma cisão de opinião especializada na comunidade médica. A opinião que quis apostar em medidas com base científica incerta como o lockdown venceu na maior parte do mundo. Mas os leitores da Gazeta do Povo e os cidadãos brasileiros em geral precisam saber que essa vitória foi política, não científica, e havia uma alternativa mais respeitadora da liberdade e das evidências resumida na Declaração de Great Barrington. Foi essa visão perfeitamente defensável cientificamente que a Fiocruz sob Nísia Trindade escolheu ignorar. E nisso não foi líder, mas seguidora: seguiu o mesmo erro de muitas autoridades americanas.
- Socióloga e pró-aborto: quem é Nísia Trindade, ministra da Saúde no governo Lula
- Retorno da máscara obrigatória está na contramão das melhores evidências científicas
- Exigir doses de reforço contra Covid para estudar em universidades é antiético, conclui análise
- Livro de Randolfe Rodrigues e Humberto Costa sobre CPI da Covid não vai além de retórica política