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Nenhuma figura da república brasileira foi tão influente quanto Getúlio Vargas. E essa é uma má notícia.
Há exatos 70 anos, na manhã de 24 de agosto de 1954, o líder gaúcho disparou contra o próprio peito enquanto vestia um pijama listrado. Ele estava na suíte do Palácio do Catete, então residência do presidente da República.
Àquela altura, aos 71 de idade, Vargas havia passado 18 no comando do país — 15 como ditador e três como presidente eleito em um regime democrático.
Engolido por uma crise de múltiplas origens (dentre as quais um atentado mal-sucedido contra o opositor Carlos Lacerda, dias antes) e vendo-se pressionado a renunciar ao cargo pela segunda vez, o presidente do Brasil havia aceitado licenciar-se do posto horas antes. Mas, em vez de cumprir a promessa, decidiu encerrar a própria vida. Um dos bilhetes de suicídio já estava pronto quando ele participou da última reunião ministerial, na véspera da morte.
A outra carta, mais famosa, é a que fala em "deixar a vida para entrar na história". O texto é condizente com a personalidade de um líder tão eloquente quanto vaidoso. As últimas palavras de Vargas carregam um tom messiânico, típico dos ditadores que se apoiam na força do carisma pessoal.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado.
Carta testamento de Getúlio Vargas
Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos.
Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta.
Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência.
Vargas foi enterrado em São Borja, sua cidade natal, em 26 de agosto. Mas, de certa forma, seu cadáver político continua insepulto.
Desenvolvimento à força
Getúlio Vargas pertence a uma linhagem que influenciou diretamente a política do Brasil desde o começo da República: o castilhismo, uma espécie de adaptação brasileira (e sobretudo gaúcha) do positivismo.
O nome dessa doutrina é uma referência a Júlio de Castilhos, que governou o Rio Grande do Sul com mão de ferro no fim do século 19 e pavimentou o caminho para a emergência de figuras como Vargas. O futuro presidente do Brasil pertencia ao mesmo partido de Castilhos (o PRR). Em 1928, o advogado chegou ao governo (então chamado de "presidência") do Rio Grande do Sul. Antes, ele havia sido deputado estadual, deputado federal e ministro da fazenda no governo de Washington Luís.
Os castilhistas simplesmente não acreditavam que a democracia fosse um regime adequado, e diziam isso em alto e bom som. Para eles, apenas um Estado intervencionista seria capaz de defender o interesse do povo e promover o desenvolvimento econômico. A tolerância com a oposição era perto de zero. No Rio Grande do Sul, a oposição era o Partido Federalista, que defendia uma descentralização maior do poder.
Por causa do DNA castilhista, Getúlio já sabia o que fazer quando chegou ao comando da República na Revolução de 1930: primeiro, concentrar poder nas próprias mãos e reduzir a influência do Legislativo. Depois, forçar mudanças econômicas de cima a baixo com o objetivo de empurrar o Brasil rumo à industrialização. E assim foi.
O Brasil ganhou mais estatais e mais ministérios. Getúlio fundou, dentre outros, a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, a Companhia Vale do Rio Doce, em 1943. Em 1953, viria a Petrobras.
Os getulistas argumentavam que somente um Estado forte seria capaz de tirar o Brasil da pobreza. Mas a associação entre autoritarismo e desenvolvimento econômico é questionável.
"Embora o autoritarismo tenha facilitado certas reformas, muitos argumentam que uma modernização econômica semelhante poderia ter sido alcançada em um regime democrático, embora talvez de forma mais lenta e com mais debate público", afirma Renan Silva, professor de Economia do Ibmec Brasília.
Silva acrescenta que a política industrial de Vargas teve ramificações que chegam aos dias atuais. "O modelo de substituição de importações adotado por Vargas estabeleceu as bases para a política econômica brasileira durante várias décadas", ele explica.
A substituição de importações é uma prática em que o Estado tenta incentivar, artificialmente, a indústria nacional a produzir itens trazidos no exterior. O resultado costuma ser produtos com preços maiores e qualidade menor.
O trabalhismo no poder
Outro resquício do regime varguista é a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), que foi influenciada pela legislação do regime de Benito Mussolini na Itália.
A lista sem fim de obrigações impostas aos empregadores cristalizou, no imaginário da população, a ideia de que Vargas era um defensor dos mais pobres. Mas o peso excessivo das regulações é citado por grande parte dos economistas como um dos entraves ao desenvolvimento do Brasil — ao passo que o Chile, onde o ditador Pinochet comprou as ideias do liberalismo econômico, decolou.
"A legislação trabalhista da época, como a CLT, trouxe avanços importantes para os trabalhadores, mas também engessou o mercado de trabalho. Até hoje, essa rigidez dificulta a criação de novos empregos e impede que as empresas se adaptem às mudanças econômicas", afirma o professor Allan Augusto Gallo, pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.
“Ele era um político de direita que faz um trabalho na área social”, arrisca o professor Wesley Espinosa Santana, do curso de História da Universidade Mackenzie.
Santana afirma que Vargas ajudou a consolidar o Estado brasileiro e forjou uma identidade nacional. “Ele promoveu a consolidação do capitalismo industrial e a modernização da economia, mas ao mesmo tempo manteve as estruturas políticas e até oligárquicas”, diz.
Os rótulos de "esquerda" e "direita" talvez não sejam adequados para a figura do mais longevo ditador brasileiro. Ao mesmo tempo em que adotava ideias intervencionistas na economia, Vargas perseguiu os comunistas (o caso mais emblemático é a extradição de Olga Benario para a Alemanha nazista, onde ela foi executada). O golpe do Estado Novo, em 1937, teve como justificativa o enfrentamento à ameaça comunista.
Em vez de preparar a transição de poder após a Revolução de 1930, Vargas fez o contrário: jogou fora a Constituição de 1891 e instituiu um regime pesado de censura. Os governadores foram destituídos e substituídos por interventores federais.
O desprezo pelas normas republicanas foi uma marca constante do regime varguista.
Sequência de golpes e tentativas de golpe
Vargas chegou ao comando da República com um levante militar que derrubou a República do Café com Leite, o nome que se dava ao arranjo político entre os estados de São Paulo e Minas Gerais, que se alternavam no poder.
É difícil saber a relação entre causa e efeito, mas o fato é que a vida democrática do país continuou turbulenta por décadas depois disso. A própria morte de Getúlio, em 1954, se deu sob a ameaça de um levante militar que o removeria do poder.
É impossível negar a influência de Vargas sobre a identidade nacional. O seu governo sistematizou até mesmo o carnaval (o sistema usado até hoje nos desfiles da Sapucaí foi desenvolvido na época de Vargas, por imposição do regime).
Getúlio virou nome de avenida em Belo Horizonte (e de outras incontáveis ruas e avenidas Brasil afora), de estádio de futebol em Fortaleza, de uma fundação no Rio de Janeiro (a FGV) e de três municípios — Getúlio Vargas (RS), Presidente Vargas (MA) e Presidente Getúlio (SC).
João Goulart, presidente da República entre 1961 e 1964, era pupilo de Getúlio Vargas e entusiasta de suas ideias trabalhistas. O regime militar, influenciado pelo positivismo e pelo castilhismo, tampouco destoou da combinação entre uma política autoritária com uma centralização econômica. Três dos cinco ditadores militares eram gaúchos.
O atual PDT, fundado pelo também gaúcho Leonel Brizola, se diz herdeiro da tradição varguista. A ex-presidente Dilma Rousseff (que entrou na política por obra do mesmo Brizola) e o presidente Lula também prestam tributo ao ditador. O petista costuma emular a retórica de Vargas e se apresenta como um defensor dos pobres perseguido pelas elites econômicas.
O professor Antonio diz que comparações históricas são difíceis, mas que o legado da Era Vargas provavelmente prejudicou o progresso econômico do país. "Temos razões para acreditar que se o Brasil tivesse sido uma democracia com uma economia mais aberta na época de Vargas, é provável que tivéssemos alcançado um desenvolvimento muito maior".
Setenta anos depois, Getúlio Vargas ainda não morreu.