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Massacres

Gilmar Mendes e as escolas de Aracruz: o que a mídia pode aprender na divulgação desses casos

Policial durante operação em favela do Rio de Janeiro
Policial durante operação em favela do Rio de Janeiro (Foto: EFE/ André Coelho)

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A repercussão midiática de casos como os recentes ataques a tiros em duas escolas de Aracruz (ES) abre uma reflexão sobre como a cobertura da imprensa e o posicionamento de autoridades em tragédias do tipo ainda precisam ser aprimorados no Brasil. Estudos internacionais consideram que a divulgação de imagens do assassino e a produção de reportagens de cunho sensacionalista ou com especulações sobre a motivação pode encorajar uma reprodução do comportamento criminoso, de modo que ocorram novos casos em um curto espaço de tempo. Além do contágio, premissas falsas, como uma levantada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que atribuiu a responsabilidade do caso à flexibilização do porte de armas realizada nos últimos anos pela gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), concorrem para a desinformação e não para o aumento da segurança pública.

“A tragédia das escolas de Aracruz revela as graves consequências da crescente cultura de ódio no país, fomentada por políticas infundadas de armamento. Dar armas à população, além de não resolver os problemas de segurança pública, apenas resulta em mais mortes”, afirmou o ministro, em um tuíte na última semana.  

Os argumentos de Mendes, entretanto, se chocam com a realidade: houve redução no número de homicídios na última década, resultado inversamente proporcional ao crescimento no número de armas registradas por civis no Brasil nos últimos anos. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, entre 2019 e junho de 2022, houve um aumento de 591 mil registros de armas de fogo para a categoria caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Além disso, no total, o Brasil possui 2,8 milhões de armas de fogo particulares, um aumento de 39% em relação a 2020, quando havia pouco mais de 2 milhões de armamentos particulares registrados no país. 

O que está em jogo, no entanto, não é defender o direito a porte ou de armamentos à população, mas de manter o debate público na esfera do que é realmente importante para o assunto, sem usar uma tragédia para palanque político.

Evitando ataques 

Quando acontece um ataque em uma escola, por muitos dias se fala exaustivamente sobre o caso na imprensa, às vezes nos mínimos detalhes. Os rostos dos assassinos, no momento em que cometem os crimes, são expostos à exaustão. Entretanto, há pouca ou nenhuma reflexão sobre como evitar novos ataques do tipo. 

Segundo especialistas, existem duas estratégias a serem seguidas diante de ataques em massa: a primeira, que funciona mais como um remédio do que uma solução para o problema, são os protocolos de reação diante de atiradores ativos (active shooters, em inglês), técnicas que podem minimizar tragédias como estas e reduzir o número de mortos. Segundo os integrantes do curso Projeto Policial, ministrado em 2019, delegado Paulo Bilynskyj, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo, e Benedito Barbosa, escritor, analista de segurança pública e especialista em armas e munições, massacres como o de Suzano, registrados naquele ano, podem ser evitados ou ao menos mitigados. 

Eles explicam sobre o protocolo “Run, Hide, Fight” (em português, Corra, Esconda-se, Lute) criado pelo Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS), que orienta a população sobre o que fazer quando há atiradores ativos: se houver oportunidade, fuja o mais rápido que puder do local onde estão os atiradores. Caso não seja possível, esconda-se bem e bloqueie a entrada do local. Como último recurso, lute por sua vida. Além disso, eles destacam que a ação da polícia deve ser imediata, pois, quanto mais tempo demorar a tomada de decisão, mais inocentes podem morrer.  

“O Brasil não tem a cultura de se preparar para o pior. As autoridades preferem trabalhar com a negação, mas não existe proteção na negação. Você tem que pensar nisso, pois uma hora acontece”, ressaltou Bene Barbosa em entrevista ao Portal Metrópoles. Na ocasião, o Brasil já tinha presenciado seis ataques do tipo. Até hoje, mais cinco ataques depois, não há planos concretos sendo traçados pelo poder público contra essas tragédias.

Sem destaque aos assassinos 

A segunda estratégia passa pelo trabalho da própria imprensa ao noticiar casos como este. Ao realizarem este tipo de ataque, atiradores em massa costuma procurar justamente exposição midiática: querem ser retratados como “monstros”, como pessoas cruéis. Ao veicular as imagens da ação dos assassinos, a imprensa não apenas glorifica o momento da carnificina, e revitimiza as vítimas, como incentiva outros jovens, que compartilham dos mesmos sentimentos de ódio, e têm as mesmas intenções assassinas, a realizarem atos semelhantes, na esperança de terem a mesma atenção.

Atiradores em massa não esperam sobreviver após realizarem seus ataques. Desta forma, se contentam em saber que suas memórias continuarão vivas após os atos, e que poderão ser considerados heróis, assim como os assassinos de Columbine. Para impedir que isto aconteça, acadêmicos e policiais americanos escreveram uma carta aberta, em 2017, alertando para que a mídia:

  • Não divulgasse o nome dos perpetuadores; 
  • Não utilizasse as suas fotos; 
  • Parasse de usar nomes, fotos ou imagens de criminosos de casos anteriores; 
  • Relatasse tudo o mais sobre esses crimes com o máximo de detalhes que desejar. 

Segundo artigo apresentado na convenção anual da Associação Americana de Psicologia, em 2016, pessoas que cometem tiroteios em massa nos Estados Unidos tendem a compartilhar três principais características: depressão desenfreada, isolamento social e narcisismo patológico. Tendo isso em mente, os autores concluíram que estes crimes aumentaram em relação à cobertura da grande mídia sobre eles, além da propagação nas redes sociais, que tenderiam a glorificar os atiradores e menosprezar as vítimas.

Assim, a recomendação principal é: não dar destaque aos assassinos. Não divulgar seus nomes ou rostos, principalmente no momento em que cometem os ataques, a não ser em caso de foragidos, para facilitar o trabalho da polícia. A prática, embora vá na contramão da função da imprensa de tornar toda informação pública, evita que os assassinos se tornem celebridades.

De acordo com Jennifer B. Johnston, professora associada de psicologia da Western New Mexico University, coautora do estudo, uma característica transversal entre muitos perfis de atiradores em massa é o desejo de fama. Essa busca pela fama entre os atiradores em massa disparou desde meados da década de 1990, em correspondência com o surgimento da ampla cobertura de noticiosa 24 horas por dia nos programas a cabo e a ascensão da internet, durante o mesmo período.

Como bem observa um artigo do escritor americano Elliot Ackerman, ex-líder da equipe de operações especiais do Corpo de Fuzileiros Navais, o próximo atirador em massa está, certamente, assistindo à cobertura feita pela imprensa dos massacres que acontecem neste momento. No texto, Ackerman destaca um estudo realizado em 2015 por pesquisadores da Arizona State University e da Northeastern Illinois University. Analisando dados de contágio em assassinatos e tiroteios em massa, eles descobriram um aumento mensurável na probabilidade de um segundo tiroteio em massa 13 dias após um tiroteio em massa inicial. Além disso, para cada cinco tiroteios em escolas, ocorreria um sexto que não teria ocorrido de outra forma. Este contágio teria sido impulsionado tanto pelas redes sociais quanto pela imprensa tradicional.

Outro erro cometido pela mídia é a tentativa de especular os motivos pelos quais os atiradores cometeram os crimes. Ainda que esta especulação seja um caminho natural de uma das fases do luto, estabelecidas pela psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004) em seu livro On Grief and Grieving [Sobre luto e aflição, em tradução livre (Psychology Press, 2005)], este deve ser particular à população. A imprensa deve evitar divulgar as motivações dos assassinos, pois dessa forma atua amplificando os seus “manifestos”, fazendo com que suas ações sejam justificadas diante de potenciais copiadores dos ataques.

Não ao sensacionalismo 

O caso de Aracruz ganhou grande repercussão nas redes sociais, e não demorou para que diversas teorias começassem a surgir sobre o caso. Uma das narrativas mais disseminadas foi a de que o pai do atirador teria tido algum tipo de influência no ataque. Insinuou-se que o policial teria tentado acobertar o crime, ensinado o filho a atirar, levado-o para “manifestações antidemocráticas” e incentivado o adolescente a seguir ideais nazistas.

A tese foi reforçada por alguns veículos de comunicação até mesmo depois da entrevista coletiva feita na última segunda-feira (28), na sede da Sesp, em Vitória, onde o delegado responsável pelo caso, André Jaretta, afirmou que até o momento não havia indícios da participação do pai no delito. Mas a onda de desinformação gerou consequências à família do infrator: o pai teve seu número de telefone vazado e vem recebendo diversas ameaças que, segundo ele, são resultado das notícias falsas que estão sendo divulgadas a respeito do policial.

No mesmo dia do atentado, na cidade de Colatina, também localizada no Espírito Santo, um adolescente de 15 anos com transtornos psíquicos atacou quatro colegas de turma com um estilete. Pelo caso também ter acontecido em ambiente escolar, alguns jornais afirmaram que o ocorrido teria sido o terceiro atentado no estado naquele dia, paralelo estabelecido antes da Sesp confirmar que a ocorrência não tinha relação com o atentado em Aracruz.

Quando decidiram atualizar as matérias com a nota da Sesp, já era tarde demais. Nas redes sociais, inúmeros usuários se mostraram assustados com a notícia, acreditaram no paralelo feito pela mídia e estabeleceram possíveis “culpados”. Tal falta de cuidado dos jornalistas durante a cobertura dos dois casos contribuiu para que um sentimento de pânico fosse instaurado, não só na população capixaba, mas também em pessoas de outros estados, devido à repercussão nacional dos fatos. Uma cobertura jornalística imprudente pode, em última instância, acarretar que outras pessoas repliquem os crimes que estão sendo noticiados.

Efeito Werther 

Para os casos de suicídio, há rígidos protocolos e diversos estudos sobre como devem ser noticiados, de forma a evitar que ocorra o chamado “Efeito Werther”, situação em que uma pessoa comete suicídio por influência de uma celebridade ou produto midiático. Já os tiroteios em massa não recebem a mesma atenção, sobretudo no Brasil. Nos Estados Unidos, onde a prática é mais comum, já há intenso debate de como esta divulgação deve ser feita de forma correta. No Brasil, entretanto, mesmo que este tipo de massacre não seja novidade, ainda há escassez de reflexões sobre a responsabilização da mídia.

Em 1774, Johann Wolfgang Goethe publicou a obra “Os sofrimentos do jovem Werther”, que narrava a história de um jovem que tirou a própria vida após se apaixonar profundamente por uma mulher que iria se casar com outro. No ano da publicação, uma onda de suicídios associada à obra foi presenciada na Europa, causando o “efeito Werther”.

Na atualidade, um dos exemplos do "efeito Werther" foi observado após o lançamento de uma série da Netflix, "13 Reasons Why", que foi adicionada à plataforma em 2017. Em 2019, um estudo publicado pela JAMA Psychiatry apontou um aumento no número de suicídios entre jovens de 10 a 19 anos em um período de três meses posteriores ao lançamento da série que, até o ano de 2019, mostrava uma cena detalhada do suicídio da personagem principal. A sequência foi removida pela plataforma após uma onda de críticas.

Os resultados destrutivos do "Efeito Werther" fizeram com que a imprensa de vários países adotasse um procedimento específico para lidar com notícias de suicídio. E a estratégia, aparentemente, tem se mostrado eficaz: segundo a Organização Mundial da Saúde, no mundo, a taxa de suicídio caiu 36% entre 2000 e 2019. Apesar de não fazer citação direta ao ato, o artigo 11 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros veta a “divulgação de informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em coberturas de crimes e acidentes”.

Tal recomendação parece ser seguida à risca pelos grandes meios de comunicação quando se trata de suicídios. Entretanto, o artigo ainda carece de atenção em outras ocasiões, como nos casos de atiradores em massa.

Casos emblemáticos 

Em 1999, nos Estados Unidos, dois adolescentes cometeram um atentado à mão armada na "Columbine High School", no estado de Colorado, deixando 13 mortos e 24 feridos. Após o homicídio em massa, os assassinos cometeram suicídio. Desde o ocorrido, o “Massacre de Columbine” é usado como base comparativa para ataques do tipo.

No Brasil, os casos mais notáveis são o “Massacre de Realengo”, ocorrido em 2011, que deixou 13 mortos, incluindo o assassino, e 22 feridos, e o "Massacre de Suzano", que aconteceu em 2019, resultando em dez mortos, incluindo os dois assassinos, mais 11 feridos. Até então, o país já tinha presenciado dez registros de massacres, porém, no último dia 25, a pequena cidade litorânea de Aracruz (com 103 mil habitantes), no Espírito Santo, foi palco de dois atentados que aterrorizaram um estado que nunca teve registros de casos parecidos.

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