A despeito da obscenidade, ou justamente por causa dela, o tuíte do presidente Jair Bolsonaro mostrando dois homens sobre um ponto de ônibus celebrando o Carnaval de uma forma muito própria, por assim dizer, não sai do noticiário e, por que não, do imaginário das pessoas. Há quem esteja pedindo o impeachment do presidente por ter compartilhado o vídeo. É falta de decoro, é um desrespeito para com a liturgia do cargo, o que quer que signifique isso. Por outro, há quem esteja pedindo a prisão dos foliões exaltados e o fim do Carnaval. É um desrespeito, um crime, uma pouca-vergonha!
Eu só consigo pensar no golden shower – que, a essa altura, você que não sabia deve estar sabendo que (tirem as crianças da sala!) é o termo em inglês para a chuva dourada, prática de um parceiro urinar no outro durante o ato sexual ou como uma forma de estímulo sexual. Penso no golden shower primeiramente como uma questão sanitária, por motivos que me parecem óbvios e, por favor, não me obrigue a explicar, senão vomito. Mas também penso no golden shower público dos dois rapazes do vídeo como uma expressão muito clara da perversidade que permeia o cotidiano.
Não uso o termo perversidade à toa. O ato de urinar (ou defecar) no parceiro ou de receber um jato de urina alheio em busca de prazer sexual é considerado uma perversão, um desvio sexual. Ou era. Com o tempo, a amoralidade científica passou a buscar formas de normalizar tudo o que duas pessoas fazem entre quatro paredes e, assim como Plutão deixou de ser um planeta graças a uma decisão de notáveis, a prática da chuva dourada e de sua irmã ainda mais perversa, a coprofilia, passou a ser considerada tão-somente parafilia.
Condição animal e ódio
Independentemente do que diz, ou melhor, manda dizer a Tirania dos Especialistas (apud Martim Vasques da Cunha), o que os dois homens faziam sobre o ponto de ônibus no vídeo compartilhado pelo Exmo. é, sim, perversão. Não apenas no sentido clássico de ser algo que foge à normalidade; é uma perversão porque, uma vez exposta ao público e disseminada pelas redes sociais, a chuva dourada dos meninos lá representa a submissão quase completa do ser humano a seus instintos e sua redução à condição de animal.
Como pode, pergunto retoricamente, alguém se sujeitar assim tão desavergonhadamente aos excrementos de outra pessoa? Como alguém pode ver nisso uma forma de existir, ainda que momentaneamente, ainda que num momento de euforia, ainda que aquela água que o menino tem em mãos talvez estivesse batizada por um êxtase químico?
Mas o Grande Golden Shower de 2019 não se resume a perguntas retóricas. Não! Ele explica – e muito – certo auto-ódio que guia toda uma geração. Afinal, uma pessoa escrava de suas necessidades sexuais-urinárias obviamente não nutre por si ou por seus semelhantes nenhuma estima. Imagino que no dia seguinte os moços que aparecem no vídeo tenham se olhado no espelho com desprezo, com raiva, até com ódio mesmo, sentimentos que certamente contagiam a visão que ele e os seus têm do mundo e das outras pessoas que o habitam. Talvez isso explique até porque essa mesma geração, em outra perversidade carnavalesca, pretendeu reescrever, ou melhor, destruir a história, transformando os heróis do passado em vilões do presente e do futuro.
Até porque é impossível ao observador admirar em alguém a virtude que lhe falta.
Ah, mas isso é moralismo! – contra-argumentará um leitor mais exaltado. É mesmo. Não moralismo no sentido caricato do termo, aquele moralismo hipócrita do qual, ao longo de todo o século XX, aprendemos a rir e até a combater. É moralismo no sentido de ser uma exaltação da boa moral – palavrinha que nasceu de um “erro” de tradução dos romanos e que se confunde com a ética grega. Ou seja, é moralismo no sentido de esperar algo mais nobre, mais elevado dos meus semelhantes.
Escrevi ontem que gostaria muito de entrevistar as pessoas que aparecem no vídeo agora internacionalmente famoso. Para perguntar o que elas pensam sobre a vida e a morte, sobre o prazer e a dor (no sentido metafísico, não sexual, dos termos), sobre a permanência e a impermanência, sobre o certo e o errado. Mas será que pensam? Será que em algum momento já pararam para pensar? Ou será que passam os dias numa busca animalesca pelo prazer o mais fugaz possível, na esperança tola de que ele seja duradouro, assim como faz um golden retriever diante de um prato cheio de ração?
A mim, pois, não me causou indignação a postagem do Mandatário da Nação nem tampouco a reação escandalizada e provavelmente hipócrita dos que fingiam não saber o que é golden shower. Fiquei espantando, isso sim, ao ver esfregada na minha cara uma realidade que me esforço para ignorar: a de que há homens (e mulheres! e mulheres!) que passarão toda uma vida se banhando em urina na esperança de que isso lhes cause uma cosquinha capaz de conferir algum sentindo às suas pobres existências.