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Golpe de Estado é um ato realizado por algum órgão do próprio Estado, geralmente de surpresa e de forma violenta, para reforçar o próprio poder, em violação das regras constitucionais. A descrição é do filósofo italiano Norberto Bobbio, que não acreditava na possibilidade de um golpe que não usasse, ao menos, ameaça implícita de violência, dada pelo controle de grupos militares por parte dos executores.
No entanto, essa visão é desafiada pelo jurista e cientista político americano Alec Stone Sweet. Criador do termo juridical coup d’État – que, em inglês, pode significar “golpe de Estado jurídico” ou “golpe de Estado judicial” –, ele argumenta pela tese de que um golpe possa ocorrer pacificamente, feito por um tribunal.
Para chegar a essa conclusão, Sweet se apoia na teoria positivista do direito. Na visão de juristas dessa corrente, qualquer comando só é válido quando emana de alguém com autoridade para proferi-lo; por exemplo, um presidente ou um juiz. Essa autoridade, por sua vez, só existe porque foi, ela própria, estabelecida por uma norma anterior, como a constituição, que estabeleceu os limites em que poderia ser validamente exercida. No caso dos juízes, por exemplo, a constituição normalmente só lhes dá o poder de interpretar as normas, isto é, esclarecer o que elas já dizem; e não de criar novas normas do zero, função geralmente reservada ao Legislativo.
Já a constituição – considerada manifestação de vontade irretratável dos que a redigiram em determinado momento histórico, a quem Sweet chama de “fundadores” – é considerada suprema. Seu fundamento de validade é, para o filósofo Hans Kelsen, a simples premissa axiomática de que a constituição deve ser cumprida – sendo esta premissa chamada de “Norma Fundamental”.
Para Kelsen, o golpe de Estado consiste justamente na ruptura de toda essa cadeia, porque a premissa fundamental até então compartilhada, de que as normas devem ser cumpridas, é abandonada. O poder é tomado por alguém que não o detinha (ou detinha menos dele), fora das hipóteses que a constituição previa; e, como não existe nenhuma norma superior prevendo que esse alguém teria a autoridade que agora possui, conclui-se que ele próprio se torna a nova fonte original de autoridade, substituindo-se aos antigos fundadores da constituição. O que surge daí é uma nova ordem jurídica, embora, na superfície, possa parecer similar à anterior.
O golpe do Judiciário
Embora a ciência política descreva esse fenômeno como ocorrendo principalmente por levantes armados, Sweet aponta que, em termos de resultado prático, nada impede que os eventos descritos ocorram pela ação de um tribunal.
Basta que uma corte constitucional use o poder que lhe foi conferido pelos fundadores (a palavra final na interpretação da constituição) para declarar que o texto constitucional diz algo que, na realidade, não pode ser razoavelmente deduzido do texto. Nesse caso, o que é apresentado como sendo uma mera interpretação das normas seria, na realidade, uma verdadeira “revisão da Norma Fundamental” – identicamente ao que aconteceria num golpe de Estado tradicional, principalmente se implicar transferência de poder a determinados órgãos do Estado, preenchendo este aspecto da definição de Bobbio.
Sweet alerta contra exageros: ele reconhece que o Judiciário tem um papel criativo legítimo, quando esclarece o sentido concreto de normas vagas ou faz analogia com normas preexistentes para ditar as regras a serem aplicadas em situações não previstas pelo legislador. Para Sweet, o teste que diferencia a mera “interpretação” de uma verdadeira “revisão da Norma Fundamental” é quando a regra enunciada não só não foi pretendida pelos fundadores, como teria a oposição deles, se a proposta lhes tivesse sido apresentada.
O golpe na União Europeia
Sweet cita exemplos na França, na Alemanha e na União Europeia para enunciar uma metanarrativa comum do fenômeno. Em geral, um tribunal que já tinha atribuição prévia de aplicar certas normas decide que outras normas, novas – às vezes já constantes de algum texto, às vezes criadas pelo próprio tribunal, sob alegação de serem deduções lógicas das normas anteriores – também devem ser aplicadas, e consideradas superiores às outras regras, prevalecendo sobre elas. Com isso, o tribunal frequentemente assume mais poderes do que antes, passando a poder invalidar, com as novas regras, os atos de outros entes.
No caso da União Europeia, Sweet afirma que os Estados europeus, ao assinarem o Tratado de Roma, nunca registraram qualquer previsão de que aquele tratado seria diretamente aplicável pelos seus tribunais, muito menos que ele seria considerado superior ao direito interno dos países. No entanto, o Tribunal Europeu de Justiça teria estabelecido uma jurisprudência própria afirmando a supremacia do tratado, sujeito a sua jurisdição.
Segundo Sweet, esse tipo de entendimento tem resultado não só em aumento do poder do Tribunal Europeu de Justiça (que ele diz estar “constantemente avançando em assuntos antes considerados imunes ao seu alcance”), como também no aumento do poder dos Judiciários nacionais nos países-membros. Isso porque, segundo Sweet, em muitos casos, os juízes passaram a assumir o poder de invalidar leis nacionais à luz do direito europeu, mesmo em países cuja constituição antes proibia a revisão judicial das leis.
Sweet afirma que esse sistema, que vige na União Europeia há quarenta anos, é “inteiramente um produto de golpe de Estado judicial”.
Presidentes que dão golpe pelo Judiciário
Embora Sweet só cogite o uso de golpe de Estado judicial para aumentar os poderes do próprio Judiciário, o conceito já é citado para afirmar uma estratégia de expansão de outros poderes. O pesquisador Franz Xavier Barrios Suvelza afirma que o Tribunal Constitucional da Bolívia praticou “golpe de Estado judicial” em 2017 ao permitir que o então presidente Evo Morales concorresse a um quarto mandato consecutivo, apesar da proibição no texto da Constituição. O argumento do tribunal foi que a norma constitucional violava convenções internacionais de direitos humanos.
A caracterização de eventuais “golpes de Estado judiciais” é mais controversa e menos nítida do que a de golpes de Estado tradicionais, não só por não envolverem violência, como também porque, segundo Sweet, os juízes envolvidos sempre fazem grande esforço para “evitar a acusação de que estejam fundamentalmente revisando” a constituição nacional.
Sweet cita também que, embora possa haver inicialmente controvérsias na comunidade jurídica, “grande quantidade de atividade doutrinária é dedicada a defender o golpe de Estado”; se não por argumentos jurídicos, então sob fundamentos utilitários, citando benefícios para a sociedade. Com o passar do tempo, diz Sweet, a doutrina majoritária sempre acaba se resignando ao fato consumado, e o que era visto inicialmente como violação das normas acaba sendo assumido como a nova norma legítima – identicamente ao que ocorre com um golpe de Estado tradicional.
Hugo Freitas é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.