O crescimento de pautas identitárias incentiva a criação de movimentos que reivindicam o fim de opressões no mínimo questionáveis. Uma delas é a chamada gordofobia, suposta opressão e preconceito contra gordos. Movimentos de combate à gordofobia ganham cada vez mais destaque e ocupam espaço na indústria da moda, no meio artístico e na publicidade.
A própria existência da pauta de gordofobia no ativismo pode ser atribuída a uma tendência de criação de fobias e, consequentemente, de pautas identitárias até então inexistentes. “Uma mudança linguística furtiva na maneira como falamos sobre preconceito transformou ismos em fobias nas últimas décadas”, diz a palestrante Sarah Ditum.
“O movimento de aceitação dos gordos e os ativistas mais radicais, que se organizam principalmente por meio de mídias sociais e blogs, tratam a obesidade como identidade. Para eles, ser gordo é algo a ser comemorado, não denegrido”, afirma Sarah. “Quão ridículo, quão ilusório é sugerir que qualquer problema com a gordura é irracional e não porque ser gordo é objetivamente ruim?”, pergunta.
Vale lembrar que a obesidade vem acompanhada de inúmeros riscos à saúde: hipertensão, doenças cardíacas e diabetes são os fatores mais comuns. Além disso, o excesso de peso sobrecarrega as articulações e pode causar dores ou mesmo problemas maiores, como lesões nos joelhos, principalmente a condromalácia patelar. Recentemente, um estudo publicado pela Associação Canadense de Radiologistas estabeleceu uma relação entre a gordura subcutânea do joelho e a presença de condromalácia patelar.
Movimentos sociais e questões de saúde
A chamada gordofobia é uma pauta em crescimento nos movimentos sociais, mas se confunde com uma questão de saúde. A médica Rebeca Bedone, especialista em Endocrinologia e Metabologia, aponta para a necessidade de diferenciar o ativismo social da questão de saúde pública que é a obesidade.
“Um garoto de 13 anos foi levado à consulta pelos pais porque estava obeso. Não bastasse os 25kg acima do peso normal para sua idade e altura, ele me disse, com toda assertividade da adolescência, algo justificado pelo que leu nas redes sociais: ‘não tenho que emagrecer, as pessoas é que precisam respeitar e aceitar o meu corpo’”, contou Bedone em entrevista recente.
Segundo ela, é necessário que os pacientes entendam que obesidade é uma doença que diminui a qualidade de vida e aumenta o número de mortes. Por isso, o excesso de peso deve ser tratado, não elogiado.
“Assim como meu paciente não queria reconhecer a obesidade (talvez para combater o preconceito que ele enfrenta), muitas pessoas têm defendido o excesso de gordura corporal como se fosse um 'estilo de vida'. Falar que obesidade é doença não é discriminar: é conscientizar”, afirma.
Direitos da pessoa gorda
A judicialização parece ser o caminho típico para a chamada gordofobia. Para ajudar as pessoas gordas a entrar com ações contra ofensas, a ativista Rayane Souza, formada em Direito e pós-graduanda em Direito Eletrônico, criou o “Guia Express Direitos da Pessoa Gorda”.
O guia apresenta mecanismos de defesa e orientações jurídicas para diversas situações cotidianas que os ativistas consideram gordofobia. Em caso de piadas no ambiente de trabalho, o guia aconselha a reunir provas, denunciar ao RH da empresa e até mesmo levar a denúncia a instâncias superiores.
O documento sugere o caminho da judicialização inclusive para situações médicas em que o profissional faz comentário “invasivo” sobre o peso do paciente. O procedimento indicado no guia é gravar a consulta e denuncia o profissional ao Conselho Regional de Medicina (CRM) de cada estado, o que pode fazer com que o médico seja submetido a processo ético profissional pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Neste caso, a decisão do CFM pode gerar processo cível com compensação por danos morais para o paciente obeso.
Em 2015, a professora Thaís Oliveira ganhou destaque por protagonizar um episódio de suposta gordofobia que acabou em processo judicial e lhe rendeu um contrato de modelo plus size. Na ocasião, Thaís postou uma foto de biquini com a legenda “sou gorda e nesse verão vou usar biquíni, sim, e, se reclamar, vai ter topless”. A postagem, que era pública, foi compartilhada por um rapaz com o aviso “Não queria postar, mas tive tipo uma obrigação. Meninas, não façam isso, por favor!”.
“Decidi processá-lo para que o caso possa servir de exemplo”, afirmou Thaís na época. Ela divulgou o caso nas redes sociais e organizou um protesto em forma de ensaio fotográfico em uma praia da zona sul do Rio de Janeiro.
Para Thaís, o episódio de suposta gordofobia chamou a atenção para os profissionais da moda plus size. Ela foi chamada para participar de editoriais, desfiles, concursos de beleza e diversos títulos, incluindo o de “A Mais Bela Gordinha do Brasil”. Para o rapaz que compartilhou a foto, o episódio acabou em processo. Ele foi condenado a pagar cestas básicas a uma organização de assistência social.
Em julho deste ano, uma usuária do aplicativo de viagens 99, Joyce Santos, de Salvador (BA), alegou ter sofrido gordofobia por parte de um motorista. Segundo ela, o motorista se recusou a fazer sua viagem por ela ser gorda.
Joyce contou que chamou o motorista quando o carro se aproximou, mas ele não parou. “Vai andando, querida, para emagrecer”, disse o motorista na plataforma da empresa. O motorista foi bloqueado no aplicativo e a empresa afirmou estar disponível para colaborar com a investigação policial.
O caso foi pauta de mais um protesto do movimento “Vai Ter Gorda”. As mulheres se reuniram em Salvador para tirar fotos na praia, fazer um piquenique e conversar. Esta foi a sétima edição do movimento que já é nacional, com participação de representantes de Alagoas, Brasília, Minas Gerais, Goiás e São Paulo.
Além de orientar na judicialização, um dos objetivos do guia é ampliar o uso do termo “gordofobia” para que ele seja considerada nomenclatura oficial e para que a gordofobia seja reconhecida como um problema social. “É de grande importância trazer o entendimento de que o termo ‘gordofobia’ precisa ganhar relevância na esfera jurídica”, diz Rayane.
Movimento Vai Ter Gorda
Desde o episódio de Thaís Oliveira, as mulheres gordas ganharam cada vez mais espaço na moda e na mídia. O episódio deu origem ao Movimento Vai Ter Gorda, que teve edições em praias de Santos (SP), Florianópolis (SC) e Salvador (BA), onde teve a sua quinta edição em janeiro deste ano.
“O Movimento Vai Ter Gorda atua na luta contra a gordofobia; promove ações de visibilidade e valorização dos diferentes padrões estéticos e humanos; e batalha pela construção de políticas públicas visando a inclusão das pessoas gordas na sociedade livre de preconceitos e estigmas”, diz a página do movimento.
Em 2017, a escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi coroou a atriz Mariana Xavier como madrinha da ala plus size da escola de samba. A ala, chamada Plusamba, é um grupo composto apenas por mulheres gordas.
Neste ano, Preta Gil e a youtuber Thais Carla participaram juntas da campanha de uma marca de produtos de beleza. As celebridades plus size publicaram fotos de biquíni em um barco no México e chamaram atenção para o “empoderamento” da cena. “Vai ter duas gordas de biquíni, felizes e embaixadoras Salon Brasil com muito orgulho no seu feed, sim”, legendou Preta.
Políticas públicas
O movimento pelo empoderamento gordo tem contradições. Os organizadores e participantes pedem que pessoas gordas tenham uma posição social melhor na indústria da moda até na saúde, mas também reivindicam políticas públicas de prevenção à obesidade.
“Precisamos de um programa voltado para atender a pessoa gorda. Não só para a obesidade, mas para ter uma política de prevenção desde o nascimento, quando a família já tem tendências a ter obesidade”, declarou Adriana Santos, produtora do “Vai Ter Gorda na Praia”, edição Salvador, em 2016.
Por outro lado, o movimento se apoia nos termos "gordo" e "gorda". Os participantes dizem não ter problemas com a palavra e preferem essa a outras mais sutis.
Com a tendência de empoderamento gordo, surgem iniciativas para promover a população gorda - e que, claro, buscam dinheiro para isso. Em 2018, uma campanha de arrecadação online buscou arrecadar R$ 20 mil sob a justificativa de “levar autoestima e valorização” a mulheres gordas.
O chamado “Projeto vai ter gorda sim” buscou arrecadar dinheiro para viagens e despesas de hospedagem e alimentação para a organizadora, que viajaria por todo o Brasil promovendo bate-papos entre mulheres gordas. “Preciso do apoio de quem gosta e apoia o movimento, conto com sua colaboração de qualquer quantia”, diz o pedido na página de arrecadação do projeto.
No ar entre 04 de janeiro de 2018 e 04 de outubro do mesmo ano, a campanha não chegou nem perto de atingir o objetivo estipulado.