Ouça este conteúdo
Em janeiro de 2021, o governo do Reino Unido disse que membros de sua infame “77ª Brigada não realizam, e nunca realizaram, qualquer tipo de ação contra cidadãos britânicos.” [A brigada, criada em 2015, é dedicada a operações psicológicas e seu nome é homenagem a uma brigada indiana que usou métodos heterodoxos contra o Japão na Birmânia durante a II Guerra Mundial.]
Mas realizaram. E, portanto, mentiram.
Em 2022, a ONG para a qual trabalho, Big Brother Watch, começou a investigar os esforços do governo do Reino Unido para monitorar postagens em redes sociais e exigir sua censura pelas plataformas. Nos meses seguintes, fizemos dezenas de pedidos com base em lei de acesso à informação, incluindo pedidos de informações sobre a 77ª Brigada.
Em outras palavras, descobrimos que o governo do Reino Unido, em nome do combate à desinformação, espalhou desinformação.
A unidade do Exército não estava apenas envolvida em “combater a desinformação”, mas liderou o esforço. A 77ª Brigada monitorou as plataformas de rede social ao longo de 2020 e trabalhou ao lado de soldados da Força Aérea Real (RAF, na sigla em inglês).
O Ministério da Defesa britânico (MoD) não respondeu aos pedidos de comentário para esta reportagem.
O MoD criou a 77ª Brigada em 2015 para servir como sua unidade de “guerra de informação” ou “operações psicológicas”. A 77ª Brigada consistiria de “uma nova geração de ‘guerreiros do Facebook’ que travarão campanhas complexas e encobertas de informação e subversão”, relatou o Financial Times em 2015.
Quando o Exército criou a 77ª Brigada, seus líderes disseram aos membros do Parlamento britânico (MPs) que seu trabalho era “construir estabilidade no exterior”, não espionar cidadãos em casa.
Como o exército do Reino Unido driblou a proibição de espionar cidadãos britânicos? Um denunciante da 77ª Brigada, que falou com a Big Brother Watch sob condição de anonimato, disse que a evasão da proibição foi feita fingindo que os cidadãos britânicos que os soldados do Reino Unido estavam espionando poderiam, talvez, ser estrangeiros.
“Para contornar os claros problemas legais com uma unidade militar monitorando a dissidência doméstica”, o denunciante nos disse, “a opinião predominante era que, a menos que um perfil declarasse explicitamente seu nome real e nacionalidade, o que é, claro, raríssimo, ele poderia ser agente estrangeiro e assim era alvo legítimo para sinalizar.”
Por “sinalizar”, o denunciante se referia ao processo pelo qual funcionários do governo do Reino Unido enviavam conteúdo para empresas de rede social que achavam que deveria ser censurado.
Assim como nos Estados Unidos, os funcionários do governo do Reino Unido insistem que a sinalização de conteúdo de mídia social por oficiais era legal porque os oficiais estavam apenas fazendo sugestões, não exigindo censura.
Mas o conselho de supervisão do Facebook disse em 2022 que as demandas do governo por censura são difíceis de ignorar.
E durante um debate na Câmara dos Deputados britânica em 2022 sobre o orwelliano “Projeto de lei da segurança online”, a Secretária de Cultura Nadine Dorries disse aos MPs que a Unidade Contra a Desinformação (CDU) estava em contato “diário” com as empresas de rede social como parte do trabalho para remover conteúdo.
Existem agora muitos casos em que empresas de mídia social disseram que só censuraram porque o governo dos EUA pediu. Na segunda semana de maio, um congressista dos EUA revelou que, em 16 de julho de 2021, o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, enviou uma mensagem aos seus colegas e observou que “a Casa Branca [do governo Biden] nos pressionou para censurar a teoria do vazamento de laboratório…”
Agora, documentos exclusivos obtidos pela Big Brother Watch e revelados pela primeira vez aqui mostram que funcionários do governo do Reino Unido rotularam como “malinformação” uma reportagem factual da jornalista do jornal Guardian, Jennifer Rankin, que noticiava que o Reino Unido não participaria do esquema de aquisição de equipamentos de proteção individual da União Europeia.
E novas atas obtidas do “Conselho da Desinformação” do governo do Reino Unido mostram que altos funcionários do país consideraram integrar funcionários públicos em empresas de rede social. Essa também era a intenção do “Conselho de Governança da Desinformação” (nome quase idêntico) do governo Biden dentro do Departamento de Segurança Interna?
O que exatamente aconteceu no Reino Unido? Por que o exército do Reino Unido violou sua promessa de não espionar o povo britânico?
Censura Secreta de Sua Majestade
Em seu artigo de 2015 sobre a 77ª Brigada, o Financial Times relatou que os soldados usariam “uma gama de atividades para fazer os adversários fazerem o que eles querem que façam — uma técnica conhecida como controle reflexivo. Entre suas armas estarão campanhas de mídia social no Twitter e Facebook, espalhando desinformação ou expondo verdades em zonas de guerra, operações de ‘bandeira falsa’ — que são projetadas para enganar as pessoas fazendo-as pensar que foram realizados por outra pessoa — e coleta de inteligência.”
Os oficiais do Reino Unido disseram que a unidade foi inspirada na guerra de informação na Ucrânia. “As atividades encobertas dos ‘pequenos homens verdes’ da Rússia na Crimeia e no leste da Ucrânia, bem como a extensa campanha de guerra cibernética e de informação do Kremlin no país, geraram preocupação em todos os comandos militares da OTAN sobre como combater tais táticas.”
A partir de 2020, uma rede interligada de “equipes de combate à desinformação” monitorou e procurou censurar opiniões desfavorecidas. Os nomes das várias agências governamentais do Reino Unido encarregadas da censura são confusos, anódinos e esquecíveis — talvez intencionalmente.
O principal grupo de censura do governo do Reino Unido é chamado de Equipe de Segurança Nacional de Informações Online (NSOIT). Mas o governo só começou a chamá-lo assim em 2023, após três anos da Big Brother Watch e da imprensa britânica aumentando a conscientização sobre seu nome anterior: Unidade Contra a Desinformação, ou CDU.
A NSOIT descreve sua missão como combater “narrativas desinformativas e de Estados hostis” e compreender “tentativas de manipular artificialmente o ambiente informacional”.
Outra organização com nome de sopa de letrinhas, o Departamento de Ciência, Inovação e Tecnologia do Reino Unido (DSIT), abriga a NSOIT. Antes de uma reorganização do governo, fazia parte do Departamento de Digital, Cultura, Mídia e Esporte (DCMS).
Outras agências governamentais monitoraram as redes sociais em busca de crimepensamentos e exigiram censura.
Em 2018, o Gabinete, que fornece apoio crítico ao primeiro-ministro para o “funcionamento eficaz do governo” e, portanto, serve como a “sede corporativa do governo”, lançou uma nova agência chamada “Unidade de Resposta Rápida (RRU)”. Sua missão? Fornecer “capacidade de mídia social para ajudar a apoiar a recuperação de um debate público baseado em fatos”.
Seu trabalho inicial incluiu combater alegações de que Londres tinha uma taxa de homicídio maior que Nova York e promover informações aprovadas pelo governo sobre os ataques aéreos do Reino Unido na Síria em 2018.
A Covid aumentou significativamente a espionagem do governo e as exigências por censura. Unidades militares do Reino Unido coletaram grandes quantidades de informações sobre cidadãos inocentes. Em 28 de março de 2020, a 77ª Brigada rotulou como “malinformação” tweets de cidadãos comuns criticando empresas por não pagarem seus funcionários durante o lockdown.
Nos dois anos seguintes, o governo do Reino Unido gastou milhões em contratados privados, incluindo uma empresa chamada Logically (ao pé da letra, "Logicamente"), para ajudar a CDU com monitoramento e censura de redes sociais. A Logically produziu relatórios diários analisando as chamadas “narrativas de desinformação”.
A Logically até mesmo direcionou sua atenção para a ONG para a qual eu trabalho, Big Brother Watch. Incluiu Mark Johnson, nosso gerente de defesa, em um “Relatório de Desinformação da Covid” por compartilhar um link no Twitter para uma petição da Câmara dos Deputados britânica contra os passaportes vacinais.
A Logically apontou Silkie Carlo, nossa diretora, em outro relatório de desinformação por se atrever a estabelecer uma ligação entre passaportes vacinais e coerção médica em um tweet.
O denunciante da 77ª Brigada disse que vinha feedback positivo da cúpula da cadeia de comando quando produziam relatórios cobrindo narrativas críticas aos que estão no poder, o que vinha com a implicação de que isso era encorajado.
Um e-mail datado de 2 de junho de 2020 revelou que os soldados da 77ª Brigada estavam monitorando postagens no Twitter de cidadãos do Reino Unido, incluindo enfermeiras e estudantes universitários. Algumas postagens discutiam a notícia de que a Covid-19 afeta o sistema cardiovascular, uma opinião agora apoiada pela Fundação Britânica do Coração (BHF) — a sugestão da 77ª era que a notícia seria desinformação. Outros relatórios do exército revelaram como os soldados deram atenção a declarações críticas de jornalistas da grande imprensa e de parlamentares da oposição.
A espionagem da 77ª Brigada contra a jornalista do Guardian, Jennifer Rankin, ocorreu porque o governo temia que a verdade prejudicasse a sua própria reputação. O mesmo aconteceu em outros casos. Em um relatório de 26 de junho de 2020, soldados da 77ª Brigada rotularam tweets sobre a União Europeia como “malinformação” que poderia “prejudicar negativamente a reputação do Reino Unido”.
Por que o governo do Reino Unido começou a monitorar cidadãos? Principalmente por medo que políticos e burocratas que o compõem tinham dos eleitores. Repetidamente, a Big Brother Watch descobriu não “desinformação estrangeira” por “narrativas de Estados hostis”, mas sim esforços para censurar críticas legítimas de políticos, jornalistas e cidadãos.
Desmascarando os censores
Em vários relatórios internos, funcionários públicos do Reino Unido espalharam desinformação de que Julia Hartley-Brewer, uma proeminente jornalista britânica e apresentadora da TalkTV, era uma “cética quanto às vacinas” por sua oposição aos passaportes de Covid e outras formas de coerção. Isso apesar de a sra. Hartley-Brewer dizer em seu programa que havia sido vacinada e falar sobre os benefícios.
Oficiais do Reino Unido compartilharam pelo menos três documentos contendo desinformação sobre Hartley-Brewer com o Departamento de Estado dos EUA. Um dos relatórios continha um tweet de Hartley-Brewer criticando comentários de dois ministros sêniores do Reino Unido que ligaram a frequência escolar às vacinas.
Esse não foi o único exemplo de colaboração com o governo dos Estados Unidos. A terceirizada Logically, que recebeu milhões do exército do Reino Unido, tem uma grande presença nos EUA e é liderada pelo ex-oficial de inteligência dos EUA Brian Murphy, que trabalhou no Departamento de Segurança Interna.
A Big Brother Watch não conseguiu confirmar se o governo do Reino Unido integrou funcionários dentro das plataformas de rede social, e o governo britânico repetidamente se recusou a divulgar cópias dos relatórios produzidos pela Logically, alegando que isso revelaria suas capacidades para atores hostis.
No entanto, há evidências significativas de muitos oficiais de agências de inteligência dos EUA indo trabalhar para grandes empresas de tecnologia, incluindo Meta, Google e Twitter.
O governo do Reino Unido não está recuando em suas demandas por censura. Em 2022, o então ministro digital Chris Philp disse à Câmara dos Deputados britânica: “até onde sei, pretendemos continuar com a unidade de contra-desinformação.”
A esfera de atuação da CDU não parou nas restrições da pandemia. Ela trabalhou em tudo, desde as guerras na Ucrânia e em Gaza até eleições no Reino Unido.
Ao mesmo tempo, a pressão da Big Brother Watch contra a censura deu resultado. Fontes dentro do governo do Reino Unido nos disseram que a linha direta entre a CDU/NSOIT e as plataformas de rede social é muito menos usada agora. E o governo fechou silenciosamente a RRU em agosto de 2022.
Após uma ação legal apoiada pela Big Brother Watch, em 2023, o Gabinete do Reino Unido pediu desculpas à jornalista Julia Hartley-Brewer pelo que disse sobre ela a portas fechadas, admitindo que havia sido “impreciso e não imparcial”.
Mesmo assim, a censura não acabou. O nome esquecível “NSOIT”, a agência de censura do governo, ainda operará durante as próximas eleições gerais do Reino Unido, que acontecerão este ano.
Mas a mudança está chegando. A Big Brother Watch apoiou o chamado do Comitê de Cultura, Mídia e Esporte da Câmara dos Deputados britânica por uma investigação independente sobre a CDU do Governo. Na verdade, acreditamos que o governo deve ir além e suspender imediatamente as operações da unidade.
Jake Hurfurt é chefe de pesquisa e investigações da organização Big Brother Watch, no Reino Unido.
VEJA TAMBÉM:
- Como governos usaram manipulação psicológica para gerar medo e obter adesão ao lockdown
- “Podemos fazer todos tremerem nas bases com a nova variante”: governo britânico fez uso do medo para controlar população na pandemia
- Boris Johnson renuncia de novo – desta vez, à sua cadeira no Parlamento britânico
- Soros e governo Biden estão por trás de teorias da conspiração sobre Twitter Files Brasil
- Casa Branca “coagiu Big Techs a censurar americanos”, diz comitê de deputados dos EUA
©2024 Public. Publicado com permissão. Original em inglês.
Conteúdo editado por: Eli Vieira