A liberdade acadêmica está em apuros no mundo anglófono. Episódios envolvendo censura, linchamentos virtuais e pedidos de demissão de professores aparecem no noticiário com regularidade. A ameaça à liberdade acadêmica nasce da esquerda identitária dentro das universidades, ainda que ela também possa vir da esquerda fora do campus.
Para John Ellis, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, a universidade norte-americana foi corrompida pelo radicalismo de esquerda e hoje sua missão de buscar a verdade foi eclipsada pela busca da “justiça social”. Os acadêmicos progressistas geralmente dão de ombros para essas acusações, dizendo que são apenas piadas, mas as pesquisas nos dizem algo diferente. Em agosto, fui coautor de um relatório do think tank britânico Policy Exchange sobre liberdade acadêmica no Reino Unido. O relatório foi tema de várias matérias na imprensa britânica. Ele mostra que o silenciamento e a tentativa de cancelar e arruinar as reputações de professores são apenas a ponta do iceberg da repressão intelectual nos campi. A uniformidade ideológica e o viés político se combinam com o medo do cancelamento para criar uma atmosfera tóxica, sobretudo para os conservadores e, no contexto dos assuntos referentes aos transgêneros, dissidentes “críticos da ideologia de gênero”.
As soluções, apontamos, devem envolver a supervisão governamental proativa do comprometimento das universidades com a liberdade acadêmica, a fim de conter a influência dos grupos de pressão progressistas. A esperança de que exortações morais ou soluções de mercado sejam capazes de deter essas ameaças é, argumentamos, irreal.
Andrew Sullivan nota que “todos vivemos em campi hoje em dia”, com a retórica da justiça social e a cultura do cancelamento disseminadas pelas empresas, imprensa, indústria do entretenimento, órgãos do governo e grandes empresas de tecnologia. Até mesmo funcionários rasos podem ser demitidos por seus posts nas redes sociais ou por gestos dúbios.
Uma pesquisa recente do Cato Institute expõe o tamanho do problema entre os trabalhadores norte-americanos mais esclarecidos: seis em cada 10 trabalhadores com mestrado ou doutorado e que se consideram republicanos dizem que “temem perder o emprego ou oportunidades de contratação se expressarem suas opiniões políticas”. Quase metade dos independentes com pós-graduação concordam, em comparação com 25% entre os democratas.
Ainda que os ataques mais violentos da cultura do cancelamento apareçam no noticiário, a censura cotidiana geralmente permeia as organizações sem chamar a atenção do público — sobretudo nas universidades. O fundamental, aqui, é entender a conexão entre a discriminação política e a autocensura. Quando você tem medo de que suas opiniões possam prejudicar sua carreira, você se silencia.
Nosso estudo com 820 acadêmicos britânicos usou a maior e mais representativa amostra de opinião acadêmica sobre liberdade de expressão até hoje reunida. O YouGov mantém um fórum com 500 mil participantes, o maior do mundo ocidental, incluindo mil acadêmicos em atividade ou aposentados, e a maioria deles respondeu à pesquisa. Eles são uma amostra razoavelmente representativa da academia britânica. Também repeti o estudo com uma amostra das academias norte-americana e canadense, com resultados semelhantes, assim como tinha acontecido com três estudos anteriores que encontraram provas de discriminação política e de medo entre os acadêmicos nos Estados Unidos e Europa.
Nossa pesquisa mostra que acadêmicos conservadores e críticos da ideologia de gênero no Reino Unido praticam mais a autocensura. Apenas dois em cada 10 acadêmicos britânicos de ciências sociais e humanidades que apoiaram o Brexit em 2016 disseram que os defensores da saída do Reino Unido da União Europeia se sentiriam à vontade expressando essa opinião a um colega. Isso em comparação com 87% dos eleitores pela permanência do país no bloco e que disseram que um acadêmico com essa opinião se sentiria confortável a expressando. Na amostra norte-americana, os resultados são ainda mais impressionantes. Somente 15% dos acadêmicos, na maioria democratas, disseram que um acadêmico trumpista se sentiria à vontade expressando sua opinião aos colegas, em comparação com 88% que disseram que um apoiador de Biden se sentiria à vontade para se assumir assim.
Os acadêmicos conservadores estão certos em conter a língua. Usando uma técnica de lista oculta, descobrimos que um em três acadêmicos britânicos, proporção que chega até quatro em dez nas ciências sociais e humanidades, discriminariam alguém que tivesse apoiado a saída do Reino Unido da União Europeia. Uma porção semelhante ou maior discriminaria alguém de direita que se inscrevesse para um cargo. Na América do Norte, encontrei níveis semelhantes de preconceito contra trumpistas e conservadores. Antecipando-se às punições, muitos acadêmicos conservadores ou críticos da ideologia de gênero — sobretudo os mais jovens e inseguros — evitam revelar suas opiniões aos colegas.
Um estudo que pedia aos alunos que identificassem politicamente os acadêmicos do direito descobriu que os alunos eram incapazes de identificar os republicamos, mas identificam corretamente os artigos progressistas de democratas declarados. Em outras palavras, acadêmicos conservadores, antecipando-se à discriminação, restringiam sua liberdade acadêmica, atendo-se a temas técnicos em vez de estudarem temas controversos ou pontos de vista dissidentes.
Isso os ajuda a evitar dificuldades de contratação, de financiamento ou de referências em periódicos por parte dos progressistas. Os acadêmicos progressistas, por outro lado, pesquisam livremente temas esquerdistas, como a desigualdade racial, ao mesmo tempo em que defendem abertamente medidas condizentes com suas inclinações ideológicas.
O medo quanto à carreira é importante, mas representa apenas uma parte da equação de repressão. A interação social e o coleguismo são dimensões igualmente importantes da satisfação profissional. Cass Sunstein escreve que as pessoas acatam normas institucionais não apenas para progredirem na carreira, mas também para garantir um ambiente de trabalho agradável. Aqui, mais uma vez, os conservadores e as feministas críticas da ideologia de gênero estão agindo racionalmente ao esconderem suas opiniões.
Quase metade dos acadêmicos disseram que se sentiriam incomodados ou inseguros de se sentarem ao lado de um apoiador do Brexit, e nem um terço deles disseram que se sentiriam à vontade ao lado de um acadêmico que apoiasse a proibição de mulheres trans em abrigos femininos.
Pelo lado bom, quando perguntados se eles apoiariam campanhas para demitir acadêmicos com descobertas controversas sobre temas envolvendo família, imigração, o papel do Império Britânico e o impacto da diversidade nas empresas, menos de 10% dos acadêmicos apoiaram a cultura do cancelamento.
Também percebo que poucos acadêmicos — até mesmo entre os conservadores — enfrentaram medidas disciplinares ou perseguição por causa de suas opiniões.
Ainda assim, a maioria deles sabe de casos de demissão ou de danos à reputação. Afinal, é possível que haja milhares de inscrições para cada cargo acadêmico permanente e pode ser praticamente impossível arranjar um emprego na cidade onde você mora. Para conservadores e acadêmicos críticos da ideologia de gênero, é melhor tornar a discrição parte do trabalho e manter a cabeça abaixada.
Questão estrutural
Não que os acadêmicos discriminem ou cancelem mais do que as pessoas em outras profissões. A questão é estrutural. De acordo com nossos dados, os esquerdistas são seis vezes mais numerosos do que os direitistas, proporção que chega a nove para um nas ciências sociais e humanidades. De acordo com meus dados norte-americanos, a proporção lá é ainda mais extrema : 14 por 1, em linha com outros estudos.
A discriminação não seria um problema menor se a distribuição ideológica fosse mais igual. Mas quando um lado não discrimina proporcionalmente o outro, e sim leva uma vantagem de dez para um, o efeito discriminatório é dez vezes pior para a direita.
É quase certo que um apoiador declarado do Brexit ou de Trump enfrentará um debatedor enviesado num painel, enquanto um apoiador de Biden ou alguém contrário ao Brexit provavelmente será visto com bons olhos. A disparidade também explica por que a maioria dos acadêmicos não entende o motivo de tanto barulho. A maioria deles é progressista, então eles não enfrentam discriminação.
A combinação de discriminação ideológica e intimidade restringe a liberdade acadêmica e contribui para um estreitamento dos horizontes acadêmicos. É um belo exemplo do que John Stuart Mill chama de “despotismo de costumes”, o que ele identificava como um problema maior para a liberdade de expressão do que a pressão governamental.
Para além da academia, a força de trabalho se torna cada vez mais progressista em várias outras atividades. Médicos, empreendedores do ramo da tecnologia e advogados são majoritariamente progressistas, ainda que não na mesma proporção que nas universidades.
Isso aponta para um problema cada vez maior fora da academia, sobretudo quando a pessoa tem de manifestar suas opiniões no trabalho ou se um assunto surge no meio de uma conversa.
Por exemplo, 80% dos membros de uma organização artística britânica disseram que seu ambiente de trabalho censurava os apoiadores do Brexit e conservadores, ecoando os resultados que o Cato Institute obteve entre os trabalhadores norte-americanos.
Reforma
O que ocorre nos campi molda a cultura, o que torna urgente a necessidade de reforma. Muitos conservadores e progressistas tradicionais parecem acreditar que o debate racional e o mercado de ideias resolverão o problema; boas ideias superarão as ideias ruins e os consumidores transferirão seus dólares para universidades mais livres, afastando-se das repressivas. Eles ignoram a vantagem de quem age primeiro em estabelecer a posse das universidades. Reputações, bolsas e ex-alunos poderosos com interesses escusos no prestígio de sua alma mater dão às universidades de elite, por exemplo, uma vantagem competitiva que nenhuma outra universidade tem.
Enquanto isso, normas internas e grupos de pressão impedem que as universidades desafiem a pauta da justiça social. Esse efeito em cadeia significa que o único caminho viável para o debate aberto é por meio da reforma das instituições existentes.
A imprensa já apresenta uma diversidade de opiniões considerável — ainda que cada vez à margem das fontes tradicionais. A maior parte da resistência às restrições de discurso, seja aos podcasts de Sam Harris ou Glenn Loury, tuítes de J. K. Rowling ou à carta da Harper’s, vem da imprensa. A cultura do cancelamento está no encalço de muitas pessoas inteligentes.
É assim no Reino Unido, onde a ideia de que a segurança emocional deveria ser mais importante do que a liberdade acadêmica tem poucos defensores na imprensa tradicional. Na verdade, nosso relatório recebeu cobertura favorável de grandes jornais de todo o espectro político, do Telegraph e Times até o Guardian.
Mas em algumas organizações específicas a história é diferente. Os ativistas sabem que bombardear a timeline de uma universidade no Twitter resultará num e-mail assustador entrando na caixa de entrada do professor transgressor. Eles defendem que se usem os meios formais de reclamação em formulários, avisos aos chefes de departamento, entrando em contato com comitês de ética e organizando campanhas de perseguição com a ajuda dos alunos radicais.
Os administradores das universidades geralmente são progressistas e bastante sensíveis à opinião pública; eles não querem ser vistos como pessoas que não apoiam ativistas que falam a língua das minorias oprimidas. As universidades costumam violar a lei exagerando na interpretação de sua autonomia para impor “igualdade”, mencionando danos à sua reputação como justificativa para restringir a liberdade acadêmica de dissidentes.
Somente a regulamentação governamental das universidades pode proteger a liberdade acadêmica. Recomendamos que o governo britânico crie a Lei de Liberdade Acadêmica, criando também o cargo de Diretor de Liberdade Acadêmica dentro do Departamento Britânico de Estudantes, a agência reguladora setorial. Esse indivíduo teria o poder fiscalizador de ouvir os casos de acadêmicos cujas universidades violaram sua liberdade ou que enfrentaram discriminação na contratação, promoção ou obtenção de financiamento. (É importante notar que opiniões fora do ambiente acadêmico — como nas redes sociais — devem ser incluídas na definição de liberdade acadêmica).
Isso impediria que as universidades usassem seu poder de extrapolar procedimentos disciplinares internos ou de tomar outras medidas para silenciar os dissidentes. Seria exigido que as universidades publicassem um relatório anual sobre liberdade acadêmica, e quem comete infrações estaria sujeito a multas. Também recomendamos a criação de uma agência não-governamental de classificação capaz de avaliar as universidades de acordo com sua liberdade acadêmica e diversidade ideológica. Idealmente, essa pontuação influenciaria os rankings universitários.
A diversidade de opiniões nos campi são fundamentais numa sociedade cada vez mais polarizada. Ainda que a predominância esquerdista nas universidades seja resultado de escolhas internas, a discriminação também exerce um papel nisso. Recomendamos que comunicados oficiais das universidades sejam politicamente neutros, como já acontece no sistema escolar britânico. Ainda que os acadêmicos devam ter o direito de defender opiniões políticas em sala de aula, os comunicados oficinais das universidades não deveriam ter este direito.
Isso, porém, talvez não resolva o problema. Uma medida mais eficiente para restaurar a diversidade ideológica talvez seja exigir que as universidades demonstrem equivalência entre políticas de igualdade racial e sexual e políticas que tratam de discriminação e representação. Isso resolveria o problema da academia politizada permitindo que as instituições optassem por um nível aleatório de igualdade/diversidade – desde que implementassem medidas equivalentes de diversidade ideológica.
Decreto
O decreto do presidente Donald Trump pondo fim à Teoria da Raça Crítica nos treinamentos de diversidade dos órgãos federais — treinamento que é obrigatório, discrimina os brancos e impede discordância — é um exemplo importante de como medidas democráticas podem mudar práticas discriminatórias e não liberais dentro de instituições de elite.
Outro exemplo do governo impedindo exageros progressistas que persistentemente violam o direito ao devido processo legal dos acusados é a revisão de medidas igualitárias deturpadas. Qualquer tentativa de uma administração Biden de restaurar o status quo será vista, e corretamente, como uma ação ideologicamente motivada.
As universidades controlam muitos recursos, que usam para aumentar seu prestígio. Muitas hoje estão envolvidas com redes de ativismo radical que usam tabus sociais poderosos para aumentar seu poder. A única forma de limitá-las é reduzindo a capacidade de administradores universitários de punirem os dissidentes. Os reformistas que insistirem na pureza libertária e na abordagem alheia ao governo estão apenas abrindo caminho para um ativismo progressista ilimitado, protegendo o status quo autoritário. A responsabilidade por manter o devido processo legal e a liberdade de expressão não pode tirar dos indivíduos direitos que eles já tinham.
A única forma de a liberdade de expressão prevalecer sobre o objetivo progressista da segurança emocional é se o governo usar a lei de uma forma proativa, isto é, a autonomia individual deve ter prioridade sobre a autonomia institucional, mesmo que tentemos proteger ao máximo a liberdade institucional também.
Foi isso o que o governo dos EUA fez ao exigir que as universidades sulistas abrissem as portas para os negros no começo dos anos 1960. Essa também foi a estratégia usada pelo governo britânico ao lidar com escolas públicas de maioria muçulmana que caíram nas mãos de líderes islâmicos que estavam restringindo os direitos das alunas mulheres. O governo deve ser limitado — mas isso não significa que não precisemos às vezes dele para proteger os direitos das pessoas.
Em resumo, a reforma do sistema universitário sob supervisão governamental é a única alternativa realista.
Eric Kaufmann é professor de política na Birkbeck College.
©2020 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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