A americana Sheryl Sandberg, executiva da tecnologia, foi a segunda pessoa mais importante dentro do Facebook. Por 14 anos, até 2022, atuou como diretora de operações da rede social, onde recebeu o crédito por torná-la lucrativa. Agora, aos 54 anos, ela diz que a coisa mais importante que ela fez na vida foi lançada em 2024. É seu documentário Screams Before Silence (“Gritos antes do silêncio”, em trad. livre), lançado em 25 de abril no YouTube, onde acumula mais de um milhão de visualizações.
O propósito do documentário é dar uma resposta definitiva a quem ainda insiste que o grupo terrorista Hamas não usou o estupro de mulheres como arma em seu ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, que iniciou uma guerra e deixou 1.143 mortos e mais de 3.400 feridos.
“Quando as pessoas pensam em Sheryl Sandberg, elas pensam na expressão ‘girl boss’ (‘chefe feminina’)”, disse a jornalista Bari Weiss no prelúdio de uma entrevista com a executiva. “Elas pensam em feminismo, na campanha de Hillary Clinton. Em outras palavras, ela é uma democrata normal, uma progressista normal”. Mas foi justamente neste grupo político, diz Weiss, que o antissemitismo explodiu após o ataque.
“Eu nunca achei que eu faria isso, e eu gostaria que não precisasse ter sido feito”, disse Sandberg sobre o documentário na entrevista, quinta-feira passada (13). “Quando o 7 de Outubro aconteceu, fiquei chocada”. Para ela, foi ainda mais chocante que, quando os estupros foram revelados, houve uma reação não de condenação, mas ceticismo.
Após o New York Times publicar relatos e indícios dos estupros perpetrados pelo Hamas, numa reportagem de 28 de dezembro (“Gritos sem palavras”, de Jeffrey Gettleman, correspondente internacional e ganhador do Prêmio Pulitzer, e colaboradores); uma série de críticas surgiram. O site The Intercept publicou uma reportagem em fevereiro apontando que a coautora Anat Schwartz, residente em Israel, “não tem experiência anterior em jornalismo”. Uma carta aberta assinada por 50 professores universitários de instituições americanas de prestígio cobrou o NYT por seu “silêncio” diante de “relatos convincentes questionando a integridade” da reportagem.
Até o momento, o NYT emitiu apenas uma correção, em janeiro, para a idade exata de Sapir, “a mulher que se tornou uma das testemunhas mais importantes para a polícia israelense a respeito da violência sexual do ataque lançado pelo Hamas. Ela tem 26 anos, não 24”. É neste contexto que “Gritos antes do silêncio” surge.
O que o documentário de Sheryl Sandberg mostra
A direção, de Anat Stalinsky, evita colocar a apresentadora Sandberg como protagonista. Nos 57 minutos do filme, o foco maior é dado às testemunhas entrevistadas, a maioria de mulheres.
Duas das entrevistadas são Chen Goldstein-Almog e sua filha adolescente, Agam, que acompanham Sandberg pelo que restou de sua casa no kibutz Kfar Azza. As paredes estão marcadas de tiros, móveis e pias estão aos pedaços. Agam conta que tudo aconteceu muito rápido. Ela soube do ataque por mensagens de amigos no celular.
Junto com seus três irmãos e a mãe, ela foi defendida por seu pai Nadav, que esperou a chegada dos terroristas portando uma barra que ele retirou de uma das camas. Ele foi morto a tiros pelo Hamas, e a família foi forçada pelos terroristas a andar em fila, desviando de seu cadáver. A irmã de Agam, Yam, reagiu mal e levou um tiro no rosto, o que a mãe testemunhou. Chen e Agam foram mantidas por 51 dias em cativeiro.
Mãe e filha contam que enquanto eram reféns foram mudadas regularmente de lugar pelos terroristas. Quando foram postas dentro de um túnel, conheceram cinco garotas que eram mantidas solitárias. “Muitas delas passaram por abuso sexual grave, estavam machucadas”, disse Agam. Ela lembra que, quando estavam sendo levadas, disse “Mãe, vão me estuprar, vão me torturar. Ela olhou para mim e não respondeu”.
O filme também mostra os relatos de sobreviventes e imagens do festival Supernova de música eletrônica (edição israelense do festival Universo Parallelo, fundado no Brasil), em que os militantes islâmicos desceram de parapente e mataram 364 pessoas, quase um terço do total no dia.
A jovem Michal Ohana chegou à 1h da manhã na festa. Às 6h29 minutos, os DJs interromperam a música, anunciando “alerta vermelho” e aconselhando os presentes a fugirem. Ohana levou um tiro na perna. No meio da entrevista com Sheryl Sandberg no local do massacre, ouve-se uma explosão. “Não consigo, não posso mais”, diz Ohana, chorando.
Tali Binner, outra mulher sobrevivente do massacre, conta que ficou sete horas escondida em um trailer e ouviu gritos seguidos de silêncio que são para ela sinal inequívoco de estupros (veja seus relatos abaixo).
“O nome dele era Muhammad. Ele se sentava na cama na minha frente. Eu não conseguia olhar para ele”, diz Amit Soussana, entrevistada que passou 55 dias como refém do Hamas. “Ele estava apontando a arma para mim, respirando forte, e tinha a cara de um monstro. Ele gritou ‘tire tudo’, e eu não consegui mais me agarrar à toalha. Ele me arrastou para o quarto”, afirma. E lá, ela foi estuprada. “Eu sou seu amigo, certo?”, perguntou o terrorista, sequestrador e estuprador.
Raz Cohen, rapaz sobrevivente do festival, conta que viu terroristas saírem de uma caminhonete. Eles “agarraram uma moça lá, fizeram um semicírculo em torno dela. E um deles a estuprou. Lembro que as calças dela estavam baixadas até os joelhos”. Ele não tem dúvidas de que testemunhou um estupro. “Eles fizeram o que queriam, não havia regras”. Cohen afirma que um amigo ao lado que continuou observando disse “ele está esfaqueando-a, matando-a”. “Eu não quis olhar”, diz o israelense, que acabou olhando mais tarde e confirmando a morte da vítima. Ele não sabe a ordem dos dois crimes. “Eu queria ter uma arma para tentar salvá-la”.
Quando surgiu na rede social X um vídeo de uma raptada pelo Hamas com manchas na parte de trás das calças, o militante Sayid Tenório, vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina com livre trânsito no governo Lula, ridicularizou a mulher: “é marca de merda. Se achou nas calças”. O nome da mulher é Naama Levy, e Sheryl Sandberg entrevista sua mãe, Ayelet Levy Shachar. Ela teme o pior e diz que não sabe “até quando ela foi...”, sem completar a frase. Diz que tem saudades de acariciar os cabelos da filha. “Foram eles que postaram o vídeo, o Hamas”, afirma.
O documentário exibe cenas filmadas no celular de Eram Masas, Tenente-Coronel das Forças de Defesa de Israel, um dos primeiros a chegar no festival Supernova, e o entrevista. As imagens mostram Masas perguntando se alguém estava vivo, andando ao redor dos corpos. Ele contou inicialmente 125 corpos, mas calculou que havia ao menos o dobro disso. Viu ao menos uma mulher com a roupa de baixo cheia de sangue e sem camisa. “Acredito 100% que ela foi estuprada. O tiro foi no pescoço. Por que sangue nas pernas e sem camisa?” Ele também viu uma cabeça feminina posta sobre o órgão genital de um rapaz morto, como uma forma de ridicularização dos mortos. “Eu não consigo continuar. É difícil”, confessa.
Outros entrevistados entre os primeiros socorristas, entre eles voluntários da ZAKA (sigla em hebraico para “Identificação de Vítimas de Desastres”) e um segurança do evento, confirmam o padrão de desrespeito aos corpos: tiros pós-mortem, fogo, algumas pessoas queimadas vivas.
Simcha Greiniman, voluntário da ZAKA, diz que nunca viu tantos corpos nus. “Esta mulher, não conseguíamos identificá-la pelo rosto. Estava totalmente nua. Tinha pregos e outros objetos nos órgãos genitais”, afirma. Rami Davidian, um dos primeiros socorristas, visita com Sheryl Sandberg um bosque onde ele achou 30 corpos de mulheres estupradas e atadas às árvores. “Eu tive que fechar suas pernas e cobrir seus corpos”, afirma. Ele relata que também havia objetos que os terroristas inseriram em seus órgãos genitais. “Ninguém consegue ver esse tipo de coisa”, diz emocionado.
Uma das cenas descritas na reportagem do NYT e disputada pelos críticos foi o relato de uma estuprada que teve o seio arrancado. “Aqui está parte de um seio”, diz um voluntário da ZAKA, mostrando a foto de outro caso de mutilação para Sheryl Sandberg. A imagem da testemunha que deu esse relato também é mostrada em seu depoimento à polícia.
Shari Mendes, uma reservista das FDI que trabalhou no necrotério que recebeu a maior parte das vítimas do festival, diz que havia um padrão de destruição de faces das mulheres com tiros. “Muitas vezes não podíamos mostrar as faces para as famílias”. Ela afirma que a violência sexual que observou nos corpos foi “sistemática” e “uma arma de guerra”.
O documentário exibe imagens de interrogatórios de terroristas do Hamas capturados. Ao menos um confessa explicitamente que estuprou uma vítima.
A chefe superintendente da polícia de Israel, Mirit Ben Mayor, diz em sua entrevista que, em meio a mais de 200 mil fotos e vídeos e dois mil depoimentos, as evidências dos estupros são abundantes.
Ruth Halperin-Kaddari, ex-vice-presidente do Comitê da ONU pela Eliminação da Discriminação Contra Mulheres, afirma que as mutilações de seios foram recorrentes e que isso mostra um padrão premeditado pelo Hamas. “Usar a violência sexual como arma de guerra é algo antigo na história da humanidade. O corpo violado da mulher simboliza o corpo de toda a nação.”
“Azov otah!” (“Deixe-a em paz!”): trechos das entrevistas na íntegra
“Depois de uma hora escondida no trailer, comecei a ouvir gritos de mulheres. Ouvi uma garota que gritou por muito tempo ‘não, por favor! Não, não, pare, pare, pare!’ Ela estava pedindo a alguém que parasse. Parar o quê? Estavam abusando dela. Eu sei como soa. Entendo como soa.”
— Tali Binner
“Havia dez homens ao meu redor. Meu instinto era lutar. Queria mostrar para eles que sou forte, que não me tomariam tão facilmente. Não me importava de ser morta. Talvez eu preferisse, naquele momento. Tinha medo, muito medo que me estuprassem ali, e me arrastassem pelas ruas de Gaza, exibindo meu corpo. Tinha mais medo disso do que de ser morta.”
— Amit Soussana
“Quando ouvia gritos e então silêncio, sabia que provavelmente alguém tomou um tiro. Quando você ouve esse caos por 20 ou 15 minutos, você entende que algo pior está acontecendo lá. Foi aí que fiquei com medo de ser estuprada. Os gritos vinham de várias direções ao meu redor. Tantos barulhos de mulheres, muitas. Ouvi um casal. Ela só gritava. Lembro que ele implorava que alguém a deixasse em paz. Lembro que ele disse ‘azov otah’, ‘deixe-a, deixe-a em paz’. O homem estava chorando, eu ouvi. E então, silêncio. Levaram um tiro. Quando saí do trailer, vi muitos corpos. As garotas estavam sem saias, sem calças, suas pernas abertas. Elas foram abusadas.”
— Tali Binner
“Senti-me culpada, com nojo de mim mesma, mesmo que eu não tenha tido escolha. É difícil falar a respeito. Quando contei a uma médica, senti algum alívio. Agora quero gritar e contar para o mundo. Se eu puder ajudar as pessoas que ainda estão lá, é meu chamado fazê-lo.”
— Amit Soussana
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