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A invasão russa à Ucrânia teria sido motivada por vários cálculos estratégicos: medo da expansão da OTAN, temores de que a Ucrânia estaria se aproximando demais do Ocidente e a confiança de Moscou em suas reservas econômicas. Mas essa análise talvez ignore o aspecto civilizacional da decisão fatídica de Vladimir Putin. Afinal, a guerra não envolve apenas a Ucrânia, mas também um conflito mais amplo entre Oriente e Ocidente.
Em vez da União Soviética, os Estados Unidos estão enfrentando um continente eurasiano que tem a Rússia como alma. No espaço geográfico, a Eurásia cobre o antigo império soviético, excluindo-se os países bálticos, assim como a Mongólia e partes da China. E dentro desse território reside uma grande civilização – a civilização russa – que representa a única alternativa ao Ocidente globalizado e decadente.
Ao menos é assim que o filósofo e fundador do Partido Eurasiano, Alexander Dugin, vê a situação. Dugin há tempos diz que a Eurásia é a única esperança contra o domínio mundial do Ocidente, e ele trata da diferença entre as duas civilizações em termos geopolíticos. Se por um lado analistas ocidentais superestimam a influência de Dugin ao chamá-lo de “o cérebro por trás de Putin”, por outro o estudo das ideias do filósofo russo talvez possa ajudar a esclarecer as ações da Rússia.
A obra mais influente de Dugin é o livro "Foundations of Geopolitics" [As bases da geopolítica], de 1997. Ele foi adotado como livro didático pela academia militar russa e pelo sistema de ensino estatal. Curiosamente semelhante à comparação que Tucídides faz entre Atenas e Esparta, a analisa de Dugin defende que os atenienses contemporâneos são os “atlanticistas”, liderados pelos EUA e Reino Unido, enquanto os espartanos seriam os “eurasianistas”, liderados pela Rússia. Os atlanticistas dominam o mar por meio de um poder naval muito superior, enquanto os eurasianistas buscam dominar o território geográfico por meio da capacidade militar superior em terreno seco. A ideia por trás disso é a de que a escolha de uma civilização não se dá por escolha, e sim por necessidade geográfica. A geopolítica determina que tipo de civilização você se torna.
Mas as implicações disso vão bem além da orientação militar. Dugin argumenta que as diferenças culturais e ideológicas são consequências do destino geopolítico. Os atenienses eram materialistas, inovadores, individualistas e progressistas, assim como os atlanticistas. Esparta era espiritualizada, austera, comunitária e tradicional, assim como os eurasianistas. Essas diferenças imutáveis são mais profundas do que as instituições políticas ou ideias quanto aos direitos humanos, e se sobrepõe a preocupações econômicas e com a prosperidade. Além disso, o Estado deve usar o seu poder para servir e defender valores civilizacionais. São os valores civilizacionais, e não o consentimento democrático, que representam a fonte da legitimidade do Estado. Uma civilização fraca significa um Estado fraco.
A forma como Dugin aborda a questão da Ucrania acompanha a mesma lógica. Numa palestra proferida para jornalistas ocidentais em 4 de março, oito dias depois de começada a ofensiva, ele disse que a invasão tinha sido uma “opção” para afirmar a “multipolaridade” do mundo. A Rússia tem “o direito a ser uma das civilizações mundiais”, direito que o globalismo ocidental teria negado ao país desde o colapso da URSS. A Ucrânia pode ser um alvo específico, mas o objetivo maior é restabelecer o lugar da Rússia como “segundo centro” que sirva de modelo para todas as nações com características semelhantes. A afirmação de Dugin segundo a qual Putin estaria apenas “protegendo os interesses geopolíticos da Rússia” deve ser compreendida a fim de se incluir a proteção da civilização e do estilo de vida russos.
Dugin se inspira no pensamento ocidental para ilustrar sua posição. Numa declaração esclarecedora, ele disse que “[Samuel] Huntington tinha razão e [Francis] Fukuyama estava enganado”. A política mundial é um conflito de civilizações. A ideia de que a democracia liberal pode se espalhar por todo o mundo é uma fantasia porque os sistemas econômicos e políticos são funções das diferenças civilizacionais. De acordo com essa ideia, a Perestroika de Mikhail Gorbachev foi uma tentativa genuinamente russa de se modernizar – e que fracassou. “Durante muito tempo tentamos algo impossível: fazer parte da civilização mundial”, disse Dugin. “Mas somos uma civilização em si”.
Dugin em geral restringe sua teoria do eurasianismo ao mundo das ideias. Os estudiosos das relações exteriores fazem a distinção entre o mundo material – aviões, tanques e tropas – e o mundo das ideias (valores e crenças). E a Eurásia – apesar de Dugin dizer que a geopolítica exige o surgimento de uma civilização concreta, com fronteiras claras – pertence ao segundo mundo.
No todo, ele brinca com essa distinção, usando os termos que mais se adequam a seus objetivos. Enquanto “Foundations...” trata de geopolítica, a outra importante obra de Dugin, “The Fourth Political Theory” [A quarta teoria política], é toda sobre ideias e ideologia. No livro, ele ataca os valores ocidentais do capitalismo e individualismo, defendendo uma nova ideologia política baseada na experiência da existência em si (influenciado por Heidegger).
Em suas palestras, Dugin alterna as abordagens, às vezes falando em “necessidade geopolítica” e às vezes tentando repensar a filosofia política, a natureza humana e o futuro da vida em si. Ele usa essa ambiguidade em proveito próprio e parece mais à vontade com a retórica do que com a filosofia, agindo mais como um charlatão do que como alguém que busca de fato a verdade.
Realidade x teoria
Desde o início da guerra, em 24 de fevereiro, a realidade empírica tem contaminado as teorias de Dugin. “Foundations...” defende um bloco franco-germânico alinhado à Rússia, um “eixo Moscou-Berlim” baseado na ideia de que tanto a França quanto a Alemanha são poderes historicamente inimigos dos atlanticistas. As notícias, contudo, dão conta de que o contrário está acontecendo, com a Alemanha reafirmando seus laços com o Ocidente, ao mesmo tempo em que procura reduzir sua dependência da energia russa. Claro que nem toda nação se sente destinada a, por circunstâncias geográficas, escolher o caminho certo.
É verdade que a política externa de Putin soa como algo inspirado em Dugin. O líder russo critica a decadência cultural do Ocidente, ao mesmo tempo em que enfatiza a influência corrupta dos ideais iluministas – sobretudo o individualismo. Num discurso realizado em outubro de 2021, Putin atacou a ideologia progressista. Ele menciona a civilização russa e insiste em dizer que a Ucrânia é fundamental para essa civilização, tendo chamado Kiev de “berço da civilização russa”.
Geopoliticamente, Putin demonstra interesse na ideia de uma comunidade eurasiana maior. A recente pressão que ele fez para promover uma União Econômica Eurasiana (UEE) busca criar um bloco capaz de rivalizar com os Estados Unidos, a União Europeia e a China como uma região de integração econômica e política. Na prática, contudo, isso parece bem improvável. Somente a Armênia, Belarus, Cazaquistão e Quirquistão se juntaram à Rússia na UEE, e os demais países da região não demonstram muito interesse pela ideia. O domínio russo sobre a UEE é total e o país usa esse domínio para seduzir outras nações.
Em outras palavras, a política externa de Putin está alinhada às orientações geopolíticas de Dugin. Ainda assim, não se sabe se Putin toma decisões tendo as ideias de Dugin em mente. Apesar do problema (que acomete todos os autocratas) de estar cercado por puxa-sacos que lhe passam informações imprecisas, o presidente russo é um estrategista sóbrio que geralmente resiste à teorização e à tentação das ideias românticas.
Putin também tende a trabalhar mais de perto com um núcleo reduzido de autoridades escolhidas com muito cuidado. A seus ex-conselheiros políticos, como Vladislav Surkov e Gleb Pavlovsky, faltavam as pretensões intelectuais de Dugin. As pessoas mais próximas de Putin não são escolhidas por sua inteligência, e sim por sua lealdade. Diria que Putin gosta das ideias de Dugin, assim como do conceito de eurasianismo. Eles lhe dão uma visão grandiosa do futuro – mas é improvável que o pragmático Putin se deixe levar por essas ideias.
Steven Pittz é professor de ciência política na Universidade do Colorado.