A garota não sabia se era dia ou noite enquanto planejava fugir de uma casa, no Iêmen. Seu marido a havia trancado em um quarto sem janelas. "Ele fez essa maldade porque eu não queria tocá-lo", disse ela.
Ele tinha 35 anos. Ela, 14.
Mas Mohsina, não era apenas uma vítima do casamento infantil; era uma baixa de uma guerra que mergulhou seu país em uma catástrofe humanitária. Para seus familiares, dar a menina em matrimônio lhes rendeu um dote de US$1.300, o suficiente para alimentá-los por um ano.
O Iêmen é um país em crise. Após mais de dois anos de guerra, a infraestrutura está em ruínas e o povo, empobrecido, com centenas de milhares de pessoas sofrendo com a cólera. Porém, por trás das dramáticas estatísticas de morte e destruição, há outro sofrimento insidioso: cada vez mais, famílias desesperadas estão vendendo suas filhas em casamento ou permitindo que os meninos sejam recrutados como soldados.
"É impossível dizer quantas crianças foram forçadas a deixar a escola para se casar ou lutar, mas sabemos que cada vez mais as famílias estão fazendo isso. A falta de meios de subsistência e o grande desemprego as força a tomar essa atitude", disse Meritxell Relano, representante do Iêmen do Fundo da Infância das Nações Unidas.
A Arábia Saudita e seus aliados bombardeiam o Iêmen há mais de dois anos na tentativa de expulsar os rebeldes alinhados com o Irã que tomaram o poder. A aliança saudita, até agora, não alcançou seu objetivo, mas a guerra impôs duras penalidades à população civil, especialmente aos pequenos.
De acordo com as Nações Unidas, uma em cada duas crianças iemenitas hoje sofre de subdesenvolvimento gerado pela escassez de alimentos. A desnutrição também as deixa vulneráveis a doenças. Os professores estão sem receber salários e 12 mil das 14.400 escolas do país estão fechadas. Mais de 700 mil habitantes, metade deles crianças, estão com cólera.
Mohsina, cujo sobrenome não foi divulgado para proteger sua identidade, disse em uma entrevista por telefone de um abrigo em Sanaa, a capital do Iêmen, que, durante o mês que passou com seu marido, ele a espancava e estuprava todas as noites, normalmente deixando-a sangrando e dolorida, sem conseguir ficar em pé. Então, ela o convenceu de que queria contribuir com as finanças domésticas pedindo esmolas.
"No minuto que cheguei à rua, fugi", disse Mohsina, que tem agora 15 anos.
Casamento forçado
A lei iemenita não determina uma idade legal para o casamento, nem criminaliza o estupro matrimonial.
O conflito no Iêmen começou em 2014, quando rebeldes xiitas do norte, conhecidos como houthis, se aliaram a segmentos das forças armadas e tomaram Sanaa, acabando por exilar o governo reconhecido internacionalmente. Isso levou ao envolvimento da Arábia Saudita e outros estados árabes no conflito que se seguiu, esfacelando o país, com administrações rivais no norte e no sul.
A luta forçou muitas famílias a exaurir seus parcos recursos – que, em alguns casos, eram seus filhos. "Todas as minhas amigas estão se casando ou rezando por um divórcio", disse Mohsina.
Ela foi forçada a se casar com um homem que não conhecia, Fawzy Mohamed, no começo do ano, depois que a fábrica de batatas fritas onde seu pai trabalhava, em Sanaa, foi destruída em um ataque aéreo da coalizão saudita, apoiada pelos EUA.
"Incapaz de conseguir um novo emprego e tendo que sustentar a família sozinho, ele aceitou a oferta de US$1.300 de Mohamed", contou a menina.
Ela nunca havia visto o marido, um primo distante, antes de entrar em um ônibus com um parente para uma viagem de uma hora rumo à sua cidade natal, levando apenas a roupa do corpo. No caminho, ficou sabendo que Mohamed trabalhava como lixeiro, além de já ter outra esposa e filho.
Não houve cerimônia de casamento.
"Quando cheguei lá, Fawzy mandou que eu me despisse. Eu me recusei, então ele começou a me bater e chutar", disse Mohsina.
Depois que conseguiu fugir, a menina voltou para Sanaa, onde mora com a família de Maged al-Ajmal, rico líder tribal que converteu um dos quartos de sua casa em um abrigo informal para meninas que foram abusadas. Ele conta que, a cada seis meses, recebe cerca de 10 meninas fugindo de casamentos forçados. Mohsina é a sétima a chegar este ano.
Ela disse que seu pai se recusou a recebê-la de volta, pois isso o forçaria a devolver o dote. Por isso, al-Ajmal está tentando levantar dinheiro para que o marido aceite se divorciar. "O que fizeram com ela a destruiu psicologicamente", disse al-Ajmal.
Nem o pai, nem o marido foram achados para comentar sobre a situação.
Meninos soldados
A guerra também acabou com a infância de meninos. Muitas crianças soldados foram enviadas às frentes de combate por pais empobrecidos, que necessitavam do parco salário de seus filhos – US$55 a cada três meses, dinheiro suficiente para alimentar uma família de cinco pessoas por duas semanas.
Antes da guerra, as Nações Unidas documentaram cerca de 900 crianças soldados no Iêmen; hoje, há quase 1,8 mil, segundo Relano. O número efetivo pode ser bem maior.
"Só me juntei à guerra porque não aguentava mais dormir o dia todo. Muitos dos meus colegas da escola são hoje meus companheiros", disse um soldado de 17 anos que se uniu aos houthis na província de Saada, próxima da fronteira saudita.
Ele e seu pai, funcionário público, falaram na condição de anonimato, com medo de represálias dos rebeldes, que negam a presença de crianças em suas fileiras.
"Ele acha que não há alternativa. E também sabia que eu não tinha dinheiro, e queria ajudar", contou o pai.
Direitos infantis
Assim como acontece com os casamentos precoces, os defensores dos direitos infantis dizem que a guerra dificulta a definição da extensão do uso de crianças soldados, mas acreditam que houve um aumento nos últimos anos, e que isso é mais comum entre os houthis do que entre outros grupos armados.
Os ativistas dizem que o recrutamento infantil é discreto, incluindo crianças com bem menos de 18 anos, ignorando as restrições de idade mínima para o serviço militar.
"Os oficiais dizem aos meninos que eles não podem ser considerados homens nem iemenitas se não se juntarem à luta. É uma coisa cruel de se fazer com as crianças porque elas não entendem os riscos, e se sentirão inúteis se não forem lutar ao lado dos amigos", lamentou o pai.