O nosso mundo produz alimento o suficiente para todos os seus habitantes. Quando uma região é desolada pela fome severa, as instituições humanitárias globais, apesar de muitas vezes sofrerem de dificuldades financeiras, são capazes, em tese, de transportar alimentos até as áreas afetadas a fim de evitar catástrofes maiores.
Mas, este ano, o Sudão do Sul foi afligido pela fome, e o Iêmen, a Nigéria e a Somália também estão muito perto de serem afetados. A fome ameaça 20 milhões de pessoas – um número maior hoje do que em qualquer outro momento após a Segunda Guerra Mundial. A fome, tal como definida pelas Nações Unidas, ocorre quando as mortes diárias causadas pela desnutrição numa dada região ultrapassam 2 a cada 10.000 pessoas.
A persistência dessa situação de fome severa, mesmo em climas inóspitos, seria quase impensável se não fosse pela guerra.
Cada um desses quatro países está há tempos envolvido em conflitos prolongados. Apesar de o auxílio humanitário ser capaz de salvar vidas a curto prazo, nenhuma dessas crises alimentares pode ser resolvida a longo prazo sem que haja algum tipo de paz. A ameaça da violência limita ou até mesmo proíbe o acesso dos colaboradores de ajuda humanitária às regiões afetadas. E, em alguns casos, a fome pode ser usada como uma tática bélica deliberada.
A guerra e a fome no Nilo Branco, no Sudão do Sul
Em fevereiro, a Organização das Nações Unidas declarou estado de fome nos condados de Mayendit e Leer do Sudão do Sul. Foi a primeira declaração de fome do mundo desde 2011, quando houve fome na Somália.
Mas, mesmo nesses dois países em questão, mais pessoas morrem fuziladas todos os dias do que de doença ou de falta do que comer. O estado no qual se situam esses condados, Unity, começou a passar pelas piores situações de violência desde que o Sudão do Sul se tornou um país independente em 2011.
Unity é o estado que é lar de Riek Machar, ex-vice presidente e líder de um exército rebelde formado principalmente de habitantes que pertencem ao grupo étnico Nuer, que vem, desde 2013, travando confrontos violentos contra o exército do Sudão do Sul, controlado pelo presidente Salva Kiir, da etnia Dinka. O exército e as milícias armadas de Kiir vêm varrendo Unity repetidamente, destruindo e ateando fogo em aldeias inteiras, cometendo chacinas e estupros no caminho. Milhares de pessoas já morreram afogadas nos rios e pântanos do estado, tentando fugir.
Sob outras condições, esses rios e pântanos forneceriam ao povo de Unity quantidades abundantes de peixes para pesca e água para irrigação. Mas as guerras implacáveis fazem com que se tornem impraticáveis todos os aspectos da vida cotidiana, dada a falta de segurança, e as pessoas se sentem aterrorizadas demais para sair de casa, pescar, plantar ou comprar e vender. Muitos estão comendo grama e vitórias-régias só para sobreviver.
Tanto os rebeldes quanto o governo vêm dificultando o trabalho dos colaboradores de ajuda humanitária para acessar os condados mais afligidos pela fome. O correspondente do The Washington Post na África, Kevin Sieff, fez algumas reportagens recentes sobre o obstrucionismo do governo.
Nessas reportagens, Sieff descreve como, nos mais de 70 postos de controle na estrada entre os estados de Juba e Unity, os soldados muitas vezes exigem propinas em dinheiro ou alimentos dos colaboradores de ajuda humanitária, e o governo se recusa a deixar que as Nações Unidas operem voos que possam deixar suprimentos de paraquedas nas áreas de risco. Dúzias de colaboradores já foram mortos em meio ao fogo cruzado tentando chegar a essas áreas por terra.
Os Estados Unidos e outros países do Conselho de Segurança da ONU propuseram um embargo de armas para limitar a capacidade de violência do governo sul-sudanês. Mas, quando chegou a hora de votar a questão em dezembro, mais de metade dos membros do conselho, incluindo a China e a Rússia, se abstiveram. Os países vizinhos africanos discutiram já a possibilidade de uma intervenção armada coordenada, mas não foram capazes de reunir maior apoio para isso.
Guerra civil deixa o Iêmen dividido e sitiado
O Iêmen tem estado em guerra civil desde 2015. O conflito fraturou o controle do país em linhas sectárias e ideológicas e matou mais de 10.000 pessoas. Além disso, também dizimou a economia iemenita.
O Iêmen já era frágil antes da guerra, mas a sua moeda, sua indústria, infraestrutura de transporte e serviços públicos foram quase aniquilados nos últimos dois anos. Há milhões de desempregados, e os preços de alimentos e combustível dispararam. Estima-se que 17 milhões de pessoas, ou 60% da população, esteja diante de uma necessidade urgente de assistência humanitária. Cerca de 7 milhões vivem sem saber se terão o que comer no dia seguinte, subsistindo sob essas condições até por fim definharem.
A destruição física tem sido, em sua maior parte, obra de uma coalizão de liderança saudita – que conta com assessoria e financiamento dos Estados Unidos, Inglaterra e outros países – aliada ao presidente sunita do Iêmen contra os Houthi, uma milícia xiita que controla a capital, Sanaa, e boa parte da costa oeste do país.
Uma peça crucial da infraestrutura que a coalizão deixou quase inoperável foi o porto de Hodeia, o maior e mais importante do Iêmen, controlado pelos Houthi. O Iêmen importa quase 90% dos seus alimentos, e a maior parte entra por Hodeia. Os navios sauditas estão colocando em prática um bloqueio quase completo do porto, com o argumento de que não podem correr o risco de permitir o tráfico de armas para dentro do país, por mais que as próprias Nações Unidas inspecionem cada navio que chega.
Caso a coalizão decida tomar militarmente a cidade de Hodeida e seu porto, ela poderia acabar interrompendo de vez esse fluxo mínimo de alimentos que chegam a Sanaa e a outras cidades altamente populosas no interior do país, o que levaria à fome, segundo as agências de auxílio. Os oficiais da coalizão argumentaram que, caso tomem controle do porto, eles poderiam garantir a passagem de ajuda humanitária sem se preocupar com o risco de tráfico de armas.
Em todo caso, vastas áreas do Iêmen estão sob constante bombardeio das forças da coalizão. Três quartos dos residentes da cidade de Taiz, na região centro-sul, e nas áreas ao redor, se veem diante de situação de emergência de escassez de alimentos, porque a área é efetivamente inacessível.
Oito anos de terror criaram um pesadelo no nordeste da Nigéria
O reino sangrento de terror do Boko Haram no estado de Borno, no nordeste da Nigéria, foi tão intenso ao longo dos últimos anos que os grupos humanitários sofrem até para entrar na região. Há uma quantidade muito limitada de dados confiáveis sobre a fome, inclusive. Alguns colaboradores especulam que Borno possa ou estar agora ou já ter passado anteriormente por períodos de fome.
O conflito deslocou mais de 3 milhões de pessoas e deixou seca e desértica uma região até então fértil. Vastos acampamentos já surgiram na Nigéria e na fonteira com Níger e Camarões. A população da capital, Maiduguri, que se vê até o momento relativamente segura, dobrou por causa do fluxo de refugiados, e a cidade agora é um antro de doenças infectocontagiosas. Dezenas de milhares de nigerianos, enquanto isso, voltaram as suas atenções para a Líbia e, depois, para a Europa, se arriscando numa viagem cara e perigosa, à qual muitos não sobrevivem.
O número de pessoas que permaneceram no país é quase igual ao dos refugiados que fugiram das áreas controladas pelo Boko Haram. Eles são os que mais correm risco de passar fome, dada a inacessibilidade de suas aldeias à ajuda externa.
O exército nigeriano, mesmo cooperando com os países vizinhos e assessores ingleses e norte-americanos, revelou-se estar dolorosamente despreparado para combater os insurgentes, apesar de ter feito algum progresso já. Muitas vezes, quando ele finalmente consegue libertar as cidades e aldeias do domínio do Boko Haram, seus oficiais encontram os residentes comendo grama e insetos, porque é só o que lhes resta.
As Nações Unidas deram o aviso já de que meio milhão de crianças no nordeste da Nigéria estão sofrendo de um caso tão severo de desnutrição que até 75.000 delas poderão morrer até junho. Um surto de sarampo na região poderia se transformar também numa epidemia.
A seca na Somália, uma terra onde não faltam armas
Há seis anos, mais de 250 mil somalianos morreram por conta da fome. Faz dois anos consecutivos que não chove em certas partes do país, e crescem os medos de que a catástrofe anterior se repita. Mas a seca é comum na Somália e nem sempre resulta em fome. O elo comum entre o ano de 2011 e agora é a continuação da presença do grupo armado al-Shabab, que tem elos próximos com a al-Qaeda.
Apesar de al-Shabab ter perdido espaço desde 2011, o risco da fome na Somália se concentra nas áreas rurais no sul do país, onde ele ainda tem uma presença forte. Isso se dá porque a milícia impõe restrições severas à movimentação dos nativos, que podem estar em busca de alimento e água, ambos escassos. Ela também restringe o acesso da ajuda humanitária.
Conforme os poços secam, a população vem recorrendo a qualquer fonte de água que ela conseguir encontrar para beber, mesmo que seja água suja. Por consequência, uma epidemia de cólera compete com o agravamento da escassez de alimentos.
No entanto, a Somália mantém ainda um otimismo surpreendente quanto às chances de se evitar a fome. O al-Shabab recentemente deu garantias de que irá permitir uma movimentação mais livre de pessoas. O poder do grupo também já caiu significativamente, o que implica que são as condições climáticas que mais contribuem para a crise somaliana, em proporção com os outros fatores.
E, apesar de a seca deixar o país dependente de ajuda externa, esse é um problema que, no fim das contas, é mais fácil de resolver do que a guerra.
No entanto, neste momento de necessidades sem precedentes, o maior fornecedor de auxílio humanitário do mundo está se preparando para cortes imensos no seu orçamento.
O auxílio humanitário ocupa uma fração minúscula das despesas do governo dos EUA – menos de 1% –, mas o orçamento proposto pela administração Trump eliminaria uma boa parte disso. O Departamento de Estado e a Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA poderão ter seus orçamentos reduzidos para menos de um terço do atual. O financiamento dos EUA para as Nações Unidas deverá cair em mais da metade também.
As Nações Unidas procuraram US$4,4 bilhões no final de março para operações emergenciais de combate à fome, mas só conseguiram arrecadar uma fração disso.
Fontes: Dados sobre os conflitos adquiridos via o Centro de Terrorismo e Insurgência da IHS Jane. Dados sobre segurança alimentar via fews.net. Dados sobre os acampamentos de pessoas deslocadas via UNHCR e immap.org, via mal-khameri@inmap.org. Controle territorial do Iêmen via criticalthreats.org. Dados sobre a seca via o Observatório da Terra da NASA.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink
Deixe sua opinião